segunda-feira, abril 20, 2020

Não é preciso chegar ao cimo







Acabei o livro. Sem nunca chegar ao cimo. Entrar dentro das montanhas. Não propriamente chegar ao ponto mais alto, pôr bandeira, marcar pontos mas, apenas, conhecer a vida das montanhas.


Conheço bem esse sentimento. Olhar a montanha e ter vontade de entrar dentro dela. No meu caso, em especial, o que mais gosto mesmo, mesmo, mesmo, é de estar de longe e saber: ali é a minha casa. E nada se ver. Parece que ali não há nada. E, no entanto, distingo: aquelas árvores são as que plantei. Por debaixo delas passo eu às vezes. Por ali passeia o gato branquinho e cor de mel. Mas de longe nada se adivinha. É sempre assim. Uma montanha, seja ela de impor respeito ou pequena serra de trazer por casa, é sempre uma arca de tesouros, um lugar de mistérios. De longe, tudo igual. Mas, quando nos aproximamos, quando entramos pelos caminhos, quantas descobertas. 


Entrar dentro de uma, conhecer-lhe os caminhos, identificar os cheiros, os sons, perceber as nuvens que se anunciam ao longe, a árvore recortada contra o horizonte, a ruína de pedra num lugar que já poucos conhecem. Mesmo eu aqui. Parece que estou sozinha no universo, só eu e o meu compagnon de route. E, no entanto, quando, ao cair do dia, sinto um cheiro que vem de longe eu sei que é o vizinho que mora no início da estrada, longe, que foi limpar os currais das vacas que são lá em baixo, perto do vale, onde há uma represa. Deve ter passado na sua carrinha de caixa aberta e deve ter ido recolher os animais, limpar, pôr o feno, encher os tanques. E, no entanto, de longe nada se vê. Nem eu, que vivo entre a sua casa e o lugar das vacas, lá muito para baixo, dou por nada. Se não fosse pelo cheiro que o vento traz lá de baixo eu também não saberia.


Dantes, incomodava-me muito com esse cheiro. Diria 'que horror, não se aguenta, que cheiro a estrume...'. E, no entanto, agora sei que durará pouco tempo e que é um cheiro natural, um cheiro que assinala uma hora do dia, uma rotina. Sei também que é a essa hora que os pássaros cantam com maior entusiasmo. Despedem-se uns dos outros. Ou festejam que tenha passado, em paz, mais um dia. E os dias parecem todos iguais mas é ilusão, são todos diferentes. E tudo adquire uma cadência própria que parece instalar-se no que é a ordem natural das coisas.


Paolo, que andou pelas alturas, nos Himalaias, e que habitualmente também vive nas montanhas, gosta da vida simples e sabe da simplicidade fazer páginas de uma escrita que me prende. O sol no vale, as subidas escarpadas, os lagos, os animais que se vêem e os que apenas se pressentem (como o leopardo que deve estar alerta, espreitando lá no alto), as poucas pessoas das poucas aldeias, o frio, os ramos cobertos de gelo, as árvores muito altas, as pegadas que se encontram, as cabanas abandonadas, os pequenos templos que o tempo vai erodindo, a água que corre por entre as pedras, as aves que voam nas alturas, os dias feitos de pequenas tarefas e que marcam o passar do tempo, andar em círculo, um devir manso, sem propósito, apenas apaziguado, a existência simples.

Não é preciso um argumento, não é preciso suspense, não é preciso um desfecho. Basta o simples suceder dos dias, a simplicidade das pequenas tarefas. E as páginas do livro vão fluindo à medida do caminhar de Paolo.


Também eu aqui. Varro, sacudo tapetes, lavo, estendo roupa, cozinho, leio, caminho, falo ao telefone, escrevo, preparo uma infusão, bebo-a, ouço o gato a chamar, dobro a roupa lavada e perfumada pelo sol e pelo vento, preparo-me para dormir. Pouco mais tenho a declarar. E, no entanto, sinto cada vez mais que esta é a forma certa de viver. Falta-me só a proximidade dos meus. Se, ao que tenho hoje, pudesse juntar a vinda da família cá a casa e eu e fazer comida para todos e andar a agarrar-me aos pequeninos enchendo-os de beijinhos, fotografando a doçura do tempo suavemente pousada nos nossos sorrisos, esta minha tranquila existência seria perfeita.


Não se deve querer muito, não se deve pedir muito, não se deve esperar muito. Deve-se é ficar bem com pouco. O pouco basta.

E eu digo isto como se estivesse certa do que digo, é uma característica minha, mas não estou, é simplesmente o que penso, o que penso agora. Pode acontecer que, quando viver mais, quando aprender mais, consiga ter maior ambição. Mas hoje penso isto.


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As fotografias, como é bom de ver, foram feitas aqui, neste pedaço de terra a que chamo heaven.

A canção é a mesma mas gosto tanto e gosto tanto destas duas interpretações que conto com a vossa compreensão para me perdoarem o exagero. Quando gosto, gosto. Exageradamente.




Não é uma maravilha?
Eles, todos eles, o espaço, a paz, a harmonia, a beleza, a quietude, a suavidade.
Intemporal como devem ser os momentos perfeitos.

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A todos desejo uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

Saúde. E, se possível, alegria.

6 comentários:

Anónimo disse...

Pois o meu refúgio comporta o heaven’s UJM e um confinamento em duplicado duas vezes.
Um terraço no último andar, rodeado de plantas, maioritariamente camélias, glicínias, azevinhos e ciprestes, retribui-me em oxigénio e em beleza todo o meu trabalho. É mesmo um refúgio, até terapeuticamente falando.

Há dias, a extremidade de um jasmim fora do sítio denunciou um ninho de melro. Uma autêntica obra de arte, a ombrear com o melhor de Antoni Gaudí. Apenas por duas vezes vi um melro, ou melra, nesse ninho, tendo até conseguido uma foto. Foi a partir de uma pequena janela no interior da casa. Nas duas vezes, apesar dos mil cuidados, fui detectado e lá se foi o melro ou a melra.

Passei então a estar mais confinado em casa. Passei a estar obrigado a ter o cuidado necessário para não perturbar os melros, em prejuízo, claro está, do meu refúgio.

Como se este duplo confinamento não chegasse, ainda vejo prostituído o meu canal de TV preferido, a RTP2. Como se não bastasse a extinção dos seus interessantes programas, extinção iniciada com o por um tal de Sarmento, agora, com a bênção do respectivo senhor provedor do “espetador”, sou torturado com o "#fique em casa", constantemente, eu que não saio de casa. Aos que vejo na rua, ninguém lhes diz nada. E se lhes diz, é só de vez em quando.

Começo a ter a noção de já ter cumprido mais prisão domiciliária do que o Senhor Salgado. A este é que lhe deviam dizer constantemente "#fique em casa", a menos que não lhe queiram agravar a pena. Lembro-me amiúde do meu professor de Português a fazer com que não gostássemos dos Maias: leiam os Maias, leiam os Maias, papagueava ele.

Não consigo ver relaxadamente um programa, um documentário, sem me abstrair desta constante lembrança que é a tortura de ficar em casa. Mais que um chover no molhado, é uma provocação e uma falta de bom senso. Deve andar alguém a querer ficar bem na fotografia ou a lavar a sua consciência ..
"Prontos", já desabafei!

Lúcio Ferro disse...

Ui, os ânimos estão à flor da pele, o texto é muito bom e as fotos também são fixes. Curto de. Só faltaria um som, para animar a malta. Bom, aqui fica, da minha parte, boa semana, UJM. está limpo. ;) https://www.youtube.com/watch?v=Ngj2pFW3bqU&fbclid=IwAR0RKFZrYsCo_Vh2yu3q5Hg2sAmznT_BTc-upra4xfC5tCwnB82JWcQ39Tg

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo confinado e amofinado,

Gostava de ver fotografias desse seu refúgio. A sério que é como o descreve? Deve ser uma maravilha. Como o consegue? Em vasos? Ou canteiros? Deve ser um espanto. E um melro? Mas na cidade? Um jardim assim num terraço? Fiquei mesmo curiosa.

E só não lhe dou completamente razão sobre o que está a falar a respeito da televisão porque pouco vejo, evito, não é saudável. De quando em vez lá se aproveita alguma coisa mas é como diz, a RTP 2 já está um bocado contaminada.

Mas, olhe, haja saúde e paz de espírito. Um dia destes, e antes que apareça o próximo virocas, seja ele um corona de totós ou outro piolho ranhoso qualquer, isto será passado. E lembraremos estes tempos de recolhimento durante os quais os céus se despoluíram e parece que, em alguns lugares, os animais ganharam outra largueza.

Força! A vitória é difícil mas é nossa.

Um Jeito Manso disse...

Olá Lúcio,

Boa música para dançar, sim senhor. Se morasse num prédio perto do seu, combinávamos pormo-nos à varanda, música alto e bom som, para aí um bocado antes das dez da noite para não perturbar o sossego dos outros, e punhamo-nos a dançar, convidando a malta da vizinhança a alinhar. Toda a gente a dançar para espantar o mau astral que este merdinhas peçonhento espalha por aí.

Gracias. Estou a escrever e a dançarolar. Boa onda.

E vai daqui um smile pelo pezinho de dança.

Lúcio Ferro disse...

Nada me daria mais prazer, Um Jeito Manso, e quem sabe não suceda, com tanta incerteza no ar? Como dizem em França, les beaux esprits toujours se rencontrent e é sempre agradável. Só mais uma boutade: beijinho, gosto de si. ;-)

Um Jeito Manso disse...

Olá Lúcio,

Mas podemos fazer assim: pode pôr a música e ir à janela. E quem sabe eu a ouço. Ou outra pessoa, do outro lado da rua, vai à janela tentar perceber quem foi que escolheu aquela música. Ou uma gata vagueando pela noite pare a pensar no gato preto que se esconde na varanda.

Bons sonhos, LF. A dormir ou, ainda melhor, acordado.