domingo, abril 12, 2020

O quanto lhes devemos





Nunca como antes ficou tão evidente o quanto todos precisamos de todos e o quão importantes -- e vitais -- são algumas das profissões de que tanto nos esquecemos ou que tão arrogantemente menosprezamos.

Se uma grande parte de nós pode estar confinada, protegida de contágios, trabalhando em casa, uma outra parte tem que continuar a sair todos os dias para manter os serviços essenciais a funcionar e para garantir que a cadeia de abastecimento não se interrompa, vencendo o medo, correndo riscos, muitas vezes separando-se da família. 

Claro que, desde logo, obviamente, os profissionais de saúde -- embora desses talvez não se possa falar tanto em baixos ordenados (pelo menos, de forma generalizada) mas em que, tema de cifrões à parte, o que há a enaltecer agora é a dedicação, a entrega, a superação que os leva a enfrentar o risco de peito feito -- mas, também, os técnicos que mantêm os equipamentos operacionais e os auxiliares, os bombeiros, os funcionários dos lares e residências de terceira idade.

E, uma vez mais, refiro também os que trabalham nas empresas de águas, nas empresas de electricidade, nos operadores de comunicações, os camionistas, os que se ocupam da recolha de lixo, os empregados dos supermercados, os agentes de segurança, os farmacêuticos, os motoristas de transportes públicos, os carteiros, os operários fabris cujas fábricas ainda laboram, os entregadores de tudo, os donos e empregados de pequenas mercearias, e tantos, tantos outros. 

A todos esses nunca agradeceremos o suficiente. E seria bom que a nossa memória, que é fútil e fugidia, nunca os esquecesse. Devemos-lhes tanto. 

Uma parte significativa das pessoas infectadas pelo corona serão, certamente, pessoas com essas profissões. Só ligados à Saúde, se bem registei, serão mais de mil e quinhentos os que já foram infectados.

Para nós que, quando vamos ao supermercado, chegamos a casa e nos lavamos e relavamos e que temos mil cuidados com as coisas que trouxémos (e fazemos bem), imagine-se os riscos que as pessoas que circulam, que lidam sabe-se lá com quem, com  o quê, correm. E, no entanto, todos os dias têm que fazer frente à inquietação e ir à luta.

Não sou moralista e detesto a caça aos culpados de cada vez que acontece alguma coisa. Mas esta situação da covid que, à primeira vista, parecia uma treta sem relevância, um corona como tantos outros, uma cagada em três actos, veio a revelar-se a gota de água que fez transbordar o desconchavo que é este mundo. Os países paralisados, as ruas desertas, as lojas fechadas, as escolas vazias, silenciosas, grande parte das fábricas paradas, alguns países a deixarem morrer ao abandono os seus mais velhos ou os mais pobres, mortos a serem deixados à espera de vaga na morgue, enrolados em plástico ou enfiados em caixões de cartão ou enterrados em valas comuns -- tudo coisas impensáveis nestes tempos que julgávamos de abundância, nestes tempos que julgávamos civilizados.
[E isto também já para não falar numa coisa de que um dia iremos perceber o alcance mas que, para já, não é tema para aqui chamado: em toda a linha da satisfação das necessidades vitais, equipamentos e tecnologia chinesa. Em tempo de guerra não se limpam armas e, estando em causa a vida humana, a nacionalidade das armas e munições é secundária. Mas é tema a que, quando estivermos saudáveis e fortes, a viver uma vida normal, certamente haveremos de voltar.] 
Para concluir, que hoje não me sinto de muita conversa: um dia que tenhamos que voltar à normalidade, à 'nova normalidade', certos de que ainda corremos riscos -- conscientes de que são sempre muitos os riscos que corremos porque essa é a nossa natureza, frágil, efémera, vulnerável  -- tendo que vencer o medo, é bom que nos lembremos de quem nunca pôde estar resguardado, de quem, todos os dias, venceu o medo para que nós, os fantásticos e os melhores do mundo, pudéssemos estar resguardados.

Embora por melhores palavras, é também isto que diz Emily Maitlis.

______________________________________________________________________

Já depois de ter escrito isto, vi no DN que também o Pedro Marques Lopes fala no tema:
A menos democrática das crises

_______________________________________________________________________


Antes de começar o post, vinha para falar do meu dia -- que foi de trabalho de manhã e tranquilo à tarde, ao sol e entre passarinhos -- mas, não sei porquê, comecei a pensar no dia em que vamos sair da hibernação... e derivei para isto. Não nos vai ser fácil, imagino. O mundo que conhecíamos deverá, então, parecer-nos estranho. Deve parecer-nos pouco seguro. Depois, dei por mim a pensar outra vez nas pessoas que continuam a dar o corpo às balas enquanto os outros, como eu, se confinam, tudo fazendo (e bem) para quebrar os elos de propagação do vírus. Não sei como faremos para agradecermos a essas corajosas pessoas e, sobretudo, para que passemos a tratá-las com o respeito que lhes é devido.

Claro que não devia aperaltar o texto com macacadas, pinturas ou esculturas com máscaras,  mas é que acho que não vale a pena pôr um ar ensimesmado para falar de coisas sérias. E, de resto, andarmos com máscaras vai ser o que nos espera nos próximos tempos. E também sinto que deveria ter esperado por um texto mais adequado para aqui partilhar o Moving On pelo Leonard Cohen. Mas, na volta, não bato certo e o que melhor se me ajusta são coisas que pouco têm a ver umas com as outras. Seja como for, peço que também vejam o vídeo do Moving on, tão bonito.

______________________________________________________________________

A quem atribua um sentido religioso ao dia, desejo que esta Páscoa traga a esperança que a ressurreição significa.

A todos, desejo força para lutarmos todos, juntos, por um mundo melhor, por uma vida mais feliz.

6 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Sem dúvida!
Um viva a todos eles.

Mais uma vez, uma bela Páscoa no seu abençoado heaven

Anónimo disse...

Sim, o vídeo do Cohen é muito bonito. É a casa dele em Hydra, uma ilha maravilhosa onde não há carros, apenas burros como meio de transporte (ou as perninhas).
E há gatos, muitos, muitos gatos...
Não conhecia este vídeo, gostei muito e agradeço :)

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Esta Páscoa foi diferente para si, não foi? Haveria de ter celebrações lá na sua igreja não era?

E é isso, um viva agradecido aos que cuidam dos doentes neste momento tão perigoso, e de todos quantos mantêm o país vivo, mesmo tendo que se arriscar.

Uma boa semana para si, Francisco!

Um Jeito Manso disse...

Olá,

Sim, bem sei, é de um dos lugares onde Leonard Cohen foi feliz, um lugar luminoso onde a vida e o amor lhe foram lugares felizes, para sempre na sua memória (e, através dele, também na nossa).

Obrigada por ter deixado a referência.

Uma boa semana.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

É verdade, mas tive oportunidade de à distância participar em celebrações maravilhosas. Na paróquia do Parque das Nações há um senhor que canta tão bem ao estilo dos nossos amados cantores de intervenção e o Dom Américo Aguiar é Bispo e meio.
O regresso à "comunhão em comunidade" vai ser tão gostoso.

Um boa semana também!

Anónimo disse...

Faltou dizer, ou relevar, no que respeita aos diversos e variados profissionais que mencionou, que ganham salários que são obscenos, por tão reduzidos! Já imaginou quanto ganha uma funcionária que está ao balcão de um supermercado, como diz a arriscar a vida (ao contrário de nós, eu, você e tantos outros, no confortozinho das nossas casas), ou uma enfermeira, ou todos aqueles que referiu? Provavelmente não faz. Não é defeito. É assim. "A vida de uns não nos diz respeito".
Mesmo os médicos, na sua maioria, nas suas funções no SNS ganham mal - muito longe do que ganha uma ou um gestor/a ou alto funcionário de uma grande empresa privada, por exemplo. Quando não têm a responsabilidade especial daquele médico/a, sobretudo quando confrontado com uma situação pandémica como a que vivemos.
Esse aspecto, quando lembramos aqueles profissionais, não deve ser esquecido. Mas sublinhado. Como escreveu e muito bem o Pedro Marques Lopes.
a)P.Rufino