quinta-feira, julho 29, 2021

Simone Biles, nos braços de um anjo

 


Como é bom de ver, de desporto pouco sei e da pressão que os desportistas de alta competição sofrem ainda menos.

O que sei é que nunca tive qualquer vontade que os meus filhos levassem demasiado a sério qualquer desporto que praticassem. 

A filha de uns amigos nossos, praticamente da idade da minha filha, fazia já não me lembro se ginástica artística se natação. Tenho ideia que praticava ambos os desportos mas posso estar a confundir. O que sei é que um deles lhe consumia várias horas por dia, todos os dias. E que havia provas e que lá andavam eles atrás da miúda.

Tenho também um ex-colega, competentíssimo e afamadíssimo, inclusivamente muito ligado a grandes casos mediáticos, que reduziu à mínima expressão a sua actividade para poder acompanhar o filho que, praticando um certo desporto, se foi dedicando cada vez mais, obrigando os pais a terem staff permanente, nomeadamente um treinador, uma psicóloga e, a tempo parcial, uma nutricionista e um fisioterapeuta. Ele passou a viver para alimentar a dedicação do filho, um adolescente, a esta actividade desportiva.

Nunca percebi esta opção. Pensava sempre que ou o rapaz era egoísta até à décima casa, não se importando por ter o pai reduzido a seu agente, ou era uma vítima da ambição ou exigência do pai.

Lembro-me do meu colega dizer que havia muito trabalho a fazer diariamente, nomeadamente a gestão de patrocínios que, legitimamente, queriam ver resultados, queriam contrapartidas, com quem era necessário aturadas questões discussões jurídicas. E quando eu o questionava por quase viver em função do filho ele relatava-me peripécias e casos em que, se não fosse ele a agir como intermediário, era pressão e perturbação que caía em cima do rapaz, correndo o risco de, segundo ele, lhe fritar os miolos.

Estou a falar de um jovem pertencente a uma família estruturada, sem dificuldades financeiras ou outras e com uma estrutura de apoio que amortecia quaisquer pressões exteriores.

Quando, ao entrar na idade adulta, se percebeu que a carreira do jovem, sendo boa, jamais o levaria aos primeiros lugares, desistiu da carreira e hoje pratica essa actividade apenas por lazer, ou melhor, apenas por desporto.

Imagine-se isto numa outra dimensão, num contexto muito mais profissional e mais mediático, mas com uma jovem que, em menina, a par dos seus irmãos, esteve a cargo de uma mãe com problemas de álcool e drogas, várias vezes presa, sem possibilidade de lhes proporcionar estabilidade ou, até, a alimentação suficiente. Simone Biles viveu consecutivos dias de fome e de medo. Acabaria por ser criada pelos avós. Já adolescente viria a sofrer agressões sexuais por parte do médico que acompanhava as atletas americanas e, segundo tem referido, disso guardou um trauma para o resto da vida, ainda receando que a toquem mesmo que em actos meramente clínicos.

Simone Biles é mais baixa, muito mais elástica e forte do que a maioria das mulheres da sua idade. O que ela faz com o seu corpo desafia as leis da gravidade. Parece levada nos braços de um anjo. 

Horas e horas e horas de treino, horas e horas e horas de exercício, de busca da perfeição. Com as câmaras sempre em cima, escrutinada em permanência, Simone, tal como os desportistas de alta competição, está sujeita a uma pressão esmagadora. Ela tem que ser a melhor, a superlativa, a ganhadora de medalhas, a perfeita, o exemplo, a mais resiliente, a mais inspiradora. Se, por acaso, tiver dias de desconforto, dias de hesitação, dias de dor física ou de dúvida terá que escondê-los e ultrapassá-los para que ninguém suspeite de que não é Simone Biles. 

As suas articulações, os seus músculos, os seus ossos e a sua força anímica têm que estar sempre no máximo para que, nunca, nada falhe, Nos treinos, Simone corre, salta, eleva-se no ar, rodopia no chão e no ar, contorce-se, aterra e eleva-se e voa. Horas e horas, dias e dias. E, pelo meio, entrevistas, sessões fotográficas.

Na sua cabeça, os seus demónios: a recordação do medo, da angústia e da fome dos tempos em que a mãe se perdia dos filhos, a par da repulsa e da vontade de esconder a memória do toque abusivo de Larry Nassar, devassando o seu corpo inocente.

Enquanto corre para saltar e rodopiar, esses diabos rodeiam Simone. E rodeiam estes e rodeiam os outros, os diabos menores, os diabos avençados pelos mercados, pelos investidores, que alertam: se não continuas a ser a melhor, retiramos-te o tapete, cuidado...

Ao elevar-se para saltar, agora nos Jogos Olímpicos, Simone perdeu momentaneamente a consciência de si, deixou de saber onde estava e, em vez das duas voltas e meia no ar, apenas deu volta e meia. Ao aterrar, vacilou, estremeceu. Nela, super-mulher, perfeita, isto é estranho. Em qualquer outra pessoa, em mim, em si, se nos conseguíssemos elevar no ar meio metro e, ao mesmo tempo, darmos meia volta, certamente ficaríamos sem saber de que planeta seríamos e cairíamos desamparados, estatelados, partidos, no chão. Para nós, não para Simone -- que costuma saltar, voar, encarpar-se, rodopiar, tudo como se fosse um boneco de molas -- que cai sempre de pé, aprumada, elegante e segura.


Nessa altura, quando, no ar, o corpo tentou evadir-se da mente, percebeu que, a continuar, poderia enlouquecer ou cair desamparada, magoando seriamente o seu corpo.

Parou e, corajosamente, explicou o que se passava.

O mundo pasmou com a surpreendente retirada de Simone e com a inesperada confissão. Simone é humana, afinal.

Não sei bem que mundo é este nosso em que se pretende que os bons sejam muito bons, bons demais, excelsamente bons e em que se desprezam aqueles a quem os deuses deixam de levar nos braços. Mas sei que Simone Biles, a gigante, fez mais pelo verdadeiro sentido desportivo e pela necessidade de acarinharmos a humanidade daqueles que admiramos do que mil discussões estéreis e mil palavras cheias de lágrimas de crocodilo. 

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Fotografias de Simone Biles, algumas da autoria de Annie Leibovitz. 

Sarah McLachlan interpreta In the arms of an angel

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Uma bela quinta-feira

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