domingo, junho 06, 2021

Do outro lado do espelho

[A vida da gente não sai nos jornais]





Se não estou em erro, ontem foi a segunda vez, desde que comecei o blog, que não publiquei nada; e foi pela mesma razão que na primeira.

Não gosto de falar de assuntos desta natureza estando ainda a viver as situações pelo que omito a razão de fundo e sigo o conselho que recebi do meu filho, por mensagem, perto da meia noite, que me disse para me focar no ângulo antropológico para depois relatar no blog. Mas não posso seguir integralmente pois é tudo muito recente e excessivo. Talvez apenas algumas pinceladas, um primeiro esboço do retrato.

Direi apenas que penso que, verdadeiramente, jamais se poderá ter a noção da dimensão frágil e precária da natureza humana sem se estar dentro de um cenário daqueles.

A mulher que, deitada de lado, falava baixo, como se estivesse a conversar com alguém, uma conversa infindável, com pouco nexo, em que falava de ter cuidado em descer escadas, pendurar roupa ao sol, pedir que a 'outra pessoa' lhe ajeitasse a almofada, saber como estavam outras pessoas, o não sei quantos que andava coxo, ah não sabes? sim, sim, e os filhos vão lá levar as coisas, sacos do supermercado, e a não sei quantas, habilidosa na costura, ah não sabias...?, sim, faz batas para a fábrica, ah não sabias...?, não me digas, há tanto tempo que ela faz as batas.... Horas de conversa em voz baixa, uma voz frágil e monocórdica. E, no meio, para meu espanto, esta: ele diz: queres pelo cu ou pela frente. Apurei o ouvido para tentar perceber o contexto mas só ouvi, olha o galão... E logo voltou a falar como se conversasse com uma vizinha sobre outras vizinhas. De vez em quando alguém, muito alto, 'Schiu!' e ela, 'temos que falar mais baixo', e continuava naquela lengalenga infinita.

Ou o senhor, esquelético, com feridas, que agradecia amavelmente a toda a gente, em voz baixa, e perguntava o nome a toda a gente, uma simpatia, mas que, quando a sua vizinha do lado gritava -- ora como uma ave ferida ou como um animal a ser abatido a sangue frio -- elevava e engrossava a voz e gritava: 'Cala-te!' e dizia um nome de mulher. Pensei que seria a sua mulher. Contudo, na mudança de turno, tudo dito à frente de toda a gente, ouvi um outro nome. Provavelmente, gritava-lhe como antes gritava com a mulher.

Ou o rapaz que durante horas falou ao telefone, não sei se com alguém de verdade, se com um amigo imaginário, e sempre num tom furioso, agressivo: 'Não me digas para me calar porque não me calo. F...! Estou farto disto. Se não saio imediatamente, mando um par de bofatadas naquela p... ali, não me escapa, posso ficar aqui mas deixo-a estendida. E não me mandes calar! Não tenho medo nenhum. Quero lá saber que chamem a polícia. Eu quero é que estas gajas vão todos para o c.....!' Às tantas mandavam-no calar, outras chamavam-lhe malcriado. E ele continuava ao telefone: 'Não me calo nada. Era o que faltava que eu desse ouvido a estas cabras que me estão a mandar calar. Umas velhas que para aqui estão, todas umas p... de m.... Quero lá saber. Não tenho medo nenhum!'. E, volta e meia, levantava-se, aos gritos, sempre ao telefone: 'Vou-lhes aos cornos! Vais ver se não! Então julgam que isto fica assim? Que é que eu estou aqui a fazer? Pr'ó c...!' 

Ou a senhora que chorava, chorava, soluçava virando a cara de lado, um papel tapando-lhe a boca, e vomitava devagarinho, envergonhada de vomitar. Na passagem de turno, ouvi que está viúva há um mês e que desde então está sempre doente, desidratada, sem força.

Ou a senhora muito frágil, encolhida, ar amedrontado e envergonhado, que ouvi que é vítima de violência doméstica por parte do filho, que até há uma providência cautelar para que o filho não se aproxime dela, mas que não tem para onde ir, que não sabe o que fazer. De vez em quando, ouvia-a perguntar: 'Conseguiram falar com o meu filho?'. Que não, que ainda não tinha atendido o telefone. E ela encolhida, triste, envergonhada.

Ou a jovem suicida que durante horas chorou, gritou, ameaçou, insultou. Queria ir-se embora, dizia que estava a passar-se, que a deixassem sair. Depois era amarrada e gritava, chorava, insultava, soltava palavrões misturados com gritos cheios de lágrimas. A seu lado, uma voz segura, tratava-a pelo nome e dizia: 'não insistas, não é negociável, não sais daqui' e ela furiosa, chorando. Do outro lado, a mulher que várias vezes me fez rir, gritava: 'deixem a criança em paz'. E logo alguém a mandava calar. Entre choro, a jovem insistia. 'a sério, meu, deixem-me sair, a sério que não me vou matar...' A voz dizia-lhe: 'descansa, dorme, tens que te acalmar, fica calada, tenta descansar, não vais sair daqui às três da manhã' e logo a outra gritava do outro lado ´Três da manhã? Mau! Mas não eram três da tarde? Vocês são é umas grandes mentirosas' E logo alguém a mandava calar. Ela protestava: 'Toda a gente grita e chora e só a mim é que mandam calar...'. A jovem continuava o seu pranto: 'Vocês não têm o direito de me manterem aqui presa, deixem-me sair, a sério, meu, eu não me quis matar' A voz dizia: 'Ah não? Já viste como tens os braços? O que foi isso?'. A jovem entre choro, em voz muito alta: 'Há muito tempo que me corto, só que às vezes corre mal, meu, que mal é que tem?'. A voz: 'E achas isso normal? Porque é que te cortas?' E logo a mulher do lado de lá 'Para chamar a atenção' e a voz, fora do sério, tratando-a pelo nome: 'Cale-se, deixe-me falar com ela'. E a mulher: 'Mas a perguntar isso para quê? Deixe a criança em paz'.  E logo um outro homem, um que gemia e uivava baixinho: 'calem-se, porra, não deixam ninguém descansar'.

Ou o senhor, que tossia, escarrava, engasgava-se, gemia, chamava, que quando alguém lhe perguntava como estava dizia: 'perguntem à minha mulher, ela é que sabe explicar bem o que é que eu tenho' e mesmo quando lhe diziam: 'não senhor, o senhor é que está aqui, o senhor é que tem que nos dizer', ele, lamurioso, infeliz: 'falem com ela, vão chamá-la, digam para ela ficar aqui ao pé de mim...'

Ou a senhora que dizia, infeliz, chorando: 'meninas, meninas, preciso de ajuda, estou toda mijada' e depois, baixinho, a chorar: 'toda mijada, até o cabelo está mijado...'

Um dia talvez volte a algumas destas pessoas. Será uma forma de não me esquecer ou de deixar ficar o registo de quem não tem voz. Talvez tente o relato que o meu filho sugeriu, o relato de situações anónimas, sem história, momentos que, quem os vive, prefere esquecer. 

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Visões de  Hieronymus Bosch ao som de Antony and the Johnsons a interpretar "Epilepsy Is Dancing"

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Desejo-vos um feliz dia de domingo

3 comentários:

Estevão disse...

Se isto são “apenas algumas pinceladas”, há muito Francis Bacon para digerir ..

Anónimo disse...

Não sei o que dizer, a não ser, um drama que pode bater à porta de cada um.
Deve ser horrível presenciar esse quadro humano.

Anónimo disse...

Olá UJM, sei tão bem do que fala! O horror