sábado, abril 11, 2020

Quinta-feira santa, dia de quase milagre: o gato cor de mel veio na minha direcção, aproximou-se, senti a sua hesitação e vontade






Estava a andar lá em baixo, longe, sozinha, devagar, por entre as árvores, alheada de tudo, vendo as florzinhas, a luz a dar num caule, a translucidez de uma folha trespassada pelo dourado do fim da tarde, as pétalas derramadas sobre a rocha ainda molhada pela chuva de ontem, baixando-me para fotografar rente ao chão ou para passar a mão e sentir o perfume quando despertei para os sons ocultos.

Um pássaro soltando as asas para se ajeitar devagar dentro da árvore, duas rolas afastando as ramagens para voar para longe, um rastejar ao de leve, pequenos sons de algum pequeno animal que se esconde, um insecto que vagueia por entre as flores. Sons íntimos, quase inaudíveis. A caruma molhada está macia, abafa o som dos meus passos vagarosos, sou apenas uma sombra que desliza em estado de puro encantamento. 


Antes tinha estado deitada na espreguiçadeira sob a figueira grande. Quando o sol estava franco, despi-me e fiquei a sentir o sol. Colocava o livro em frente para conseguir ler e para me fazer sombra na cara e, às tantas, pousei o livro aberto para me tapar os olhos e adormeci. Já aqui o disse muitas vezes mas digo-o de novo. Gosto muito de estar deitada, à tarde, a ler, ao sol, e depois sentir o sono a chegar devagar. É como se o estado de inconsciência viesse devagar, pelas mãos condescendentes da minha consciência. 


Quando acordei, estava frio e o sol estava escondido atrás de uma nuvem escura e grande. Tive que me vestir. E ali fiquei a ler, tranquila. Tenho este livro comigo há que tempos e abro e leio ao acaso e a descaso e sempre me agrado com a inteligência e mestria do seu autor. E elegância e sensibilidade. Por vezes leio e sei que já li antes. Mas leio na mesma, não me canso. Há uma tal fertilidade no verbo que é como a natureza, por muito que a contemple, sempre tenho é vontade de ver mais de perto. Por vezes, pego no telemóvel para ver as pinturas de que ele fala. Releio o texto depois de ter visto a imagem, releio com outro olhar, depois vou ver de novo a imagem e vejo-a já com outro saber. Há nesta delonga um duplo prazer, o da arte nas palavras e o da arte nas imagens.

E, então, à medida que ia saboreando devagar cada palavra, fui-me dando conta, de novo, dos sons. Poderia dizer: do silêncio. Mas não, não é silêncio. É o canto dos pássaros. É o que parece ser riso de uma criança, muito ao longe. Apuro o ouvido: é mesmo a voz de uma criança. Deve vir da aldeia lá longe, a uns dois ou três quilómetros, com um vale pelo meio. E o som da sua voz chega até aqui. Depois um sino ainda mais longe. Talvez venha da serra. Depois um cão que ladra não se sabe onde. Envoltos em silêncio, chegam-me, suaves, os sons do campo nestes dias em que a vida, por todo o mundo, se recolheu. A natureza está entregue a si própria, em liberdade, como se estivesse a regressar ao início dos tempos.


Passado algum tempo, como já estivesse a ficar frio, fui a casa agasalhar-me e voltei para a rua. Fui caminhar lá para baixo. 

O tempo vai passando devagar. Já lá vão quatro semanas. Nunca antes aqui tínhamos estado tanto tempo de seguida. Tantas vezes, nesses longínquos tempos antes do covid, desejei não ter que me ir embora naquela hora em que o sol, pondo-se na serra ao longe, derramava uma luz dourada que vinha de lá, lentamente, pelo vale, até aqui. Tantas vezes quis estar aqui, sem pressa, sem ter que abandonar a quietude e as cores e o canto dos pássaros. E agora aqui estou. 


Fui, pois, lá para baixo. Gosto de respirar fundo enquanto caminho. Inspiro profundamente, retenho, expiro devagar. E de novo. E de novo. E de novo. O ar puro e perfumado circulando dentro de mim. Cheira a eucalipto, cheira a pinheiro, cheira a alecrim, cheira a rosmaninho, cheira a caruma molhada, cheira a voo de borboleta, cheira a canto de passarinho, cheira a luz acobreada do sol a pôr-se, coalhando em mil brilhos sobre os cedros e sobre as flores.

E, então, indo eu nesta levitação, sinto-me olhada. Parei.


O gato branquinho e cor de mel raiado estava parado no caminho, um pouco mais à frente. Sem se mexer. Eu também parada. Depois veio, devagar, na minha direcção. Eu arrepiada. Ele a olhar para mim, andando devagar. Eu sem saber o que fazer.

Muito devagar, com medo de o assustar e quebrar o feitiço, levantei a máquina e fotografei. Nessa altura mudou de ideias, voltou atrás, devagar. Ainda fiz bjjjjj-bjjjjj-bjjjjjjj, baixinho, baixinho. Olhou para trás, parou, depois seguiu. Virou à direita, para outro caminho.


Senti que um dia, talvez não falte muito, virá mesmo ao pé de mim. O que farei eu, se isso acontecer? Baixo-me? Espero que se abeire, que se encoste a mim? Faço-lhe umas festa? Nunca fiz uma festa  a um gato. Gato é bicho arisco. Tenho medo. Talvez não medo, talvez respeito. Um dia uma pessoa muito especial disse-me que os gatos são deuses. E eu acreditei. Não se faz uma festa a um deus. Não sei o que farei se o gato cor de mel vier ter comigo. Não sei o que espera ele de mim. O cão é bicho mais humano, sei lidar com cão, cão é bicho igual. Gato não, gato não sei, é bicho distante, bicho superior, desconheço o íntimo de bicho assim, bicho que tem o seu quê de melancólico, não sei como pensa, não sei como sente. 


Depois regressei a casa. O sol estava a pôr-se. Os pássaros cantavam com maior alegria. Talvez seja a forma de se despedirem antes de se recolherem. É a hora mais misteriosa, a hora dos segredos, dos murmúrios, da saudade.


Quando regressei, fui fechar o portão que dá lá para baixo. Em tempos, antes de termos a vedação em parte do terreno, este era o único portão. Era uma maneira de tentarmos evitar que os caçadores se acercassem da casa. É um portão alto, de ferro, desenhado por mim. Agora não tem grande justificação. Mas ainda mantemos o hábito de o fechar.

As luzes da casa já estavam acesas e eu, de fora, fotografei os reflexos na porta de vidro. O meu marido admira-se, nunca percebe o que ando eu a fazer durante tanto tempo lá por baixo, lá por tão longe, diz sempre que eu não devia. Mas devia, devia sim. Os sons do anoitecer atraem-me. Tudo o que desconheço me atrai.


E agora que coloco aqui a fotografia vejo que o céu que se vê está azul claro como se não estivesse a anoitecer. E, no entanto, a penumbra já tinha descido da serra. Um milagre. E é nestes milagres que eu acredito, os que trazem os mistérios envoltos em surpresa e beleza. 

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E, por falar em beleza...


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A todos desejo um sábado muito bom

12 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Traduzir o belo por palavras, arte em que a UJM é mestre.

Uma bela Páscoa, desfrutando das maravilhas que pode contemplar.

João Lisboa disse...

"Nunca fiz uma festa a um gato"

... !!!... ... ... !!!...

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Ah se o gatinho lhas pedir, dê-lhe festas sem medo. Tenho cá 8 e gostam muito de mimos, tal como os cães.

Um abraço.

A.Bernardo disse...

Fixei o episódio do gato e vou dizer-lhe como pode conquistar a sua amizade.
Um dia em que o veja a fixar a atenção em si, sente-se, mesmo que seja numa pedra que esteja ali a jeito.
Fique imóvel (eles não gostam de movimentos bruscos), fixe-o nos olhos, ele olhará para si, fale-lhe com voz baixa e meiga, não faça quaisquer movimentos, só isso.
Ele vai dar pequenos passos em sua direcção, continue assim, falando docemente para ele e não se mexa.
Vai demorar muito tempo, mas a pouco e pouco ele vai aproximar-se, vai começar com a pata a tocar no seu pé, uma vez, duas, várias vezes, até que vai dar um salto para cima das suas pernas...e só nessa altura lhe pode mexer, mas sempre com calma e sem movimentos bruscos.
E a partir aí terá um novo amigo.
O texto foi longo, mas enquanto escrevia estava a ver o que aconteceu comigo, há muitos anos, com um gatinho preto, muito esquivo mas que ficou meu amigo por muitos anos.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Sabe, em relação aos gatos, tenho sempre a impressão de que, sendo esquivos, podem assustar-se e assanhar-se comigo, eriçar-se, arquear o corpo, tentarem atacar-me. Sempre os temi. Penso que talvez seja por a minha mãe também ter medo e sempre o dizer. Herdei o medo dela.

Depois a namorada do meu filho tinha um gato. E o gato odiava o meu filho. Quando ele estava sentado no sofá com ela, o gato, vindo do nada, ciumento, saltava-lhe para cima, para o atacar. Arranhava-o. E eu, ouvindo aquilo, ficava apavorada. E ainda mais receosa em relação a gatos fui ficando.

Mas tenho que vencer este medo.

Abraço. E boa Páscoa! Sei que para si é um dia com significado e, por isso, desejo que seja um dia que venha com muita esperança.

E saúde, Francisco.

Um Jeito Manso disse...

Pois é, João, quando tinha a minha cadelinha mais querida, uma boxer doce como o mel, abraçava-a, deixava que ela me abraçasse, brincávamos as duas, muitas vezes eu deitada no chão e ela abraçada a mim, e éramos amigas de verdade, totalmente confiantes uma na outra.~

Com gatos é esta estranheza, este receio, este não saber lidar com eles. Não sei se são bichos de reciprocidades, em quem se possa confiar plenamente.

Mas um dia vou vencer isto e, quem sabe, ainda um dia estou aqui a escrever com um gato ao meu lado. Custa-me a acreditar mas, sei lá.., nunca se sabe.

Um bom dia de domingo, João.

Um Jeito Manso disse...

Ah, A. Bernardo, que até me sobressaltei quando cheguei ao ponto em que ele me salta para as pernas. Se isso acontecer, como vencer o medo e manter-me calma, a falar baixo...? Como evitar dar um grito, levantar-me, aflita, desatar a correr, cheia de medo...? Como saber que não vai atacar-me...? Arranhar-me a cara..?

Mas agora que o referiu vou estar prevenida, vou ter coragem, vou tentar vencer o medo. Se calhar, ontem, quando ele veio devagar na minha direcção, se tivesse feito tal como diz, talvez ele tivesse mesmo vindo ter comigo. E baixar-me parece-me importante. Assim, sentir-me-á disponível para me aproximar.

Muito obrigada, gostei muito de ler o que escreveu. Parece-me o conselho de que estava a precisar para saber como agir.

Um bom domingo de Páscoa, A. Bernardo.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Eu já havia percebido que tem um rol de más experiências com os bichanos e é verdade que são ágeis e quando se zangam, cuidado, mas quando os conhecemos e nos conhecem, são tão mimalhentos com o mais doce dos cães.

Obrigado e uma boa Páscoa também, de facto não há maior simbolo de esperança do que a imagem da Ressurreição.

Um rica semana, também.

João Lisboa disse...

"Mas um dia vou vencer isto e, quem sabe, ainda um dia estou aqui a escrever com um gato ao meu lado"

Se tudo correr bem, não vai estar com um gato ao seu lado, mas, ao seu colo, exigindo que lhe preste mais atenção a ele do que ao teclado e, até, às vezes, fazendo uns copy-psste catitas. Como dizia um cat lover de que não me recordo o nome, no antigo Egipto, os gatos eram venerados como deuses e nunca mais se esqueceram disso.

A. Bernardo disse...

Cara UJM, calma e sem medo, faça como lhe disse e terá um novo amigo de companhia - o seu bonito gato cor de mel.

Espero que tenha tido um bom Domingo de Páscoa, mesmo longe dos seus mais queridos que tantas vezes nos descreve com todo o entusiasmo e, agora, tristeza e saudade. Não foi a única.
Continue bem, longe e livre do maldito corona, mantenha o entusiasmo da oferta diária das suas interessantes histórias.
Os seus leitores agradecem.
AB

Um Jeito Manso disse...

Olá João,

E logo hoje que, depois de ter lido o seu comentário, estava com vontade de me chegar perto de um pequeno deus, é que ele se manteve distante. Não o vi.

Tal como os deuses, tenho ideia que os gatos não se querem domésticos. Mas, se calhar, há alguns que já foram catequizados e gostam do conforto do lar. Mais umas semanas aqui, in heaven, hei-de chegar a uma conclusão. 😽

Uma semana boa para si, João (Mr. Cat Lover, I presume).

Um Jeito Manso disse...

Olá AB,

Sabe que geralmente chego aqui e não tenho qualquer ideia sobre o que escrever. Não tenho assunto. Aqui confinada, neste meu mundinho protegido, longe dos reais problemas, parece que ando em círculos, com nada que valha a pena dizer. Mas estes meus dedos têm vida própria, gostam de andar por aqui a saltar de tecla em tecla e eu deixo-me estar a ver o que eles escrevem. E não estou a fazer género, é mesmo verdade.

Por isso, não me admirarei nada se quem me lê acabar por se cansar. É que não tenho nada de novo a contar, isto é mesmo só gosto por escrever.

Mas fico contente por haver quem goste. Sinto-me agradecida pela companhia.

Uma seana boa para si, AB. E obrigada.