domingo, abril 19, 2020

Cartas (e concertos) em tempos de corona






Não poderia ser médica ou enfermeira. Assusto-me demais, impressiono-me como se a dor dos outros fosse minha, mas mil vezes superior ao que poderia suportar. Lembro-me de uma das minhas primas, um pouco mais nova que eu. Brincávamos na escada da minha casa. Eu era mãe das bonecas, mãe dela, toda eu ternura e instinto maternal, ou era cabeleireira e fazia tranças ou outros penteados ou fazia de conta que lhes cortava o cabelo ou lhes lavava a cabeça, ou era vendedora numa mercearia e tinha uma balança e uma caixa registadora e vendia coisas a peso e dava o troco. Mas ela era médica. E ou eu ou as bonecas éramos as doentes. Quando, uma vez, a nossa avó se queimou numa perna e ficou em muito mau estado, de cama, a perna envolta em ligaduras, eu fiquei assustada, com medo pela dor da minha avó, imaginando e temendo a gravidade das chagas. Mas a minha prima não, a minha prima quis ver as feridas, quis perceber o tratamento que tinha sido feito. Não sei se a minha avó lhe mostrou pois eu, a prima mais crescida, fugi com medo de ver.

É uma questão de vocação.


Numa altura em que nos resguardamos com medo do contágio, ela e outros médicos e enfermeiros e auxiliares e técnicos continuam a sair de casa para irem cumprir a sua missão. Não se sentem heróis. Sentem apenas que fazem o que devem fazer. E depois vai a casa dos meus tios. Descalça-se, despe-se, usa máscara -- e vai a casa dos pais. Eu não. Tenho medo de lhes levar algum contágio. Já basta ter que ir lá a senhora que ajuda no tratamento do meu pai. Acho que quanto mais resguardados estiverem melhor. Telefono duas vezes por dia, faço os pagamentos, tratei do irs, os netos também telefonam, fazem as encomendas online, garantimos que nada lhes falta, mas mantemo-nos fora da sua casa. Mas a minha prima é destemida, mesmo frequentando hospitais, não deixa de ir ver os pais. É corajosa.

Enquanto escrevo, artistas entram a partir de casa para o concerto One World: together at home. Toda a gente agradece aos profissionais de saúde. Mas agradece também a todos os profissionais de outras áreas que não tendo actividades que possam funcionar em teletrabalho continuam a ir todos os dias enfrentar os riscos que aí estão.

E tinha acabado de ouvir o convite de Benedict Cumberbatch a que, quem quiser, grave a leitura de uma carta e a envie, uma carta alusiva a estes tempos de distanciamento, distanciamento que, por vezes, é sinónimo de isolamento.


Fiquei com vontade de escrever uma carta e gravar a minha voz mas sei que, se a tenho naturalmente ciciada, muito mais frágil ela fica quando estou emocionada.

Por isso não escrevi nem li. Limito-me a estar para aqui a escrever coisas de nada e a esconder que me apetece receber também uma carta -- apesar de não ser técnica de saúde e apesar de ser uma sortuda e não ser devedora nem de gratidão nem de nada que se pareça com nada disso. Só porque gosto de receber cartas.


Seja como for, se, a si que está a ler-me, este isolamento está ser-lhe pesado, se gostava de receber uma palavra de atenção, se gostava de sentir que é em si que estou a pensar enquanto escrevo, se gostava de receber um abraço em forma de palavras, então saiba que sim, que são para si estas palavras, é para si que vai o meu pensamento. Tenho recebido tanto desde que aqui escrevo, tenho conhecido pessoas tão especiais, tenho-me sentido tocada pelo afecto que não sinto como distante mas, sim, genuíno, generoso, tão próximo. Não tenho como agradecê-lo. Sempre estarei em dívida.

[Mas, ainda assim, gosto de receber cartas. Ou poemas. Ou, simplesmente, palavras simpáticas.]


E sei que isto que estou a dizer é um absurdo pois o concerto a que assisto ou as cartas que devem ser escritas e lidas são para quem verdadeiramente as merece e eu deveria ter tino e não estar para aqui, em total despropósito, a confessar que também gostava de receber umas palavras para mim.

Mas adiante que tudo tem que ter limites, até a parvoíce.

O tema é: querem ouvir uma de que gostei de ouvir? Esta aqui abaixo. Quanta dignidade a de Joss Ackland, 92 anos.



E esta de Ana Frappell, tão comovente. 


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As flores foram pintadas por Van Gogh mais para lembrar que, como é bom de ver, ele não pintou apenas girassóis e, também como é bom de ver, não faço ideia de porque é que disse isto.

E antes de vos convidar a descer para verem a malta da Porta a parodiar as cenas da videocoisa, deixem que vos deseje um bom dia de domingo.

Saúde e boa disposição, pessoal.

E agora, se estiverem para aí virados, deixem-se deslizar até ao teletrabalho que vem já aí a seguir.

6 comentários:

Anónimo disse...

Pronto, pronto !!
Aqui fica um abracinho, por ter a pachorra de escrever para que eu a possa ler às 05:00 h todos os dias, ou quase...
SFF de continuar.

lidiasantos almeida sousa disse...

LEMBRANDO MARIA DE SOUSA, UMA DAS MAIORES CIENTISTAS DO MUNDO, FALECIDO COM COVIL 19, A SEU PEDIDO NO SNS - HOSPITAL DE SÃO JOSÉ.

CARTA DE AMOR NUMA PANDEMIA VI RICA

GAITAS DE FOLES TOCADAS NA ESCÓCIA.
Tenores cantam das varandas na Itália.
O mortos não os ouvirão
E os vivos querem chorar os seus mortos em silencio.
Quem pretender animar?? As crianças?
mas as crianças também~ estão a morrer.
Na minha circunstancia, poso morrer
Perguntando-me se voa irei ver de novo.
Mas antes de morrer. quero que sabeis o quanto gosto de vós.
Quanto me preocupo convosco quanto recordo os momentos partilhados e queridos.

Pôr do Sol disse...

Nunca nos vimos
Apenas nos identificávamos e
reconhecemo-nos

Sabíamos ambas quem éramos
Demos um abraço silencioso
e um OBRIGADA ficou no ar

Se pudéssemos ficar só com a parte boa das coisas

Boa semana

Um Jeito Manso disse...

Olá Noctívaga, ainda mais noctívaga que eu,

Muito obrigada. Que a força não me falte nem a si a vontade de vir espreitar o que escrevo.

Uma boa semana. Saúde.

Um Jeito Manso disse...

Olá Lídia,

Muito triste e, ao mesmo tempo, trágico o poema de Maria de Sousa ao pressentir o que viria a acontecer. Não sei se alguma vez alguém está verdadeiramente preparado para a despedida final. Talvez. Tomara que ela estivesse. Faz muita pena que um vírus da treta leve tantas pessoas que tanta coisa já venceram na vida.

Gostei que aqui o tivesse trazido, Lídia.

Saúde, menina. Tenha cuidado consigo, ouviu?

Um abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr do Sol,

Muito obrigada. Assim deveria ser, só o lado bom das coisas. A vida ser delicada connosco e nós delicados e agradecidos com a vida.

Sentarmo-nos ao lado uma da outra e começarmos a falar como se nos conhecêssemos de toda a vida. E não termos dúvidas, porque obviamente seríamos nós.

Gostei muito do que escreveu. Um grande abraço.

E saúde e tudo de bom para si, sol nascente.