Deixa-me uma rosa amarela. Vem em sonhos ou pela penumbra, visita-me em palavras ou em segredo. Levanta-me dos mares, arranca-me das águas onde mergulho o meu corpo ardente. Desliza pela montanha como um leopardo azul, desce em silêncio o labirinto que se esconde nos confins da floresta e vem deixar-me uma rosa amarela.
Ouviste que ali sitiaram um país? Aquele país das ruas cheias de gente, onde todos conversam e riem alto, está sitiado. Sabias? Até aquela cidade cor de ocre cujas ruas descem até ao cais está sitiada. Está calada e com medo de ser devorada por um vírus. Não consigo acreditar e não sei como poderão viver assim, recatados, os que transbordam de vida. Não quero pensar que poderemos vir a estar também assim. Não quero pensar no inesperado e inexplicável de tudo isto. Por isso não vou falar nisto. Não me fales também.
Fala-me antes em escarpas cobertas de pequenas flores brancas e lilases e prateadas, escarpas que escorrem até ao mar. Ou fala-me de muros brancos recortados contra o sol. Ou de muralhas antigas ou de estátuas abstractas ou, simplesmente, de rochas douradas pelo tempo. Ou, se preferires, fala-me de figueiras com sombras frescas em terras quentes, carregadas de figos carnudos e gulosos. Ou de buganvílias escandalosas emaranhadas em cor e perfume. Mas também podes falar-me de livros que se arrumam e desarrumam e das histórias que se escondem neles. Fala-me de palavras que nunca ouvi e que me trazem bocados de mundos que sabes que desconheço. Fala-me daquelas grandes aves que abrem as longas asas e traçam bailados insensatos nos céus. Fala-me de outras vidas. Das tuas. Fala-me de outros mundos. Dos teus. Fala-me de segredos. Dos teus. Não ouvirei nada. Farei de conta. Como se não soubesse nada. Fala-me do que não podes falar. Manter-me-ei no desconhecimento.
Tenho uma mesa pequena só para mim. Está ali num recanto junto à janela. Acenderei uma vela. Serei iluminada pela sua luz trémula. E terei um copo alto e estreito. E nele porei a tua rosa amarela.
Vou dormir e vou sonhar. Se vieres de noite, não te esqueças, arranca-me do mar e deixa-me ouvir a tua respiração quente e nervosa de leopardo azul. Traz contigo o cheiro da erva molhada e das brumas nocturnas da floresta. Traz palavras envoltas em silêncio. E deixa-me uma rosa amarela.
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Escuta. Agora vou copiar um poema para te deixar junto à janela. Usa-o como um fio de Ariadne. Percorre cada palavra como um passo no caminho para o teu labirinto.
Nunca haverá uma porta. Estás cá dentro
E a fortaleza abarca o universo
E não possui anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor do teu caminho
Que obstinado se bifurca noutro,
E obstinado se bifurca noutro,
Tenha fim. É de ferro o teu destino
Como o juíz. Não esperes a investida
Do touro que é um homem, cuja estranha
Forma plural dá horror à maranha
De interminável pedra entretecida.
Não existe evasão. Nada te espera.
Nem no negro crepúsculo a fera.
Vai mas depois volta. Volta todos os dias, pela madrugada, naquela hora em que as gaivotas voam por aqui, gritando como loucas. Desce da montanha, silencioso como um leopardo azul, e vem deixar-me uma rosa amarela.
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Fotografias de Lucien Clergue ao som de Get here na voz de Oleta Adams.
O Labirinto e Las Causas são obviamente de Jorge Luis Borges que também escreveu um pequeno conto a que deu o nome de 'Uma rosa amarela'
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