domingo, março 22, 2020

Havia uma estrada e fomos por outra





Este ritmo e esta maneira de viver não estão nos meus hábitos. Passei, sem mentalização prévia e sem preparação psicológica, do meu ritmo de sol a sol, de horas de trânsito, de muita gente permanentemente à minha volta, de visitas à e da família ao fim de semana, do carinho naturalmente expresso, para este regime de clausura, só os dois e todos os outros à distância. 

Durante a semana foi uma aflição, trabalho e stress em excesso. Entretanto, alguns a queixarem-se que deveríamos retomar os trabalhos noutra área. Ainda não estou a ver bem como mas já marquei uma videoconferência para segunda-feira. Trabalho que me farto e há sempre alguém a querer mais. Lembrei-me tarde demais que me esqueci de ligar a três pessoas com quem tinha obrigação de estar mais próxima. Lembrei-me também tarde demais que deveria ter enviado um mail ou feito um telefonema a uma pessoa a quem despachei a grande velocidade e à bruta num dos dias de maior confusão. Esgotei-me durante a semana que passou e receio a que aí vem. Tenho que perceber que, se calhar, este vai ser agora o meu novo normal. E não gosto. Estou em minha casa, apetece-me passear ou descansar, e não consigo. E isso faz com que me sinta ainda mais cansada e desalentada.

Faz-me muita impressão estar aqui, neste lugar que sempre esteve associado a férias, fim de semana e lazer, e não o usufruir como tal.


Este sábado acordei tarde, o meu corpo recarregou baterias. Mas acordei com o som de mails e mensagens a chegar. Até à hora de almoço estive com isso. Não me apetecia mas teve que ser. Tenho arrumações para fazer mas durante a semana não consegui lá chegar e hoje não tive disposição. O tempo não me rende, parece que ando meio desorientada. Andei pelo campo, soube-me bem, mas já eram horas de pôr o almoço ao lume. 

Depois de almoço peguei numa mantinha, no livro, na máquina fotográfica e no telemóvel e reclinei-me na espreguiçadeira. Estava frio. Pus-me a ler e, de quando em quando, fotografava. Reparei que a estrelícia já quase desabrochou. Estar aqui, nesta altura, todos os dias, permite-me assistir a uma coisa a que nunca tinha assistido: a chegada da primavera, em tempo real. Num dia há umas florzinhas a despontar nos marmeleiros, no dia seguinte já há mais, há pequenos frutos a adivinhar-se, um milagre em permanente devir.

À medida que a tarde avançava, entre esquivos raios de sol, pingos de chuva e páginas de boa escrita, ocorreu-me que isto, se me abstrair de tudo o resto, tem o seu lado bom.


Depois, fechei os olhos e comecei a fazer respirações a ver se me ajeitava na meditação. Contudo, a minha mente levou-me para outros lugares, lugares desconhecidos, lugares que nem consigo imaginar. Levou-me até seres sem rosto, sem nome. Levou-me até palavras que me chegam de longe, bálsamos, consolos. Inspirava, devagar, um, dois, três, quatro, cinco, seis, depois expirava, devagar, um, dois, três, quatro, cinco, seis. De novo, inspirar, um, dois, três, quatro, cinco, seis. Uma tranquilidade, o som dos passarinhos, a luz coada pela chuva ligeira, uma rola a voar e a pousar ali perto. Eu já a olhar, esquecida que deveria ter os olhos fechados. 

Depois, de vez em quando, um pouco de tristeza por não saber qual o desenlace de tudo, sem saber como este caos se vai reorganizar. Muita apreensão por Itália, a morte à solta sem dar tréguas, tanto tempo decorrido e aquela tragédia, tanta gente a morrer, angústia pelo que se passa também em Espanha, pessoas de idade doentes que ninguém vai buscar nem tratar, mortos que ninguém vai levantar e que nem podem ser velados. O ensaio sobre a cegueira dolorosamente levado à cena.


Tento afastar os pensamentos, tento apenas respirar. Depois reparo que, de longe, já não me chega o som do mar. Era o ruído dos carros que, até há uma semana, passavam na autoestrada que corre lá bem longe  e que, coado pelo ar da distância, me parecia o suave rumorejar das ondas. Agora parece que passou muito tempo, que isso foi numa outra vida. Agora há apenas o silêncio e o canto dos pássaros.

Ao meio dia, estava eu ainda de roda de mails e mensagens com colegas de trabalho, chegou mensagem do meu filho à família dizendo que os números eram bons. Fui ver ao DN. Mais de duzentos infectados e os mortos já em doze. Mas tudo é relativo e nesta luta contra o invisível e microscópico inimigo, até as más notícias podem ser boas notícias.

De noite, ele enviou-me excerto de uma entrevista: uma pancada de mais de 8% no PIB, uma escalada de desemprego. A bruxa da foice não ceifará apenas vidas mas também qualidade de vida a muita gente, se calhar a quase toda a gente. Sendo expectável uma segunda onda de contágio dentro de meses, quando se sair deste isolamento, seremos outros, o mundo será outro, e em muitos aspectos, tudo será irreversivelmente diferente. A prazo haverá reconversão, novos sectores de actividade despontarão, outros retomarão a actividade -- mas tudo será diferente. Talvez esta ruptura, esta fractura, seja importante para a salvação do planeta. Descobrir-nos-emos menos poluidores, menos irracionais. Talvez reaprendamos o respeito pela natureza e pelos outros. Mas, enquanto não reeencontrarmos o equilíbrio, haverá muito desemprego. Presumo que o sector do turismo e o das viagens internacionais sejam dos que mais sofrerão. O sector dos espectáculos ao vivo, seja de que área forem, se calhar também, pelo menos enquanto não aparecer a vacina. Mas é quase certo que a vacina não estará disponível antes de ano e meio. E durante um ano e meio os hábitos mudam, as pessoas desabituam-se.


Ao fim da tarde arrefeceu, a mantinha já não era suficiente. Vim para dentro. Vim com o meu livro, voltei a ler. A inteligência quando aliada ao saber e à estética deslumbram-me. Sinto quase uma inquietação, como se o que leio, de tão inteligente, sábio e belo me sobressaltasse. 

E depois foram os telefonemas, os meus meninos, lindos, irrequietos, risonhos, os meus filhos também nesta sua nova vida, a minha mãe, umas vezes preocupada, outras bem disposta. E depois hora de jantar. E depois sempre isto, aquilo e o outro. E eu a tentar acompanhar mas deixando-me levar. Parece que perdi o meu ritmo, o tempo passa e parece que dele nada fica.

Durante o dia, penso no que leio, penso nas ideias que me ocorrem, penso que vou escrever aqui mais cedo, que vou falar disto e daquilo e depois escrever um mail, mas depois esvai-se-me a vontade, esvaem-se-me as ideias e esvai-se a vontade de dizer tudo o que penso e de desvendar tudo o que queria saber e, ao mesmo tempo, que não, que não quero saber. Por isso, preguiço, entedio-me, hesito, protelo.

Apetece-me não escrever nada, apenas pedir: 'fale-me de si'. E depois ficar a imaginar como será quem generosamente acedesse ao meu pedido e me falasse do si.


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Tenho que tentar adaptar-me melhor a esta situação, tenho que saber assimilar a distância, tenho que arranjar trabalho físico que me canse, tenho que afastar de mim preocupações, tenho que pensar que tudo isto é bom para o futuro dos homens e do planeta. E tenho que me concentrar na beleza das flores, na beleza da luz a iluminar as pequenas folhinhas das videiras, no mistério e beleza de algumas palavras, na paz que se desprende de tantas coisas. 

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Há pouco, antes de começar a escrever, estive a ouvir poemas ditos e a ver a mais alada de todas as criaturas lançando-se em pleno ar. E pensei mais coisas. Mas agora não vou para aqui pôr-me a falar delas. Vou apenas partilhar convosco.





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A todos desejo um bom dia de domingo

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