sexta-feira, novembro 04, 2022

José Carlos Pereira, médico e actor: “A partir do segundo copo, já não existia limite”

 

Um dos meus grandes amigos tinha um problema de alcoolismo. Contudo, se isso era inegável para todos, ele não o reconhecia como problema. Ou melhor, reconhecer até reconhecia mas achava que durava enquanto ele quisesse. Em situações em que estivéssemos juntos, víamos todos onde é que aquilo ia parar. Bebia um copo, depois outro, depois outro. E nós víamo-lo a ficar com os olhos vermelhos e brilhantes, cada vez mais bem disposto e brincalhão... e queríamos pará-lo. Mas era impossível. No fim ainda bebia whiskey e, se fosse preciso, não um mas mais copos. 

Preocupávamo-nos que conduzisse assim. Mas dizia que não ia deixar o carro para trás. Por exemplo, se ia na Marginal, dizia que ia devagarinho, com cuidado para ir entre os dois traços. Quando estava sóbrio ria-se pois claro que não há dois riscos, há um único, o risco de separação das faixas. Portanto, deveria ir -- devagarinho, dizia ele -- a meio da estrada. Foi apanhado algumas vezes. Uma das vezes foram devagar a escoltá-lo até casa. Noutras vezes foi multado. Não havia, na altura, a severidade que há hoje em relação aos excessos de alcoolemia. 

E tinha uma coisa. Guardava sempre umas notas junto aos documentos. Quando o mandavam parar e lhe pediam que mostrasse os documentos, apareciam as notas. Às vezes funcionava. 

Claro que ficávamos chocadíssimos com isto mas, quando estava alcoolizado, facilitava e abrandava os rigores morais e a única coisa que queria era chegar a casa. Uma vez o truque das notas não resultou e acabou na esquadra. Claro que o advogado o tirou de lá. Contou que na altura ficou preocupado e envergonhado mas logo aquilo passou a ser mais uma das várias peripécias com as quais se divertia.

Uma vez, estávamos, um grupo grande, a almoçar num restaurante ali na zona de Alvalade. Bebeu que deus a dava. Caipirinha atrás de caipirinha. Não era o único, mas ele mais que todos. Depois vinho. E escolheram um tinto dos bons. Vieram garrafas sobre garrafas. Inteligente e divertido como era, nessas alturas ficava hilariante. Aquela mesa era uma festa. Mas, ao fim de muitas, naquele dia a coisa deu-lhe para o sentimento. Lembro-me que lhe deu para nos contar que tinha passado o dia do enterro da Princesa Diana em casa, numa tristeza, a ver televisão, comovido. Um outro, gozão: 'Mas o quê, Senhor Doutor, chorou? Chorou...? Foi mesmo de ir às lágrimas...?' e ele, já comovido, 'Ah, sim, quase, quase...' e quase a chorar. E nós todos a rirmos. Às tantas, ar aflito, disse-me em segredo: 'Tou aflito para mijar...'. E eu: 'Então, porque é que não vai?'. E ele: 'Acho que não consigo lá chegar...'. E eu: 'Olha, agora esta. Se está aflito tem que ir'. E ele, todo tarará: 'Qual o melhor caminho...?'. E eu: 'Vá por aqui, encostado à parede. Vire só lá ao fundo na direcção da casa de banho, se for preciso apoie-se a alguma mesa'. Encheu-se de coragem, lá foi, devagarinho, dobrado de aflito que estava. Os nossos colegas riam-se mas a mim fazia-me muita impressão. 

Até que adoeceu. Apanhou um susto e que susto. Teve o apoio de toda a gente, deixou de beber. 

Tinha um outro colega que bebia bem, sempre, mas que, à sexta-feira, era demais. Nesses dias, aparecia de almoço só lá para as quatro ou cinco da tarde. Vinha sempre radiante e estar com ele nesses restos de tarde era uma festa. Por vezes, excedia-se e fazia disparates dos valentes. Uma vez chamou os responsáveis de áreas que dependiam directamente dele e disse-lhes: 'Estou farto de vos ver sempre nas mesmas funções e nos mesmos gabinetes. Reúnam-se entre vocês e troquem. Troquem à vontade. Na segunda não quero ninguém nem nas mesmas funções nem nos mesmos gabinetes.' Contou, perdido de riso, que os outros o ouviam sem acreditar no que ouviam, boquiabertos, preocupados. Eu ouvia-o a contar a proeza, todo feliz com a parvoíce que tinha feito, e fiquei também preocupada. Claro que isto se espalhou e foi com muita apreensão que se tentou mitigar o impacto do disparate. Nessas alturas, dizíamos-lhe que era sorte que no edifício onde estávamos não houvesse controlo de alcoolemia. Dizia que não teria problema. Sabia conter a respiração e enganar 'o balão'. No caso deste não sei se seria um caso de adição pois apenas o víamos fora das marcas à sexta-feira. Em ambiente social, ao fim de semana, sei que também bebia bem mas não tenho ideia que fosse dependente disso.

Poderia contar outros casos de bebedeiras épicas ou, pelo contrário, o caso de um infeliz, alcoólico em último grau, que pediu indemnização para sair. Durante algum tempo, hesitámos. Sabia-se que acabaria mal, longe da nossa vista. Temíamos que usasse o dinheiro da indemnização nos copos. Um dia apareceu lá a mãe, uma senhora bem idosa, a pedir que o deixássemos sair para ele ganhar força de vontade para se tratar. Lá foi. E perdemos-lhe o rasto.

Sobre drogas, poderia falar de um caso próximo mas dado ser, de facto, próximo, não vou falar. Escrevi, há algum tempo, um folhetim em que um dos personagens era inspirado nele. Estava viciado, agarrado, e conseguiu esconder de grande parte da família. Quando a situação assumiu proporções deveras graves, afastou-se do meio lisboeta em que se perdia e onde já se tinha afogado em dívidas (afastou-se... ou foi afastado quase à força), deixou a profissão, isolou-se no campo, casou-se e agora não para de fazer filhos. E creio que é feliz. 

Mas a adição, qualquer adição, é, a partir de certo momento, uma prisão, uma pedra amarrada aos pés. Quem sofre de adições sofre muitas perdas e, a dada altura, começa a perceber que as perdas são penosas demais e que o prazer que se obtém implica cada vez mais riscos e mais perdas.

Uma vez mais partilho uma entrevista da série Labirinto - Conversas sobre Saúde Mental do Observador

Aqui Sara Antunes de Oliveira entrevista o actor e médico José Carlos Pereira que chegou a ser capa de revistas pelo estado alcoolizado em que era visto nas noites lisboetas e pelos atrasos nas gravações. Uma vez mais, temos uma pessoa a falar aberta e humildemente dos problemas que viveu.

E a mensagem é, de novo, a mesma: há saída. É preciso pedir e aceitar ajuda, é preciso persistência, é preciso querer muito. 

José Carlos Pereira e a adição. “A partir do segundo copo, já não existia limite”

Começou a beber socialmente, até perceber que já não se divertia sem álcool ou drogas. Sofreu com a dependência e com o rótulo. Hoje está focado em não voltar atrás.


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Um dia bom
Saúde. Ânimo. Paz.

1 comentário:

- R y k @ r d o - disse...

Oxalá nunca tenha uma recaída. Um dia estive junto a ele, estando ele altamente alcoolizado. Oxalá recupere totalmente
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Cumprimentos poéticos
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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