Durante os primeiros tempos assisti, revoltada, preocupada, a uns tontos a não perceberem o que estava a acontecer. Gabavam-se que não tinham medo, gabavam-se de não fazer parte dos grupos de risco. Punham os outros em risco ao exibirem a sua marialvice que não era senão estupidez.
No espaço de dias foram ultrapassados pelos acontecimentos. Estão em casa, calados, sem saberem qual o seu espaço nestes tempos de confinamento, reduzidos à sua inutilidade.
Entretanto, algumas pessoas conscientes, desde logo, assumiram várias linhas de conduta e aí animei-me: em primeiro lugar preservar a saúde das pessoas, em segundo lutar pelo rendimento que auferem, em terceiro -- ou ao mesmo tempo, sabe-se lá qual a real ordem dos factores quando a gente mergulha de cabeça na procura de uma solução -- aguentar a sustentabilidade das empresas, não interromper a cadeia de valor, não deixar de pagar a fornecedores. Meio mundo para casa em teletrabalho e, ao mesmo tempo, assumir mil cuidados para que quem tem que continuar a trabalhar o faça em segurança. Tem sido uma luta. Tudo se tem feito, tudo. E tem estado a correr menos mal.
Muita gente começa a adaptar-se. Outros continuam sem perceberem nada e sem conseguirem acompanhar o andamento das coisas. Mal nos lembramos deles. Hoje lembrei-me de um e lembrei-me para pensar que há que séculos que nada sabia dele, que há séculos que nem me lembrava dele, para constatar a pouca falta que faz.
Começa agora a pensar-se no retomar. E, uma vez mais, os que não perceberam antes, continuam a não perceber agora. Acham que se vai voltar para os mesmos lugares, nas mesmas condições. Não vai. Digo: não vai. Ficam calados. Se insisto, dizem: logo se vê. E eu percebo que é uma maneira de dizerem: não chateies. Mas não sou só eu, é meio mundo que diz o mesmo: não vai voltar a ser o mesmo.
E há que começar a pensar em como vai ser. É nisso que deveríamos estar concentrados. É que vai ser muito diferente. Nós vamos estar muito diferentes. Por isso, grandes mudanças devem ser encaradas.
Quem for inteligente, ajustar-se-á e saberá ficar bem, talvez melhor que antes. E este 'quem' não é apenas aplicado a pessoas, é também a empresas e organizações em geral. As empresas podem ser mais sustentáveis, melhores, melhores para os trabalhadores, melhores para o ambiente, para a economia em geral.
Pelo meio, perder-se-ão hábitos antigos. Mas ganhar-se-ão outros. O padrão de consumo vai mudar e pode ser que mude para melhor.
Contudo, vi uma fotografia da abertura da Hermès na China, depois do confinamento, e fiquei com dúvidas quanto à minha ideia: filas compactas na rua, muitas pessoas sem máscaras, uma loucura, tudo ávido de consumo, tudo a marimbar-se para o corona, tudo danado para matar saudade de écharpe, de gravata, de luxo. Olhei a fotografia e pensei: será que o bicho homem é burro mesmo, não aprende nem por mais uma?
Mas sou crente. Não crente de dar beijo em cruz que alguém segure por mim mas crente de crer mesmo, no mais íntimo de mim, na capacidade de superação de que, por vezes, o bicho-homem é capaz. Desde que bem enquadrado, desde que com baias, sem ter muito por onde se espalhar, bem trabalhadinho, o bicho-homem é capaz de lutar pela sua sobrevivência e é capaz de criar belas obras de arte, belos feitos, belos actos de generosidade. Acredito nisso. E acredito na força da natureza. Cada vez mais, acredito na imensa sapiência da natureza. E acredito na omnisciência, omnipresença e omnipotência do tempo. O tempo e a natureza e uma carreiro apertado e bem vigiado na carneirada que é o bicho-homem e talvez a coisa vá.
Aqui no campo, com o tempo frio e chuva que deus a dá, só tenho os canais generalistas e o computador. Sou, pois, poupada a comentadores ou a notícias dadas e reprocessadas. São poucos os comentadores que vejo e, ainda assim, ou é gente de saber ou vai de asa. Por isso, apenas ao de leve me chegam ecos de gente ansiando pelo regresso. Não sei bem o que defendem nem me interessa. O que eu sei, mas sei por mim e sei pelo que vejo nos círculos em que me movo (agora, de forma virtual), é que, tirando os descerebrados do costume, o que há é muito cuidado. Em casa os que podem ficar em casa e, quase numa redoma e sob apertada monitorização, os que têm que sair para ir trabalhar no local de trabalho habitual. E muito agradecimento, muito, muito, muito, a todos os que se arriscam todos os dias. E que assim continue enquanto não existirem melhores informações ou tratamento ou vacina.
Claro que, no meio da desgraça que está a acontecer à economia, tenho a sorte de trabalhar num Grupo grande, que opera em áreas que, apesar de tudo, apresentam maior resiliência face a este embate. Mal, mal, está tudo o que tenha a ver com turismo, com restauração, com espectáculo, com pequenos estabelecimentos, com actividades individuais (por exemplo, como estará a aguentar-se o pequeno salão de cabeleireira de bairro, em que só há uma cabeleireira, a dona, onde vou quando o rei faz anos?; e como estarão a aguentar-se as empregadas de limpeza dos escritórios que estão fechados?; e será que todas as clientes de empregadas domésticas lhes pagam como se elas estivessem a trabalhar?; e será que faz sentido eu continuar a ter empregada doméstica se ficar em casa nos próximos meses, sei lá quantos? e os ATL? o que vai acontecer a todos os funcionários se, nos próximos tempos, os pais vão estar, na maior parte, em casa? etc. etc, etc). Muitas dúvidas, muitas armadilhas, muitas incógnitas.
Por isso, antes que se comecem a dizer coisas, deve é pôr-se os pés na terra e começar a imaginar o que vai ser o mundo daqui para a frente. E começar a encontrar soluções para os problemas que se forem identificando.
E as soluções devem passar por ter em consideração que novas necessidades vão nascendo -- e que vai haver um certo retorno ao interior, a outras formas de vida.
Mas lá está. Para que tudo isto se encarreire e se encarreire com o menor dolo possível é bom que haja baias, que o bicho-homem seja tocado para entrar nos caminhos certos.
E aqui entra a liderança necessária. Liderança política, antes de mais.
Até aqui António Costa tem estado bem: tem ouvido cientistas, tem ouvido economistas. Deve ouvir também sociológos, antropólogos, urbanistas. Deve criar grupos mistos de reflexão que contenham cientistas, artistas, economistas, engenheiros, arquitectos, agrónomos, consultores de estratégia com implantação internacional, etc. Mas deve pôr esta gente já a pensar para produzir orientações estratégicas globais dentro de muito pouco tempo.
Aqui no campo, com o tempo frio e chuva que deus a dá, só tenho os canais generalistas e o computador. Sou, pois, poupada a comentadores ou a notícias dadas e reprocessadas. São poucos os comentadores que vejo e, ainda assim, ou é gente de saber ou vai de asa. Por isso, apenas ao de leve me chegam ecos de gente ansiando pelo regresso. Não sei bem o que defendem nem me interessa. O que eu sei, mas sei por mim e sei pelo que vejo nos círculos em que me movo (agora, de forma virtual), é que, tirando os descerebrados do costume, o que há é muito cuidado. Em casa os que podem ficar em casa e, quase numa redoma e sob apertada monitorização, os que têm que sair para ir trabalhar no local de trabalho habitual. E muito agradecimento, muito, muito, muito, a todos os que se arriscam todos os dias. E que assim continue enquanto não existirem melhores informações ou tratamento ou vacina.
Claro que, no meio da desgraça que está a acontecer à economia, tenho a sorte de trabalhar num Grupo grande, que opera em áreas que, apesar de tudo, apresentam maior resiliência face a este embate. Mal, mal, está tudo o que tenha a ver com turismo, com restauração, com espectáculo, com pequenos estabelecimentos, com actividades individuais (por exemplo, como estará a aguentar-se o pequeno salão de cabeleireira de bairro, em que só há uma cabeleireira, a dona, onde vou quando o rei faz anos?; e como estarão a aguentar-se as empregadas de limpeza dos escritórios que estão fechados?; e será que todas as clientes de empregadas domésticas lhes pagam como se elas estivessem a trabalhar?; e será que faz sentido eu continuar a ter empregada doméstica se ficar em casa nos próximos meses, sei lá quantos? e os ATL? o que vai acontecer a todos os funcionários se, nos próximos tempos, os pais vão estar, na maior parte, em casa? etc. etc, etc). Muitas dúvidas, muitas armadilhas, muitas incógnitas.
Por isso, antes que se comecem a dizer coisas, deve é pôr-se os pés na terra e começar a imaginar o que vai ser o mundo daqui para a frente. E começar a encontrar soluções para os problemas que se forem identificando.
E as soluções devem passar por ter em consideração que novas necessidades vão nascendo -- e que vai haver um certo retorno ao interior, a outras formas de vida.
Mas lá está. Para que tudo isto se encarreire e se encarreire com o menor dolo possível é bom que haja baias, que o bicho-homem seja tocado para entrar nos caminhos certos.
E aqui entra a liderança necessária. Liderança política, antes de mais.
Até aqui António Costa tem estado bem: tem ouvido cientistas, tem ouvido economistas. Deve ouvir também sociológos, antropólogos, urbanistas. Deve criar grupos mistos de reflexão que contenham cientistas, artistas, economistas, engenheiros, arquitectos, agrónomos, consultores de estratégia com implantação internacional, etc. Mas deve pôr esta gente já a pensar para produzir orientações estratégicas globais dentro de muito pouco tempo.
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Numa de #achatar a curva#, há quem transforme em arte a quarentena. As obras aqui expostas provêm de um lugar bem pensado. E a Joan Baez, interpretando Diamonds and Rust, faz sempre uma boa companhia.
E, para rematar, uma mescla de COW, Swan lake e Midsummer nights dream, obra do genial Ekman
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E uma boa quarta-feira.
Dantes, quarta-feira era o dia em que se dobrava a semana. Agora as semanas são um contínuo.
Mas que seja um dia bom, seja como for.
6 comentários:
"Desde que bem enquadrado, desde que com baias, sem ter muito por onde se espalhar, bem trabalhadinho, o bicho-homem é capaz de lutar pela sua sobrevivência e é capaz de criar belas obras de arte, belos feitos, belos actos de generosidade"
Uma bela definição de pessimismo antropológico. Porque "sem baias, com muito por onde se espalhar, insuficientemente trabalhadinho", o bípede faz, invariavelmente (pardon my french), merda.
"um carreiro apertado e bem vigiado na carneirada que é o bicho-homem e talvez a coisa vá"
Exactamente. Aqui, ainda reforçado pelo "talvez".
"é bom que haja baias, que o bicho-homem seja tocado para entrar nos caminhos certos"
Esse "tocado" é a cerejinha (envenenada) no bolo.
Estamos, portanto, de acordo. :-)))
Bom dia de Mercúrio.
Uma estrada de 6 pistas para funcionar, a pleno, meia-hora de manhã e meia-hora ao fim da tarde?
Andávamos todos cegos ao óbvio !
Gostei do texto, concordo. E digo isto para introduzir a minha pequena angústia: se eu lavo a roupa antes de a vestir pela primeira vez, mormente cuecas, camisas e peúgas, por que razão hei-de acreditar que com as máscaras os seus actuais e futuros produtores terão cuidados especiais de higiene na sua fabricação ao ponto de eu não necessitar de o fazer? Refiro-me às descartáveis, as ditas cirúrgicas.
Por vezes entramos em campos onde é difícil, se não impossível, separar o trigo do jóio. Ainda ontem, na TVI24, pelas 10,45 horas, uma médica infecciologista aconselhava-nos a guardar a máscara cirúrgica usada durante pouco tempo, tal como numa pequena ida ao supermercado, num saco de plástico, isto para ser reutilizada posteriormente caso não estivesse molhada. Se não estiver húmida, continua boa, dizia a especialista.
Dias atrás fui à Farmácia onde sou freguês comprar máscaras. O farmacêutico informou-me que só vendiam quatro por pessoa, mas abriu logo a porta para eu poder levar mais. Pode também levar para as pessoas que vivem lá em casa, disse-me. Optei por trazer apenas quatro, a 1,50 euros cada. E qual não foi o meu espanto quando o homem abriu uma gaveta e do montão de máscaras que lá havia começou a contar com o polegar vs indicador: um, dois, três e quatro. Então e como é que eu sei que isso está desinfectado, que posso usar sem correr riscos, isso nem sequer vem embalado, perguntei. Indignação pronta: não vê que estou com luvas. Pois, pois, as mesmas luvas que acariciam o multibanco ..
Agora que já desabafei um pouco, vou esperar que apareça por aqui um grande virologista, estilo MMendes, JJúdice ou PPortas, para ficar ainda mais esclarecido.
Ainda relativamente ao texto da UJM, a mim, pobre passante, parece-me que as coisas só mudarão substancialmente com o próximo vírus que já se anuncia como mais devastador. Terá de haver estragos para os humanos inflectirem certos comportamentos. Com este Covid, ainda há muito rato de urinol a espreitar como ganhar mais dinheiro com estas coisas todas, teletrabalho incluído.
Estevão
Olá João,
Custa-me aceitar que sou pessimista pois, em boa verdade, apesar de tudo, tenho sempre a esperança (e a crença) de que, sem se perceber bem como, na hora da verdade, a coisa entra nos eixos.
Claro que, volta e meia, descreio. Por exemplo de cada vez que vejo o Trump ou o Bolsonaro e penso que estão lá porque foram eleitos sinto-me burra, sem perceber nada de nada. Mas tento esquecer, isolo, faço de conta que aberração, excepção -- e excepção não conta.
Um dia que tenha tempo até estou capaz de fazer uma antologia de excepções. Outra boa, que é de uma pessoa ficar a bater com a cabeça na parede, é aquela da senhora que, em plena cena covid, estava na berma com um crucifixo para os devotos irem beijar. Ou as manas devotas que foram ao lar dar o crucifixo a beijar aos senhores do grupo de risco. (E repare como sou low profile a referir-me ao sucedido, quando em comparação com a forma altamente religiosa e erudita com que aludiu ao facto lá no seu Provas de Contacto... :)
Uma boa quinta-feira, João.
Olá Chevrolet!
Vai ter que escolher outro nome. Carros agora não estão com nada. Abaixo a poluição.
E não acredita que vamos ter pena se tivermos que voltar a uma vida de cá para lá, poluindo tudo à nossa volta e retirando tempo útil à nossa vida? Eu acredito que vamos tentar ser mais inteligentes. Não acredita nisso? Não me diga que também acha que somos burros todos os dias? Burros montados em carros, claro.
E conte coisas.
Olá Estevão,
Sabe que li com interesse o que escrevi? E sabe porquê? Porque tudo isto me parece uma coisa meio maluca. Sempre fui um bocado reticente em relação aos produtos chineses de certo tipo. Por exemplo, produtos de higiene, produtos de limpeza ou peças de vestuário feitos na China, sem se saber que produtos usam, sem um controlo de qualidade muito apurado, é coisa que não consumo.
E agora vamos usar máscaras, made in China, encostadas à boca e nariz...? Não sei... Prefiro rasgar um bocado de uma tshirt velha e atar à cabeça, feita maluca.
Mas, pronto, a ver se algum dos gurus que referiu aparece a explicar.
E se tiver novidades, venha aqui contar, ok?
Obrigada.
Dias felizes.
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