quarta-feira, dezembro 23, 2020

Dos caçadores, da caça e dos que não caçam mas apreciam comê-la. E etc.

 



Como esperava um telefonema muito cedo e teria que estar bem desperta, tendo acordado antes das cinco (hora a que o madrugador cá de casa se levantou), já não voltei a adormecer. Portanto, nem chegou a três horas o que dormi. Como todo o santo dia foi uma animação e um stress, preparativos sobre preparativos e revolução sobre revolução, agora, aqui sentada neste meu sofá tão confortável, não faço outra coisa senão adormecer. Dias muito preenchidos, estes. Se pudesse escrever sobre eles, tanta coisa teria para contar. Emoção, suspense, fúria, inquietação, vingança, medo, hesitação, euforia, desgosto: por estes dias a tudo tenho assistido. Lidar com tudo isso é, também para mim, uma emoção.

Agora ao fim do dia, ao comunicar a um, por sinal um jovem talentoso que trabalha comigo há muito pouco tempo, que ia deixar de me reportar, passando a depender de outra pessoa, estranhei o silêncio. Esperei. Nada. Pensei que a chamada tivesse caído. Confirmei: 'Está?'. Ao fim de uns instantes diz ele com a voz baixa: 'Por acaso não estou nada feliz com essa notícia...'. Pensei: 'mas será que tem alguma coisa contra o novo chefe?'. mas ele disse: 'É que gosto muito de trabalhar consigo, tenho pena, não estava nada à espera...' e voltou a calar-se. Fiquei também um pouco admirada, também sem saber o que dizer. Também eu gostei de trabalhar com ele, é um jovem que vai longe. Disse-lhe isso, disse-lhe que o vou continuar a acompanhar, que aposto muito nele. Do outro lado, silêncio. Sempre houve muita empatia entre nós mas não estava à espera de uma reacção tão sentida. Os outros a quem comuniquei o mesmo fizeram-me muitas perguntas, agradeceram-me, desejaram-me sorte nisto tudo, foram muito simpáticos, um voltou a ligar-me passado um bocado, que só então estava a cair em si. Mas em nenhum senti a verdadeira emoção que senti neste talentoso jovem que fui buscar a um outro país.

Esperam-me mais uns dias muito preenchidos mas, espero eu, sem o stress destes últimos. Sempre achei que o que mais motiva as pessoas é sentirem-se desafiadas para algo que receiam não ser capazes de atingir, algo de tão inesperado e complexo que faça os outros acharem que é uma prova de confiança muito grande atribuírem tal responsabilidade ao outro. A pessoa sente-se reconhecida, sente-se com vontade de ir à luta, de se superar, de mostrar que a aposta foi fundada. Gosto que me façam isso a mim e gosto de proporcionar isso aos outros. E isso é tão melhor quanto todos reconhecem que são tarefas necessárias, indispensáveis. Sentem que vão fazer parte de um desafio maior, nobre.

Mas, claro, por cada espaço que se abre para que alguém possa dar o seu melhor, alguém -- que antes lá estava e para quem as coisas não correram como deviam -- vai ter que sair e, onde há entusiasmo para uns, há desgosto e, tantas vezes, incompreensão pelo que lhes aconteceu, para outros. Mas nada a fazer, é assim mesmo. Como dizia o outro: é a vida.

Devo ainda dizer que, em todo o dia, apenas consegui andar um pouco quando recebi um outro telefonema, mais complicado, mais demorado. Antes da covid, iríamos para um gabinete, discutiríamos, avaliaríamos alternativas, talvez fizéssemos esquemas numa folha de papel. Agora é tudo por zoom ou teams ou, quando nos cansamos de nos vermos, falamos por telefone. Portanto, quando vi que a conversa estava para durar, levantei-me, fui buscar a máquina fotográfica e vim dar voltas ao jardim enquanto falava e, para descomprimir, fotografava. Também a meio da manhã, enquanto fazia uma outra chamada, levantei-me e estava à janela a negociar uma solução quando reparei em coisinhas que saltitavam na relva à minha frente. Passarinhos. Debicavam, saltitavam, uma vez um até estava pendurado numa haste finíssima de uma pequena flor. Máquina a postos e clic, clic, clic, várias fotografias. Fora e dentro de casa. A luz, a cor, os reflexos. Qualquer coisa serve para me descansar a mente.

Com isto, só agora vi o que se passou lá na Torre Bela, aquela brutal matança. 

Tenho vários amigos caçadores. Vão para espaço aberto, coutadas que, segundo dizem, são lugares bonitos, terras bem cuidadas em que os animais vivem em liberdade (uma liberdade perversa cujos contornos felizmente as futuras vítimas devem ignorar). Vibram com a caça esses meus amigos. Não são energúmenos. Eu, no entanto, nunca me senti atraída pela caça e a ideia de alguém matar um animal em liberdade causa-me alguma inquietação. Mas, lá está, sou como os outros que não são capazes de matar uma galinha mas são capazes de comê-la. Portanto, pio baixinho.

Um dos meus amigos caçadores fala com especial entusiasmo dos dias de caçada. E eu gosto de ouvi-lo a falar disso. Há ali o mais puro instinto predador, coisa primitiva. Nessa semana, conta ele, vive em função da emoção que sabe que vai sentir, no dia, ao sair de casa de madrugada, da emoção de, lá chegados, se esconder à espreita, escuro ainda, neblinas, frialdades, da emoção de, quando sente um leve movimento ou o ruído quase imperceptível de um roçagar nas faldas da vegetação, se colocar em posição de disparo, o braço e a arma como um único membro, da emoção de fazer pontaria, da emoção de acertar. A partir daí já nada o entusiasma. 

Um dia estava a falar dos pombos que tinha apanhado e um outro, na brincadeira, disse que ele, em vez de estar para ali com bazófias, poderia era convidar-nos para lá ir a casa almoçar. De imediato, ligou à empregada: que preparasse uma salada de pombo, com alface, maçã, pinhões. Quando lá chegámos, estava a empregada toda afobada, que uma coisa assim, sô tôr..., tão em cima da hora, não sabia se estava tudo em condições, que os pombos ainda nem arranjados estavam, que foi tudo a correr, os senhores desculpem se alguma coisa não estiver bem.  Havia um outro prato mas nem me lembro de qual. A salada, sim, estava óptima, a alface tenra, fresquinha, a carne deliciosa, no ponto. Foi um almoço animado, bem regado. A meio do almoço, chegou a mulher, meio zangada com o marido, que nem sobremesa havia, que a empregada não tinha tido tempo de preparar alguma, que tinha tido, ela, que ir ali comprar uns travesseiros e umas queijadas, que ainda vinham quentes, mas só mesmo tu, não podias ter avisado antes? Os cavalheiros à mesa levantaram-se logo, que ideia, não teria sido necessário, passávamos bem sem doces, ora essa, e que se sentasse, que pediam muitas desculpas por não termos esperado por ela. E ela que não, nem pensar, que tinha a agenda cheia, tinha que ir, já estava era super atrasada. 

(Outros tempos).

Mas do que eles sempre me contaram, os meus amigos caçadores, há limites ao número de peças. Para além disso, pagam por cada uma e, se bem me lembro, não é nada barato. Portanto, uma chacina como aquela que vi não me parece que tenha qualquer coisa a ver com o genuíno prazer de quem caça. Chacina pura, matança, crime, desrespeito, massacre. Nem sei. Ver aquelas imagens deixou-me consternada. Há pessoas vis, estranhas. Estúpidas. Nem sei o que pensar.

Quanto ao resto, o que tenho a dizer é que, nunca tendo tido coragem ou vontade de matar algum animal, muito pelo contrário, a verdade é que também não posso jurar a pés juntos que sou destituída de instinto de caçadora. Não posso mesmo. Diana. Artémis, chamava-me um poeta. 

Tirando isso, nada mais. Só se for piu-piu.

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Fotografias cá de casa ao som de Have Yourself a Merry Little Christmas pelas The Singers Unlimited num vídeo com imagens de Norman Rockwell, outro que é cá muito de meu agrado.

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E tenham um belo dia

2 comentários:

António Ferreira disse...

"...bazófias...", não "...basófias..."


Bom Natal e Bom Ano!

Um Jeito Manso disse...

Olá António, boa noite,

Ui.... Tem razão... Escapou-se-me. E eu, ao ler o seu comentário, não prestei atenção à vírgula e li: "bazófias" não, basófias -- e comecei a responder-lhe que não era basófias não senhor, era bazófias. Por sorte, a meio, olhei para cima e percebi que a vírgula estava noutro sítio e mudava o sentido da frase. Fui verificar ao meu texto e lá estava a argolada.

Portanto, muito obrigada!

Um feliz Natal também para si. Quanto ao ano novo nem vale a pena falar, pior que 2020 deve ser impossível. De qualquer forma, aqui ficam os meus votos de um 2021 bem bom.