sexta-feira, abril 17, 2020

Coisas de nada em tempo de confinamento





Dia preenchido demais. E muita chuva. Tanta. De noite acordámos com a sua intensidade. Pareceu-me ouvir dizer ao meu marido, eu meia a dormir e ele provavelmente também, que tinham aberto a torneira. Mas era mais do que torneira, era mangueira, mangueira de espantar manifestante. Muita chuva. Foi todo o dia. Só abrandou ao fim do dia. Quando acabei a última videoconferência ainda chovia. Abri a janela do canto, a que é resguardada, e fui fazer os telefonemas que não tinha atendido. Chovia muito. O meu marido passou por ali e, com o dedo rodando na testa, fez sinal de que sou maluca. Com a cabeça perguntei porquê. Disse em voz baixa e tom censor: 'Com o frio e essa chuva é bom estares aí, de janela aberta'. De facto, quando acabei um dos telefonemas, tive um ataque de espirros. Mas tentei abafar para ele não achar que tinha razão. 


A seguir, sem transição, avancei para a cozinha e pus entrecosto a estufar e, mal ferveu, resolvi ir andar.  Já passava um pouco das oito da noite. Vesti um impermeável e fui para o campo. Felizmente estava apenas uma chuva branda. Telefonei à minha mãe, depois ligou a minha filha. Caminhei apressadamente, estava frio, estava a molhar-me.

Regressei a casa. Fui ver se o entrecosto estava quase. Ainda não estava. Voltei à sala e fui responder aos mails, fazer umas aprovações, despachar umas gaitas.

A seguir, já estava a fazer-se tarde e o meu marido já a perguntar a que horas íamos jantar, fui juntar as favas. Esperei que levantassem fervura, baixei o lume e regressei à sala.


Estou cansada. Confinada. Ainda por cima hoje foi dia. Daqueles dias em que um tempo e uma tarefa enervante ocupam parte do dia: à hora de almoço fomos ao supermercado na vila mais próxima. Poucas pessoas, poucas, poucas, e todas de máscara. Curiosamente, apesar da distância, as pessoas quase fogem umas das outras. Como estava com pressa e tendo a ser distraída, cruzei-me com uma senhora que quase deu um salto para o lado para se pôr a uns dois metros de mim. De imediato, nem percebi aquela reacção. Depois é que percebi que a senhora estava, e, se calhar, bem, a distanciar-se de mim. No entanto, estávamos ambas de máscara.

Depois, quando chegámos a casa, foi aquele filme. Uns nervos. Ambos cheios de fome e a ter que cumprir aquele cerimonial absurdo. Sinto-me sempre estúpida a fazer aquilo mas acho que me sentiria ainda mais estúpida se aparecesse doente e pensasse que tinha resultado de ter menosprezado o bicho. E, então, foi levar os sacos para o estúdio, retirar tudo o que não fosse fresco e deixar ali  para ficar de quarentena uns dois ou três dias e, depois, os frescos para casa mas tudo vazado para sacos limpos, a fruta e os legumes lavados e postos de molho em água com um bocado de vinagre, o pão bem como peixe e carne para o congelador. A seguir despimo-nos e banho; e a roupa toda para a máquina. Depois escorrer a água avinagrada, passar as coisas por água corrente, secar tudo bem seco, guardado em sacos limpos, os morangos numa taça.

E a olhar para o relógio a ver que a reunião estava quase a começar, e ele só a receber chamadas. Almoçámos restos, separados pois ele não se despachava com os telefonemas e eu já estava atrasada.

Uma vez mais fui para uma videoconferência com o cabelo molhado. Wet hair. É um estilo. Por acaso até gosto de me ver, arranjada, de brinquinhos, e de cabelo molhado. Mas será para outra ocasião, não para ter uma reunião. Mas paciência. O dress code em teletrabalho pode ter algumas adaptações. Quando acabou o primeiro team meeting da tarde já estava varada de fome. Fui meter na boca um quadrado de chocolate negro a 85% de cacau e, ao mesmo tempo, uma flor de hibisco seca, que não sei se é confitada, se caramelizada. Uma flor mesmo. Óptima. Uma linda flor cor-de-rosa misturada na boca com chocolate negro. Vi no supermercado e não resisti. Nem sabia que eram comestíveis. O meu marido estava incomodado: nem sabes se isso é para comer. Não quero saber. Se não fosse, não vendiam. E estou viva. Portanto, quod erat demonstrandum.

Voltei ao trabalho. A seguir à outra reunião estava na mesma. Quando almoço à pressa e vou trabalhar de seguida, o meu cérebro não percebe que almocei e, então, espermeia como se estivesse na hora de refeiçoar (esta do outro maluco, o super-maluco, refeiçoar, ficou-me; acho que foi a única). Então levantei-me a correr e fui à cozinha: foi a vez de me deliciar com uns quantos cajus com arandos secos. Bom. Também trouxe de lá.

Cenas parvas as que estou para aqui a contar. Mas é que os meus dias são assim: daquilo que mais me marca, não falo, não posso. Há aquilo do silêncio, do dever de reserva -- noblesse oblige. Falo do resto mas, na realidade, das frioleiras fico a achar que não passam disso mesmo.


Entretanto, soube do Luis Sepúlveda e senti outro desgosto. No outro dia o meu marido tinha perguntado por ele, se se sabia alguma coisa. Disse-lhe que eu não sabia mas que, se calhar, já estava em casa, já lá ia muito tempo, já deveria estar bem senão sabia-se. Afinal não. Bicho traiçoeiro. tinhoso, sarnento, este merdinhas do covid. Há-de ser destruído com mata-piolhos mas mesmo para isso há que dar tempo, não se pode pôr dose cavalar senão mata não só o corona mas também outras coisas essenciais dentro da pessoa. Isto de matar vírus, pelos vistos, tem que se lhe diga. O homem que gostava de Portugal e que escrevia histórias boas de imaginar já não as escreverá nem contará mais. Mais um escritor que se vai e mais uma vida que o vírus piolhoso levou.


E, tirando isso, muita coisa: o anunciado regresso à nova normalidade com as dúvidas que isso trará, o vírus que, segundo o Trump, é fabricado pelos chineses, os quais, Trump à parte, também não são flor que se cheire, o Bolsonaro que demitiu o ministro da Saúde o que é bem feito para o ministro, que quem apoia o anormal do Bolsonaro merece mesmo é ser destratado, a dor que tenho na mão e não sei porquê, se calhar dei mau jeito com saco pesado demais, não sei, não faço ideia, só sei que me dói que se farta, e não é bem a mão, é mais o pulso, e ainda os amigos ditos improváveis que, à hora a que escrevo, estão na televisão a mostrar que o mundo é grande e nele cabem todos, e a chuva que ouço cair, sempre esta copiosa chuva, o gato que ouvi miar alto aqui perto, quem chamaria ele?, e também as saudades que tenho, muitas, muitas, as muitas dúvidas que me assaltam, as perplexidades com tantas coisas, os livros que não consigo ler, o tempo que passa a correr, o frio que faz e eu que me apetecia tanto estar estendida ao sol. Coisas assim.


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E mais isto, tão bom, tão bonito.

Dire merci

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As fotografias são fotografias do dia do National Geogarphic e a June Tabor está cá porque eu gostava que esta casa também fosse a casa dela.
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Uma boa sexta-feira para si que aí está a aturar-me.

Saúde.

4 comentários:

Lúcio Ferro disse...

O cumprimento dos protocolos de saída à rua é sempre algo de sistematicamente moroso e por vezes quase que parece inglório, sobretudo quando o idiota ocasional que já vem alcoolizado resolve abordar-nos no caminho, só porque lhe apetece (regra geral vou no meio da estrada para os evitar. É que nas cidades ainda é mais difícil do que no campo. Nem imagino nas megapolís, deve ser infernal. Mas tem de ser. É o novo normal e, no fundo, ao fim de umas semanas, torna-se uma rotina como outra qualquer. Até me pergunto se, quando as restrições começarem a abrandar, não terei dificuldade em deixar de cumprir todo esse normativo. Depois há o tempo que sobra (eu não estou a trabalhar) mas que acaba por ser bem ocupado, ora a ler, ora a escrever, ora a pensar, ou as três atividades em simultâneo. O ponto alto do dia por cá é o jantar. Aí, eu e o meu improvável companheiro de jornada reunimos, sempre à mesma hora e começamos sempre e rigorosamente a refeição com um brinde de tinto: "à nossa, que a tesão nunca não nos falte e que as nossas mulheres nunca fiquem viúvas". Uma boa sexta e um bom fim de semana para si também UJM, gosto de a ler.

Um Jeito Manso disse...

Olá LF,

Estive a ver os seus blogs. Que belas fotografias, as suas. E gosta de escrever. E tem a sorte de poder aproveitar a quarentena para ler, escrever. E fotografar não? A rua fica longe da janela?

E é verdade, tem razão, também penso nisso: quando pudermos voltar à rua, estaremos confiantes? Não teremos medo de ser contagiados? Andaremos com medo uns dos outros? Conseguiremos pôr a mão no corrimão da escada rolante? Conseguiremos tocar no botão do elevador?

Não sei...

Desejo que se sinta bem enquanto o tempo é de clausura, que faça belos cozinhados e inspirados brindes para que nunca nada do que lhe é importante lhe falte.

Um bom sábado, LF!

Lúcio Ferro disse...

Senti.me tentado a enviar as últimas fotos que tirei aqui na rua, hoje mesmo, tenho uma lente de 200 milimetros por 70, uso uma Pentax que já viu melhores dias mas ainda assim, sendo discreto, do primeiro andar, fotografei pessoas. O que as fotos me disseram é que estavam tristes, resignadas, infelizes. Não vou partilhar essas fotos.

Hoje aquela que sabe esteve cá. Um metro e meia de distância. 5 minutos. Para me entregar máscaras. nE sorrirmos sem nos tocarmos. Cumprimos. Raio do merdinhas.

Um som, para si, vai gostar UJM, é bom som e mexe com as suas fobias sobre gatos. :.) https://www.youtube.com/watch?v=G2gKHHmGXZ4&list=RDG2gKHHmGXZ4&start_radio=1

Um Jeito Manso disse...

Olá Lúcio,

Matou saudades... Ou arranjou um suplemento para as ter mais presentes?

Seja como for, não tarda poderemos sair e estar com os nossos. O pior é o distanciamento que veio para ficar... E conciliar distanciamento com proximidade parece uma equação impossível...

Abraço, LF