quinta-feira, agosto 13, 2020

A nossa casa




Quando o vendaval começou a rodopiar em minha volta, só me apeteceu levantar os pés do chão, cortar raízes, mudar completamente a minha vida. E mudei.

E, às tantas, ao mesmo tempo que me preparava para mudar de emprego, de local de trabalho, de tudo, e não sendo capaz de despir a pele e aparecer com uma nova, apeteceu-me também mudar de casa. Durante meses, à noite, andava a ver sites de casas. Era disso que eu falava. O rival do blog, o que retinha a minha atenção, era isso: pesquisar casas. Mil casas. Depois também a minha filha. Mandava-me listas de links. Entusiasmavamo-nos, achávamos que uma tinha potencial, outra tinha graça. O meu marido nestas coisas põe-se à margem. Acha que são maluquices. Coisas tuas e da tua filha, dizia. Quando não adere às iniciativas demarca-se tanto que até parece que a filha é só minha. Nós duas fazíamos short lists, telefonávamos para as agências, pedíamos informações, visitas virtuais. Ele nem aí. A minha filha via a coisa a progredir e perguntava: 'E o pai? O que é que o pai diz?' e eu respondia com a verdade: 'nada'. Ela própria inquiria o pai. Não conseguiu mais do que eu: 'Vocês são malucas' ou 'Não tenho nada a ver com isso' ou 'Isso são coisas da tua mãe'.


Querendo saber a opinião do meu filho, eu mandava-lhe links. Também não ligava, achava que não havia qualquer racionalidade no processo, dizia que não se percebia a lógica por detrás daquelas opções, que nada naquelas escolhas fazia sentido, dizia 'tu e a mana embarcam as duas num entusiasmo que não tem qualquer racionalidade' ou 'exactamente, qual a ideia?' e, a maior parte das vezes, nem respondia aos mails que eu lhe mandava.

Fomos ver algumas ao vivo. O meu marido contrariado. Antes de ir e de vê-las já tinha decidido que eram 'uma porcaria'. Em todas eu via um lado bom: se fizer obras, se modificar, imaginava eu as possíveis virtudes. O meu marido, contrariado: 'só perder tempo'. Achava as casas uma porcaria, os locais uma porcaria, a ideia descabelada.

Foi neste processo que constatei como há tanta casa tão feia, tanta casa esquisita, tanta gente com mau gosto, tanto ambiente depressivo, piroso, estranhíssimo. 

Até que um dia reequacionámos tudo, pusemos tudo em perspectiva. E se a decisão fosse ainda mais radical? E se olhássemos para outro tipo de casas, para outros lugares?

Aí, o meu marido e o meu filho começaram a prestar atenção. A minha filha apoiou a mais do que cem por cento.


Um dia, estava eu a espreitar sites, descobri uma casa extraordinária, daqueles projectos de arquitectura arrojada, uma casa feita para existir quase vazia, só a casa e o espaço. E a luz...? Liguei para a agência, perguntei ao meu marido se lá poderíamos ir ao fim do dia. Nem lhe mostrei a casa. Sabia que ele ia adorar. Mandei o link aos meus filhos. A minha filha não ficou entusiasmada, o meu filho amou. Como foi muito em cima da hora, ela não conseguiu ir. Ele sim, ele, a mulher, os filhos.

Lá chegados, toda a gente ficou encantada. Coisa para além de. Parecia que estávamos num outro lugar, a viver num outro comprimento de onda. O meu marido olhou para mim, surpreendido. Vi que seria com agrado que lá viveria. A minha menininha chamou-me de lado e disse-me: 'Eu vivia aqui na boa'. Corriam pela casa, contentes, escolhendo quartos. Na divisão grande, esconsa, decretaram que dormiriam eles e os primos.

A mim surgiam-me dúvidas: lavar tanta janela, tantos painéis de vidro, tão grande clarabóia. Diziam: terá que se contratar uma empresa. Mas logo todos diziam: tanta luz, à noite a ver-se o céu do sofá. E era, tanta luz, tanta amplitude, aquele terraço largo, as divisões comunicando-se, quase sem paredes. A cozinha cheia de cor e luz, aberta, ampla. 

Hesitei. Eles queriam. A minha filha na dúvida, dizia que a arquitectura mais lhe parecia de hotel que uma casa. Eu pensava na decoração: teria que me desapossar de grande parte da minha mobília, bibelots nem pensar. Mesmo quadros seria difícil, tudo tão amplo e aberto, tanto vidro e portas e janelas, quase nenhumas paredes boas para pregar quadro. Mas como, justamente, estava mesmo nessa, de me desfazer de tudo o que fosse passado e presente, não seria por aí. É que havia também o preço: um bocado acima do orçamento. Partimos, pois, para a negociação. Fizemos uma proposta agressiva e, para nossa surpresa, do lado de lá, em vez de nos mandarem passear, veio uma proposta a meio caminho.


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Hoje fico-me por aqui, estou cansada demais (e talvez percebam agora melhor que arrumações radicais são estas em que ando metida e porque é que chego a esta hora com os bofes de fora).

As pinturas são de Georgia O'Keeffe e quem a acompanha é Maria Bethânia com 'A nossa casa'

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Desejo-vos uma bela quinta-feira.
Saúde. Sorte. Alegria.

4 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Minha riqueza, estou tão contente com as boas novas que nos dá.
Outro dia, numa questão muito mais simples, também fiz finca-pé e quando vi os resultados fiquei rendido.

Bons preparativos para a mudança.

Aquele abraço.

Estevão disse...

… ter capacidade e possibilidades para conceber e erguer uma casa a seu gosto e optar por esbanjar estas valências na procura de uma outra feita a gosto alheio,
lembra-me uma pessoa das minhas relações que quando alguém se levanta do sofá, corre de imediato a ocupar-lhe o lugar. Diz que é por estar quentinho.

AV disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
AV disse...

Boa sorte nesta fase de mudanças. Vejo por um dos posts que se segue que acabou por escolher um espaço onde os seus livros, quadros e o que tem adquirido ao longo da sua vida se enquadram, ao contrário do que na casa que aqui descreve. Boa decisão.