sexta-feira, agosto 14, 2020

Quando não tem que ser





Pois é. No primeiro dia que fomos ver a casa, fomos com o senhor da agência. Quando entrámos, o meu marido apontou para as espreguiçadeiras e disse: 'está gente em casa'. Havia roupa nas costas das cadeiras. O da agência fez um ar admirado e disse: 'Disseram-me que não'. Quando abriu a porta, ficámos parados à porta. Da porta via-se toda a sala, tudo amplo, o chão em madeira, as paredes brancas, as paredes em vidro -- e via-se uns sofás amplos, em cinza claro, com um portátil aberto na mesa, uns óculos de aros de tartaruga, uma camisa de linho ao lado. O da agência estacou: 'Mau... Não me sinto nada confortável com isto... Informei que vinha cá. Não percebo.'. O meu marido, que não é dado a grandes estados de alma, limitou-se a perguntar: 'Que é que fazemos? Entramos ou não entramos?'. O da agência, atrapalhado, sem saber mesmo o que fazer: 'Pois... não sei... dá ideia que está cá gente...'. O meu marido procurou a campainha. Não encontrou. Perguntou, alto: 'Está alguém?'. Eu bati palmas. O da agência pôs-se ao telefone, ar aborrecido. Ouvi-o a dizer: 'Pá, computador aberto, óculos, lá fora roupa nas espreguiçadeiras, pá, eu avisei, disseram que sim'. Perguntei: 'Mas a casa ainda está habitada? Tinha percebido que não...?'. O da agência, desconcertado, que não, desabitada. Entretanto, eu, cusca, fui avançando. O meu marido também. Todos de máscara, bem entendido. O meu marido, avisou-me: 'Não mexas em nada'. Isto do covid mexe com ele. Espreitei para uma divisão mais do que ampla, com recortes de vidro na parede. Uma cama muito larga. Se calhar, uns dois metros de largura. A roupa de cama, tudo em branco, toda revolta, uma peça de roupa, branca, caída ao lago da cama. O da agência, incomodado, ao ver a cama toda mexida, voltou a dizer: 'Mau'. 


Mas a verdade é que fizemos a visita. Pé ante pé, a medo. Em especial quando espreitámos a casa de banho desse grande quarto, íamos um pouco atrapalhados. Convenci-me que podia estar a caminho de dar com alguém nu, no banho. Melhor: de pregar o susto da vida a alguém. Mas não, ninguém. Aliás ontem fiz confusão. A primeira vez que lá fomos foi assim. Na segunda vez é que fomos com o meu filho e família. Na primeira passou-se esta cena misteriosa. 

Dias depois de lá termos ido, de novo, o meu filho, que estava maravilhado pela casa, voltou a passar por lá. Carros à porta, vozes e animação vindas do jardim. Perguntei ao da agência: 'Afinal o que se passa? Parece que está mesmo gente por lá...'. Ele confirmou: 'Já lá passei várias vezes e vejo sempre carros e ouço vozes, risos.'. Perguntei: 'Mas terão a casa alugada?'. Ele disse: 'Dizem-me que não, que apenas, às vezes, emprestam a casa a amigos.'. Mas a verdade é que deixaram de responder à proposta que voltámos a fazer para nos aproximarmos do que eles queriam. Insistimos. O da agência, constrangido: 'Pois, não sei o que vos diga. Dá ideia que perderam o interesse em vender, não respondem. E, é verdade, está sempre gente por lá.' Perguntei: 'Mas não serão eles? Os donos? Se calhar estão na sua própria casa'. Explicou que não. 'Não, não. Os donos vivem fora. Nós falamos é com o procurador deles.'.


Durante algum tempo ainda alimentámos a expectativa de que o mistério se resolvesse e que os donos dessem o ok que faltava para se avançar para a formalização. Mas, ao mesmo tempo, eu não estava a ver como aproveitar alguma coisa dos meus tarecos numa casa daquele género. O meu filho, então, desenhou, de cabeça, as plantas e alçados e etc da casa, estimou medidas e tentou demonstrar como a casa ficaria em harmonia com o seu projecto inicial mesmo que aproveitando alguns dos meu móveis.

Mas o meu sexto sentido dizia-me que se calhar não, que o meu caminho não se faria por ali. 

Nas casas, como nos amores, a coisa tem que ser fuida, sem escolhos, sem mas-mas, sem pulguinha atrás da orelha, sem reserva, sem desconfiança. Não se ama verdadeiramente uma pessoa e, ao mesmo tempo que se quer que seja amor total, em segredo se pensa que o diabo é aquela voz de gaitinha, aquele perfume incomodativo, aquele hábito de fazer aquilo que, no fundo, não tem nada a ver connosco. Isso não é amor, isso é uma ficção. Amor que é amor vai com tudo, de cabeça: gosta-se de tudo, é tudo bom, a voz, o cheiro, a forma de beijar, a maneira de ser, a forma de dizer, a forma de andar, a forma de estar em grupo ou em privado connosco. Numa casa é a mesma coisa: casa que nos vai fazer felizes tem que ser assim, amor total, gostar-se de tudo. Mais: tem que se sentir que a retribuição é total. Tal como no amor, o investimento deve ser equivalente, sobretudo o investimento emocional. A entrega deve ser na mesma medida. A casa também. Temos que nos sentir virtuosamente acolhidos por ela. Não pode haver funfuns e gaitinhas, ai tanta janela, ai que quase nem tem paredes, ai onde é que vou pendurar os meus quadros?


Pensei: não tem que ser. E falei com o meu marido: vamos esquecer. Ele disse: 'Também acho.' Aliás, quando eu dizia que os outros não respondiam, que parecia que afinal já não queriam vender, ele dizia que devíamos era mandá-los a um certo sítio. 

Portanto, embora percebendo o desgosto dos três manos e respectivos progenitores, fiz write off da casa de sonho. Já era. Bye bye. Quando se percebe que não tem que ser, que não tem a ver connosco, o melhor é dar as costas, mandar à fava, esquecer, não pensar mais nisso. E sou assim mesmo: quando desisto, vejo defeito que antes parece que não via, vejo mil razões para tirar daí o sentido. Fecho a porta. Não existiu.

E, portanto, no que à casa diz respeito, depois dessa expectativa gorada voltei à estaca zero.

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Pinturas de Rudi Patterson 
a acompanhar Jorge Palma (aqui com Sérgio Godinho): 'Quem és tu, de novo?'

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E sejam felizes, está bem?

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