Hoje estou naqueles dias em que, à partida, me sinto tocada pela hesitação que deveria ser sinónimo de mutismo. Pode ser que, daqui a nada, ao começar a escrever, a voz me volte e eu consiga manter-me aqui. Passa da meia noite e só agora aqui consigo chegar -- não só porque estava ocupada como sentia que não me apetecia.
Hesito sobre o que dizer quando estou tomada por muitas dúvidas. Nem sei se fale em dúvidas se em perplexidades mas, seja o que for, faz-me chegar a este ponto a sentir-me como que tolhida.
A começar esta coisa deste covid. Que raio de mundo é este? Tantos anos a construir uma civilização que, afinal, continua assente em pés de barro.
Satélites em órbita que traçam a nossa geo-referenciação para nos guiar por todos os caminhos por todos os lugares que resolvamos percorrer, sondas que exploram os confins do universo e o solo e a atmosfera de planetas onde a maioria, senão a totalidade, de nós nunca iremos, laboratórios que traçam a sequenciação do nosso dna, descodificando o que somos até onde nós próprios nos desconhecemos, tecnologias que armazenam e processam teras, petas, exas, zettas de informação útil e inútil em longínquos e ubíquos repositórios, veículos que vencem o espaço e o tempo transportando milhares e milhares de pessoas de continente em continente... e, afinal, um qualquer bicho constipado causa o caos em todo este admirável mundo e não há vacinas, não há tratamento, não há como travar sucessivas ondas de um choque que não pára de aumentar. É de doidos.
Há uns meses, enquanto azafamadamente se discutiam futilidades, se alguém aventasse a possibilidade de pôr milhões de pessoas em quarentena durante semanas, fechar escolas durante semanas ou montar hospitais de campanha à porta dos hospitais de referência, pareceria loucura. E, no entanto, está a acontecer.
E, de repente, as pessoas, pelo menos as pessoas desses lugares sitiados, são forçadas a prescindir de tudo o que fazia parte do seu estilo de vida: não podem frequentar espaços públicos, não podem viajar. O consumo desce em fecha, a poluição diminui. Como se, de repente, um qualquer castigo divino ou, vá, uma misteriosa mão oculta forçasse as pessoas a perceber que conseguem viver sem excesso de consumo, junto dos seus, na sua terra, uma vida simples.
Esta coisa do covid deveria merecer uma reflexão profunda. Que vida queremos? Que vida faz sentido que levemos?
Convencidos que somos muito bons, uns cheios de si e alimentando-se da sabedoria e dos muito contactos que têm via redes sociais, outros cheios de propalados sucessos empresariais, outros cheios de academia e papers, outros cheios de cultura e referências, outros cheios daquela arrogância que se confunde com cinismo e pessimismo, não passamos é de animais muito estúpidos e dependentes. E tenho para mim que nem perante um tamanho abre-olhos os iremos abrir. Andamos encandeados com as ondas de poluição intelectual, estética. social e etc. que criámos à nossa volta e não sei se saberemos ver para além dela.
E, portanto, neste estado de espírito, só tenho a dizer que ontem de manhã fui ver os meus pais e à tarde estive a ver dois dos meninos a jogarem futebol e soube-me muito bem estar ao sol, num lugar desafogado e com uma bela vista, à conversa, e que hoje vi os outros meninos e deixei lá limões da minha mãe e orégãos made in heaven, e de tarde estivemos lá, in heaven, e passeei pelo campo e tive vontade de lá estar mais tempo, e estive a ler e a fotografar e depois, já aqui, estive a tratar da casa, a cozinhar, a ver as fotografias e a escolher estas que aqui vêem para partilhar convosco.
[E agora chegou um mail de trabalho, alguém que coloca uma questão muito pertinente e concreta, e eu dei a minha opinião mas estou cheia de dúvidas pois se seguisse a minha intuição diria que nem pensar mas, perante a situação em concreto, acabei por dizer que, nesse caso, que remédio mas que redobrem cuidados. E tudo isto é surreal e prova que o caminho seguido a todos os níveis, deixando-nos sempre dependentes de terceiros que estão no outro lado do mundo, nos coloca, nestas circunstâncias, numa grande fragilidade.]
Tirando isso, com a consciência da minha efemeridade, ocorre-me que o mais certo é que nunca venha a desvendar mistérios que gostaria de desvendar, conhecer pessoas que gostaria de conhecer, ver as mãos que escrevem o que gosto de ler. O tempo é curto e cheio de acasos e a nossa vida é breve e cheia de incertezas, hesitações e limites.
De tarde estive a ler um livro e gostei tanto do que li que pensei que gostaria de saber o que pensa aquela pessoa quando não está a pensar no que vai escrever. Poderia perguntar-lhe. Mas depois pensei que se calhar o melhor mesmo é deixar que as pessoas que conhecemos através das palavras permaneçam nesse limbo de imaterialidade que as torna abstractas e inexistentes.
Talvez que se um vírus ou um meteorito ou um irremediável desatino climático, um dia, dizimarem parte da humanidade subsistam as palavras. Talvez também as pedras. Talvez também, algures, no espaço, numa qualquer nuvem virtual, subsistam as memórias de quem não soube guardar as flores, os pássaros, o amor.
De tarde estive a ler um livro e gostei tanto do que li que pensei que gostaria de saber o que pensa aquela pessoa quando não está a pensar no que vai escrever. Poderia perguntar-lhe. Mas depois pensei que se calhar o melhor mesmo é deixar que as pessoas que conhecemos através das palavras permaneçam nesse limbo de imaterialidade que as torna abstractas e inexistentes.
Talvez que se um vírus ou um meteorito ou um irremediável desatino climático, um dia, dizimarem parte da humanidade subsistam as palavras. Talvez também as pedras. Talvez também, algures, no espaço, numa qualquer nuvem virtual, subsistam as memórias de quem não soube guardar as flores, os pássaros, o amor.
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Desejo-lhe, a si que está aí desse lado, uma boa semana
4 comentários:
Também eu estou sem palavras, faleceu o meu único filho em 16 Janeiro 2020. deixou.´me algins problemas como uma mulher com quem vivia em união de facto, tem casa mas quer o usufruto da minha casa por 15 aos tantos quanto viviam juntos. estou a tentar resolver a assunto com advogados, mas já não volto para paris para a casa que me foi doada pelo meu companheiro, nos campos Elísios com uma governanta ao meu dispor,com o total acordo com os filhos pois a doação foi feita em testamento. A VIDA C´EST UNE MERDE.je vos embrasse.
Essa companheira do seu falecido filho não tem direito ao usufruto da sua casa. Nem sequer é tão pouco herdeira da mesma! Não permita tal. Não tem que o fazer. Seu filho deixou descendência? Cuidado, não se deixe enrolar por um qualquer advogado que lhe vai ao bolso. Em todas as profissões há gente séria e gente que o é menos. E os advogados não escapam a este tipo de apreciações.
Boa sorte anónima!
Até agora não ouvi uma palavra sobre esta questão do Corona Vírus por parte das entidades privadas hospitalares (CUF, Lusíada, Luz, etc). Estarei enganado? Não me parece. Ou seja, quem lá for é mandado para os hospitais públicos? Têm previsto alguma coisa sobre isto? De apoio ao SNS? De colaboração com o SNS? Era bom saber o que pensam essas «empresas privadas de saúde». Os seus clientes (utentes é palavra para os hospitais públicos, ou centros de saúde) – como já ouvi mais do que uma vez dizer – que pagam com os seguros que fazem gostariam de saber com o que podem contar nesse sentido por parte dos hospitais privados.
Conheço gente que pratica a maior distância relativamente ao SNS, ou até o despreza.Nunca recorrem a um/a médico/a e família, por exemplo. Ora, neste momento, é o Estado e o SNS, apesar de todas as fragilidades, que está em campo a dar o apoio para esta situação viral, que pode vir a ser uma pandemia (oxalá que não!).
Talvez esteja a exagera, mas em minha opinião quem ignora, não utiliza, ou jamais (ou como digo, até despreza) utilizou o SNS, bem poderia agora ir bater à porta dos privados, se algo lhe suceder.
Aqui há tempos, um irmão de um amigo meu que se encontrava num desses hospitais privados, quando foi para pagar e lhe perguntaram como queria fazer e tendo ele respondido que preferia pagar em dinheiro, a conta de 7.500 Euros passou para 5 mil. Extraordinário, mas verídico! E revelador de uma certa mentalidade. Enfim…
Olá. Penso que se trate da Lídia, o furacão Lídia. É?
Essa notícia, do falecimento do seu filho, é muito triste. Lamento e envio-lhe um abraço. Imagino a dor que sentiu e sente.
Quanto à situação da casa, veja o comentário acima. Não se deixe enganar. Mas também não se consuma demais, não vá desgastar a sua saúde.
Espero que tenha sorte e que consiga voltar a sua casa onde certamente tem boas memórias do seu filho.
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