Se não estou em erro, ontem foi a segunda vez, desde que comecei o blog, que não publiquei nada; e foi pela mesma razão que na primeira.
Não gosto de falar de assuntos desta natureza estando ainda a viver as situações pelo que omito a razão de fundo e sigo o conselho que recebi do meu filho, por mensagem, perto da meia noite, que me disse para me focar no ângulo antropológico para depois relatar no blog. Mas não posso seguir integralmente pois é tudo muito recente e excessivo. Talvez apenas algumas pinceladas, um primeiro esboço do retrato.
A mulher que, deitada de lado, falava baixo, como se estivesse a conversar com alguém, uma conversa infindável, com pouco nexo, em que falava de ter cuidado em descer escadas, pendurar roupa ao sol, pedir que a 'outra pessoa' lhe ajeitasse a almofada, saber como estavam outras pessoas, o não sei quantos que andava coxo, ah não sabes? sim, sim, e os filhos vão lá levar as coisas, sacos do supermercado, e a não sei quantas, habilidosa na costura, ah não sabias...?, sim, faz batas para a fábrica, ah não sabias...?, não me digas, há tanto tempo que ela faz as batas.... Horas de conversa em voz baixa, uma voz frágil e monocórdica. E, no meio, para meu espanto, esta: ele diz: queres pelo cu ou pela frente. Apurei o ouvido para tentar perceber o contexto mas só ouvi, olha o galão... E logo voltou a falar como se conversasse com uma vizinha sobre outras vizinhas. De vez em quando alguém, muito alto, 'Schiu!' e ela, 'temos que falar mais baixo', e continuava naquela lengalenga infinita.
Ou o rapaz que durante horas falou ao telefone, não sei se com alguém de verdade, se com um amigo imaginário, e sempre num tom furioso, agressivo: 'Não me digas para me calar porque não me calo. F...! Estou farto disto. Se não saio imediatamente, mando um par de bofatadas naquela p... ali, não me escapa, posso ficar aqui mas deixo-a estendida. E não me mandes calar! Não tenho medo nenhum. Quero lá saber que chamem a polícia. Eu quero é que estas gajas vão todos para o c.....!' Às tantas mandavam-no calar, outras chamavam-lhe malcriado. E ele continuava ao telefone: 'Não me calo nada. Era o que faltava que eu desse ouvido a estas cabras que me estão a mandar calar. Umas velhas que para aqui estão, todas umas p... de m.... Quero lá saber. Não tenho medo nenhum!'. E, volta e meia, levantava-se, aos gritos, sempre ao telefone: 'Vou-lhes aos cornos! Vais ver se não! Então julgam que isto fica assim? Que é que eu estou aqui a fazer? Pr'ó c...!'
Ou a senhora muito frágil, encolhida, ar amedrontado e envergonhado, que ouvi que é vítima de violência doméstica por parte do filho, que até há uma providência cautelar para que o filho não se aproxime dela, mas que não tem para onde ir, que não sabe o que fazer. De vez em quando, ouvia-a perguntar: 'Conseguiram falar com o meu filho?'. Que não, que ainda não tinha atendido o telefone. E ela encolhida, triste, envergonhada.
Ou a senhora que dizia, infeliz, chorando: 'meninas, meninas, preciso de ajuda, estou toda mijada' e depois, baixinho, a chorar: 'toda mijada, até o cabelo está mijado...'
Um dia talvez volte a algumas destas pessoas. Será uma forma de não me esquecer ou de deixar ficar o registo de quem não tem voz. Talvez tente o relato que o meu filho sugeriu, o relato de situações anónimas, sem história, momentos que, quem os vive, prefere esquecer.
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Visões de Hieronymus Bosch ao som de Antony and the Johnsons a interpretar "Epilepsy Is Dancing"
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Desejo-vos um feliz dia de domingo
3 comentários:
Se isto são “apenas algumas pinceladas”, há muito Francis Bacon para digerir ..
Não sei o que dizer, a não ser, um drama que pode bater à porta de cada um.
Deve ser horrível presenciar esse quadro humano.
Olá UJM, sei tão bem do que fala! O horror
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