Dia muito agradável, em especial pela tarde. Parte da família esteve cá de visita e também um casal que, não sendo biologicamente da família, é, na verdade, como se fosse. Já deviam ter vindo cá há muito tempo mas, pandemia oblige, ainda não se tinha proporcionado.
Hoje calhou e foi um misto de visita de amigos e de visita de médico. Vou descobrindo coisas sobre mim e o mais aborrecido é que não têm sido boas notícias. Até ver, nada de cair para o lado mas, também, nada que alegre. Mas, enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar -- e aprendendo a viver com as circunstâncias que nos calharam na rifa. Não é bom? Paciência. É o que é.
Há um lado perverso nisto: enquanto a gente vive na ignorância, não pensa, não se preocupa. Quando se conhece e as coisas têm um nome, aí, as coisas ganham outros contornos.
Por exemplo, tenho para aqui estado a ler artigos e a ver vídeos sobre o que antes desconhecia e que, afinal, tem tanto a ver comigo.
Tirando isso, fiquei contente por terem gostado da casa. A minha menininha linda andou a fazer as honras, toda contente por andar a mostrar a casa. Desde o primeiro dia em que qualquer deles cá veio sentiram esta casa como um ponto de reunião. Não hei-de esquecer-me do menino que corria de divisão em divisão, rindo, e, mostrando a incredibilidade, exclamava: Não admito! Não admito isto! até que a mãe descodificou: queres dizer 'não acredito'? E ele, nem aí, acho que quer dizer 'não acredito'
Fico muito feliz por perceber que os meus meninos gostam muito de cá estar. Aliás, acho que toda a gente (os poucos que ainda cá vieram) gostam desta casa tão luminosa e acolhedora.
Hoje não reguei os vasinhos mas acho que também não devem precisar pois de tarde choveu uma chuvinha miúda. Felizmente depois levantou e pudemos estar cá fora. Os passarinhos, habituados à nossa pacificidade, não se afastam e cantam de dar gosto.
À noite pus a máquina a lavar. Agora, enquanto escrevia, senti qualquer coisa a resvalar na cabeça. Era uma das florzinhas que a minha menina me ofereceu e que prendi no alto da cabeça.
Escrevo sobre estas minhas coisas, coisas de nada, porque não encontro na actualidade temas que me pareçam especiais. Entre variantes deltas, números crescentes e a especulação sobre o acidente que vitimou um trabalhador que atravessava a autoestrada, pouco mais há.
Faz exactamente um mês que fui transportada de ambulância de uma clínica para um hospital, ficando lá em observação até à hora de almoço do dia seguinte. Foi uma experiência que não quero esquecer. Estive lá menos de vinte quatro horas mas todas as vinte e quatro horas de todos os dias muitas outras pessoas ali estão, sofrendo, algumas na ignorância do seu estado, outras muito conscientes e ainda mais sofredoras. Poderia falar da falta de espaço, da falta de privacidade, e tudo isso seria verdadeiro e crítico. Poderia falar dos cheiros, poderia falar dos gritos e dos choros, e tudo isso seria verdadeiro.
Mas prefiro centrar-me num outro aspecto: doentes com patologias do foro mental deveriam estar em salas diferentes. Estarem, maca a maca, com doentes 'normais', desestabiliza-os e os seus comportamentos desestabilizam os 'normais'. E claro que ponham aspas com fartura em torno dos normais porque, a bem verdade, ninguém ali está muito 'normal'. De tudo o que ali passei e de tudo o que assisti, o que mais me perturbou foi a jovem suicida. Deixou-me mesmo muito perturbada. Tive muita vontade de sair da minha maca e ir falar com ela. Mas ela estava rodeada de enfermeiros, não faria sentido ir eu para ali armada em expert. Que será feito dela? E que impressão me fez o ar 'normal' dela quando saíu, com alta. Como poderia parecer tão 'normal', tendo atentado contra a sua vida poucas horas antes, tendo hábitos suicidas há tanto tempo, segundo ela própria disse? Como disfarçava bem o que lhe ia na alma...
O jovem que falava compulsivamente, ameaçando médicos e enfermeiros, também me deixou incomodada. E a jovem mulher, aspecto bem comportado, muito compenetradinha, que apareceu pela mão do jovem marido que não a largava, ali onde não eram permitidas visitas ou acompanhantes, também me fez muita impressão. O rapaz não tirava os olhos dela, ar preocupado. E ela sorrindo, tentando parecer 'normal'. Ou a senhora que sofria maus tratos do filho, ar tão envergonhado, cabeça baixa enfiada entre os ombros subidos, mas, não tendo mais para onde ir, estava era preocupada por ele não atender o telefone, não aparecer a saber dela ou a buscá-la.
Tantas tragédias ali, lado a lado, partilhando choros e gritos, num espaço tão confinado, numa intimidade forçada com desconhecidos.
Passou um mês. Talvez daqui por algum tempo eu já esteja noutra e tudo isto me pareça coisa remota. Mas não quero esquecer-me. A área da Saúde tem que ser amparada. Não é apenas desgastante para quem lá trabalha: é também muito mau para quem se vê atirado para uma situação destas. Poderá dizer-se que conhecer esta realidade nos faz bem, nos dá a conhecer o lado mais frágil da nossa existência. Mas, independentemente de nos fazer bem ou mal, há a situação vulnerável de quando ali estamos -- e, por uma questão de dignidade e de direito ao respeito, deveríamos estar noutras circunstâncias, não naquelas.
O tempo passa assim, quase sem a gente dar por ele. Passou um mês. Estou aqui na minha sala e a esta hora, outros homens e mulheres estão lá, macas coladas umas às outras, ouvindo os choros e os gritos, partilhando sofrimento e medo.
Só desejo que não me veja de novo em tal situação. Tal como muito sinceramente desejo que nenhum dos que me são queridos nem nenhum de vocês aí desse lado se vejam um dia numa situação daquelas. É sempre melhor sentirmo-nos acompanhados, tranquilos, protegidos, seguros, a nossa privacidade respeitada e, não menos importante, podermos ter algum dos nossos por perto.
Mas, enfim, bola para a frente. Há estrada para andar...? Há ventos e mar? Então, bora lá, malta, vamos continuar.
2 comentários:
Nem mais. Vamos continuar. E com a força que reconheço na UJM, não haverá pedras no caminho que lhe resistam. :)
Olá Luísa,
Muito obrigada. Com as pedras que for encontrando farei um murinho, daqueles algarvios, com as pedras empilhadas, daquelas que desenham caminhos. E por esse caminho, caminharei.
Um sentido abraço, Luísa.
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