Tive um dia assaz complicado. E a complicação começou bem cedo. A meio do dia pensei: Não estou para aturar isto. Depois pensei: tenho que ser consequente. Mas não me deram tempo para equacionar cenários de retirada. E agora, depois da meia-noite, o que posso dizer é que não fui consequente. Daqui a nada começa o dia e ainda antes de começar já eu estarei enredada em pareceres jurídicos, crises, resoluções contratuais e outros petiscos que tais.
Mas, como dizia, a procissão começou ao raiar d'alba. Aliás, estava a ter um pesadelo quando fui acordada pelo telefone. Em condições normais teria ficado possuída por ter sido acordada quase de madrugada. Assim, salvou-me do pesadelo.
Já não é a primeira vez que tenho este pesadelo. Sonhei que estava com várias crianças cá em casa, um dos quais ainda bebé, e que eu mal dava conta de tomar conta de tantos. E que tinha pedido à minha mãe para se ocupar do bebé. E, à noite, tinha reparado que o bebé estava invulgarmente magrinho e sem força. E eu tinha perguntado à minha mãe se tinha dado de comer ao bebé e ela, toda chorosa, tinha confessado que, no meio da barafunda, se tinha esquecido. Desde manhã que o bebé estava sem comer. O meu desespero não se imagina. Tinha pegado no bebé, toda eu numa aflição, tinha preparado leite e uma papa e o bebé estava tão fraco que mal conseguia comer. E eu numa angústia, agarrando-o, eu chorando, pedindo-lhe desculpa, implorando que comesse, que ficasse bom.
Não sei de onde veio este sonho. Se calhar foi que na véspera eu estava a ver se os meninos estavam bem, se não queriam mais, e a minha filha gozou, disse qualquer coisa como que eu só estava bem quando os via a comer, que se pudesse lhes dava de comer à boca, nem sei se não falou em alimentar toda a gente à sonda. Qualquer coisa nesta base. Respondi que é coisa de caranguejo. Os caranguejos gostam de receber, gostam de cozinhar, de alimentar os outros. Nessa altura o mais velho olhou-me consternado: 'Acreditas em signos...? Uma pessoa inteligente... Agora decepcionaste-me, Tá...' Disse-lhe que acredito um bocadinho, que sei que não faz qualquer sentido, que é uma coisa muito sem jeito mas que a descrição dos caranguejos encaixa muito em mim. Gozaram comigo. E eu não consegui rebater os seus argumentos nem dizer nada em minha defesa. Há coisas que não se explicam.
Mas o dia foi todo recheado de problemas. Pior ainda porque há gente que não aguenta as contrariedades e rapidamente entra em pânico. E há os que, estando em pânico, se entregam imediatamente, declaram rendição num ápice. Ou seja, ainda nem o outro lado esboçou qualquer reivindicação e já eles abriram as pernas (pardon my french). Depois há os que, ao panicarem, bloqueiam, deixam de pensar, ficam em estado de estupor catatónico. Estes, nos casos piores, ficam burros de todo. E há os piores, os que ficam a mil, stressados, agressivos, implicantes, conflituosos. Hoje calhou-me de tudo. E o pior foi quando um incauto, nesse estado de pânico, resolveu destravar-se e tentar vir espetar-se contra mim. Não garanto que não lhe tenha levantado a voz, irritada. Por dentro, só pensava: não há paciência.
Como estão longínquos os sonhos inocentes que alimentava nos meus trintas e quarentas de que aos cinquentas me retiraria ou me atiraria à gestão autárquica. Já nessa altura vivia com demasiada intensidade, imaginando que não me aguentaria assim para além dos cinquenta. Não sei que idade tinha, talvez trintas e tais, fiz um PPR para se vencer por volta dos cinquenta. Ilusões, ilusões. Ainda cá ando, devorada por problemas. Passo a vida a pedir -- ou melhor, a implorar -- que não me tragam problemas, que me tragam soluções. Mas qual quê. Todo o santo dia: 'temos aqui um problema'. A falta de mão-de-obra é total e generalizada e isso desespera quem não consegue ter equipas completas.
O meu jardim está bonito, frondoso, as árvores verdejantes, compostas. Mesmo nos dias de muito calor, quando se chega da rua e se entra, sente-se logo a frescura, parece que se entra num outro clima.
No outro dia, in heaven, a minha mãe dizia para a minha filha, referindo-se a mim: 'quis plantar árvores de metro a metro, não descansou enquanto não encheu tudo de árvores, agora está assim, uma mata'. Confirmei. Não terá sido de metro a metro mas era assim que, antes, quando o terreno era apenas mato rasteiro e pedras, eu imaginava un petit bois, o meu pequeno bosque, um lugar fresco, onde pudéssemos passear à sombra das árvores plantadas por nós.
Aqui nesta casa também me agrada a ideia de ter árvores generosas, com boa sombra para acolher os nossos corpos quentes. O meu marido olha para as copas que se alargam e os ramos que tombam, verdadeiras cortinas arrendadas em verde, e tem vontade de desbastar. Não. Não quero. As árvores são fêmeas que acolhem nos seus braços os pássaros e quem queira acolher-se à sua beira.
4 comentários:
Da próxima vez que a questionarem sobre a lógica por detrás da astrologia, pergunte de volta se lhe podem explicar qual é a lógica que suporta o ciclo das estações - ou das marés - e que permite prevê-las com alguma precisão. Seja qual for a resposta que lhe derem, poderá retorquir que se os astros influenciam de tal modo os fenómenos atmosféricos e controlam ingentes massas de água, o que farão a minúsculas criaturas como nós?
Para rematar, pergunte-lhes se sabem quem Kepler foi. Se lhe souberem responder - o que muito me surpreenderia - informe-os de que para além de "pai" da moderna astronomia, Kepler foi reputado astrólogo. (Divirta-se a vẽ-los tentar conciliar o gabarito intelectual de Kepler com a prática séria da astrologia.)
Se quiser deixá-los ainda mais à toa, pergunte-lhes o que acham de um génio como Pessoa ter sido um estudante dedicado do tema.
(Pesadelo - melhor apelidar tais eventos de "chamadas de atenção urgentes para assuntos candentes")
Uma aspiração que lhe é especialmente cara está a ser negligenciada; delegar noutros a responsabilidade é tempo perdido.
(Não se amofine: se expõe publicamente detalhes privados é porque está interessada em opiniões alheias - podem não ser as minhas, mas é o que há.)
Tudo está ligado, mas não do modo que satisfaça incrédulos e descrentes.
Olá K.
Posso invocar os santos da coisa como minhas testemunhas abonatórias. Mas explicação para a crença, essa não a tenho.
Qual o seu signo, K.? Ajusta-se a si?
Hoje, ao escrever uma coisa sobre delegar responsabilidades em quem não consegue agarrá-las lembrei-me a sua observação a propósito do meu pesadelo. Faz sentido o que escreveu, sabe?
Um bom dia feriado, para si, K.
O reconhecimento do que é evidente - sejam as marés, as estações do ano ou os perfis astrológicos - não constitui aquilo que entendo como crença nem requer grandes explicações: as coisas existem, são mediadas com alguma eficácia pelos sentidos, e perder tempo a refutá-las - isso sim notável exemplo de crendice - é luxo e apanágio dos irreflectidos.
Nunca conheci ninguém que sofresse de disforia astrológica - a carta natal analisada com atenção e desapego sói apresentar um perfil psicológico meridianamente claro.
Refiro o desapego - e também algum tacto - como ferramentas importantes de que se deve munir o astrólogo por causa dos melindres que os aspectos negativos existentes na carta natal podem suscitar naqueles que a pretendem conhecer.
Bom feriado para si também.
Caro K.,
Não sei o suficiente para saber se há efectiva relação entre esses fenómenos nem sei exactamente o que explica ou traduz a astrologia. Mas gosto de acreditar que, mesmo que algumas coisas não façam sentido, serão boas se a gente se identificar com elas.
Não me disse qual o seu signo. Eu acho que sei qual é mas não digo.
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