Muita coisa, mil pormenores, mil aspectos a ter em atenção, volta e meia alguma coisa a sair do trilho, e eu, que gosto de acautelar cada pormenor e preparar previamente para que dê certo, a ficar levemente incomodada e, com mil cuidados e tentando toda a diplomacia, esforçando-me para ir levando a coisa ao sítio -- e quando o que se espera é que quem não tem que fazer nada se mantenha quieto para não causar entropia, aparece sempre quem esteja nos interstícios a minar, a chatear. E, portanto, no meio de mil coisas certinhas e programadas, recebo chamadas e mais chamadas de gente inquieta porque alguém lhes disse isto ou aquilo e são sempre coisas desestabilizadoras. E, de manhã à noite, entre reuniões consecutivas, recebo sms e chamadas ou a alertar-me para isto, aquilo ou o outro ou a pedir se posso esclarecer alguma situação que os traz preocupados e, sempre, sempre, sempre, tem a ver com boatos, intrigas, trapalhadas que algum ressabiado ou desocupado anda a lançar.
Não há muito eu tinha pensado que por estes dias estaria de férias. Impossível. Com compras para fazer, decorações de natal para montar e telefonemas pessoais para fazer e estou nisto, a tentar levar o barco a bom porto e a tentar que os macaquinhos parem sossegados.
Em dias assim, toda eu, da cabeça ao corpo, me peço descanso, tempo para mim, para as minhas coisas, mentalmente quase imploro a todos os santinhos que ninguém pegue no meu pé, me puxe pela mão, me chame, me mace, me serrazine. E, no fim, isto.
Salta, macaquinho.
Era nove e tal da noite, tinha o jantar ao lume, estava a falar com a minha mãe e só me apetecia chegar ao quarto, tirar os brincos, tirar o soutien. Disse isso à minha mãe. Ela disse que, quando era mais velha, a minha avó deixou-se de soutien, dizia que o soutien lhe fazia mal ao coração e que ela própria, agora, também já só usa soutien quando tem mais que ser, que parece que também lhe causa aperto no peito e que, inclusivamente, já tinha pensado, olha agora esta, querem lá ver que isto de não usar soutien é coisa de velha...? E eu a ouvir e a pensar: caraças, será? Dantes chegava a casa e tirava sapatos, sempre bem altos, depois tirava brincos, colares, soutien. O alívio que sentia fazia-me logo sentir mais descansada. Depois lavava-me, desmaquilhava-me, penteava-me e apanhava o cabelo, vestia uma roupa confortável. Agora não tenho sapatos altos para tirar mas só quando tiro o soutien sinto que entro no meu próprio tempo.
Agora, enquanto escrevo, ouço o médico Roberto Roncon, médico intensivista, falar dos doentes que acompanha, doentes covid que têm a circulação sanguínea feita fora do corpo. O que ele diz é extraordinário. O mundo vergou aos pés do corona. Claro que também fiquei a achar que ele fica melhor de máscara. Costumo vê-lo no hospital, cara tapada e agora está à civil. Raio de mundo este em que a gente até já gosta mais de ver uma pessoa de máscara, pessoa essa que há meses anda a falar-nos dos vivos meio-mortos a quem a covid retira o sangue das veias e o põe a circular fora do dono. Tudo estranho.
Agora está a Professora Carmo Machado que o melhor que teve para levar vestido a um programa na televisão foi uma camisa que não fecha no peito e que, por isso, está aberta até abaixo das mamas. Claro que não as tem à vista pois tem um top por baixo. Mas a camisa é para ela antes de estar do tamanho e largura que está. Penso que uma pessoa que opta por esta vestimenta para se apresentar na televisão diz muito de si própria. Nem para ir passear o cão à rua faria sentido ir naqueles propósitos. Mas, na verdade, o que é que isso interessa? O tema é grave e eu prendo-me a ninharias. Mas a que poderia prender-me quando acabo de ouvir a professora a dizer com sorrisinho lerdo que aposta na palavra zaragatoa para palavra do ano? Se aqui estivesse o meu marido seria bem capaz de dizer: é o que eu digo, as mulheres chegam a esta idade e ficam malucas. E escuso de especificar qual o sentido de maluquice a que se referiria.
E agora está Sérgio Ferraz, primeiro doente covid entubado no São João, e está de sobretudo e cachecol e óculos escurecidos, e tudo faz pendant com uma cabeça absolutamente calva, um ganda cenário. Mas eu, vendo-o assim encasacado, em vez de prestar atenção ao que diz ponho-me é a reparar que não sei se ele tem uma casa muito fria ou se ficou assim depois da covid. Até pode estar num estúdio e ter-se avariado o ar condicionado. E, lá está, nada disto interessa. Perdeu catorze quilos em duas semanas e isso, sim, interessa. É estranho, este mundo do caraças.
E agora o médico diz que, ao fim destes meses, ainda não sabe em que momento se deve entubar um doente. Entubar causa lesões, não entubar pode provocar morte. Se uma pessoa morre têm que analisar os seus actos médicos: deveriam ter posto o sangue a circular fora do corpo e não o fizeram? Entubaram tarde de mais?
A vida não na mão do próprio nem de um qualquer deus mas na mão de médicos humanos e que estão ainda em aprendizagem do que é esta doença. É da gente fugir disto tudo.
E vou mas é dormir porque estou para aqui a escrever por puro descaso. Se isto fosse um diário talvez eu escrevesse outras coisas, cá muito minhas. Assim, falo nem sei de quê, só mesmo por escrever.
Intercalo o texto com a arte de máscara, intervenção artística de Volker Hermes. Gosto. Quando eu saía de manhã, salto alto, tudo a condizer ou a contrastar, vestimenta e joalharia em harmonia com a disposição, lingerie obviamente a condizer, perfume a condimentar, não me ocorria que viria o dia em que esses rituais cairiam em desuso. Hoje produzi-me toda mas da cintura para cima, não usei saltos altos. Nem perfume. E, ao início da manhã, tocaram à campainha, o meu marido estava numa reunião, fui eu a correr ver quem era. Era o senhor que cá esteve a fazer uns arranjos que vinha tirar uma dúvida, ver se tinha acabado uma coisa. Fui à pressa pôr uma máscara. Nem um minuto esteve. Mal saiu, voltei à pressa para o meu poiso e, mal pousei, pensei que aquela máscara azul desmaiado não fazia pendant com a minha blusa preta sobre a qual tinha colocado um aparatoso colar encarnado, verde, turquesa e preto. Depois, pensei que, felizmente, em casa não tinha que usar máscara; senão em vez de conjugar a lingerie teria que passar a conjugar as máscaras.
Não sei se conseguirei voltar amanhã ou só depois do Natal dobrado pelo que daqui vos envio já a minha estima e, em especial para aqueles que estão sozinhos, doentes ou tristes, o meu abraço. É virtual, bem sei, mas, é o que há e, acreditem, é sentido.
Tirando isso, não nos esqueçamos daquela velha máxima: neste Natal, muito cuidado com o 'novo normal'. (Olha, versejei).
1 comentário:
Francisco de Sousa Rodrigues
disse...
Minha rica UJM,
Casa onde há amor é casa onde o Natal é sempre feliz, na sua há e muito, mas nunca é de mais desejar um Natal maravilhoso.
1 comentário:
Minha rica UJM,
Casa onde há amor é casa onde o Natal é sempre feliz, na sua há e muito, mas nunca é de mais desejar um Natal maravilhoso.
Um grande abraço.
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