segunda-feira, março 30, 2020

Éramos felizes e não o sabíamos...?
Voltaremos a sê-lo e ainda não o sabemos...?





O meu pai nunca foi de grandes conversas. Mesmo quando estava bem, não era de se rir muito, de falar muito. Pelo contrário, a minha mãe sempre foi boa onda e conversadora. Por vezes, punha-se a recordar os seus tempos de juventude mas ele, que a acompanhou desde sempre, não participava nessas evocações. Maneiras de ser. Quando vejo fotografias de quando eram jovens, lá está ele, sempre sério, bem apessoado, ar moderno mas, não sei porquê, parece que nunca totalmente integrado no buliçoso espírito do grupo. A minha mãe, pelo contrário, aparece sempre radiosa. Claro que o cabelo louro claro e os olhos azuis ajudam a que apareça não apenas sorridente como irradiando luz. Era um grupo de rapazes e raparigas que passeava e se sentava a conversar e algum deles fotografava. Talvez a máquina fosse a do meu pai pois por vezes não aparece e porque, do que me lembro, andava sempre com ela. Uma kodak. Depois namoraram, casaram, nasci eu. Há muitas fotografias. Naquelas em que estou, estou sempre a rir.


Mas, então, a minha mãe, por vezes, ao recordar os seus tempos de juventude, lembrava-se dos tempos da guerra. Era pequena. Lembra-se do racionamento. Não sei se lembra ou se se lembra de ouvir os pais falarem disso.

Agora voltou a falar nisso. Quando insisto para que faça uma lista do que vai precisar daqui por umas semanas para encomendarmos, volta a dizer que não precisa, que ainda tem muitas coisas. E, quando falamos na duração da quarentena e no tremendo abalo que isto vai causar em todo o tecido económico, volta a temer. 

E volta a recordar o que ouvia aos mais velhos: a pneumónica. E a tuberculose. Diz que nunca pensou voltar a esses tempos. Diz que parece que eram coisas de uma outra era. Suspira. Sinto-lhe o medo.
[De tarde, seguindo o conselho do João, estivemos a ouvir o Fernando Rosas. Com um século de intervalo, a história repete-se. ]usta a perceber o que andámos a fazer nos últimos cem anos para termos chegado até onde estamos agora]
Mas, enquanto ela falava, recordando memórias certamente mais dos meus avós do que dela, senhas, filas para levantar umas misérias, tempos de penúria, recordei eu outros tempos.


Outros tempos, tingidos pelo inocente colorido da distância e dourados pela doçura da memória.

O meu pai praticava muito desporto, sobretudo futebol. Os meus tios voleibol. Os primos do meu pai, mais ou menos da idade dele, hóquei em patins. E havia outros amigos, todos também dados ao desporto. E as respectivas mulheres, todas amigas umas das outras, muito alegres. Estavam sempre juntos, quer para ver as partidas desportivas uns dos outros quer em eventos que organizavam. E havia muitos miúdos, os filhos que iam nascendo. Lembro-me muito bem desses alegres tempos. Íamos ao cinema, às matinées. Por vezes organizavam gincanas e era muito divertido, toda a gente participava. Eu, já no liceu, era frequentemente par do primo mais novo do meu pai, um bad guy com coração de ouro que eu e toda a gente adorava. Por vezes, os adultos iam ao cinema à noite e, nessas alturas eu ficava com os meus avós e lembro-me de ficar até tarde a conversar com o meu grande amigo, filho de amigos dos meus pais e cujo avô era vizinho da minha avó, mãe da minha mãe.


Mas as noites de que eu mais gostava eram as dos bailes. O recreio da escola primária era transformado em recinto de baile. De um dos lados punham fiadas de mesas. Debaixo do telheiro estava o agrupamento musical. Do outro lado havia grelhadores e bancadas com outras comidas. A toda a volta havia enfeites. Estendiam cordas de um lado ao outro e penduravam-se flores ou outros motivos de papel colorido. E fiadas de luzinhas. Por vezes estavam todas acesas e as danças eram alegres, movimentadas. Depois reduziam um pouco e, aí, os casais enchiam a pista, abraçados.

A minha mãe e as amigas iam todas bonitas, com vestidos floridos de saias rodadas. Conversavam muito, riam, contavam piadas, dançavam. O meu pai, apesar de não ser de contar piadas ou de rir, enturmava-se e, curiosamente, dançava com a minha mãe. E eu andava com os meus amigos, à solta, correndo, dançando, feliz por estar ali, naquelas noites quentes e felizes.


Outras vezes, organizavam concursos de dança e, nessa altura, os bailes eram mais a rigor. A sala de cinema era transformada em salão de baile. A maioria das mesas ficava lá em cima e, cá em baixo, a meio, era a pista de dança e, à volta, algumas mesas. Nessas noites, o traje era mais requintado. As amigas apuravam-se para olharem umas para as outras com apreço, para receberem elogios. Havia um júri, havia eliminatórias. Geralmente sobressaía um grupo de jovens universitários que faziam passos quase acrobáticos, os rapazes levantavam as raparigas, elas passavam por baixo das pernas deles. A assistência ia ao rubro. Ou a valsa, romântica. A assistência a sentir que fazia parte de um filme. Eu olhava extasiada. Gostava de ver os meus pais, tão jovens, tão modernos, e os seus amigos tão bem dispostos. Apesar disso, a ideia que tenho é que quase não estava ao pé deles. Sempre gostei de sentir liberdade de movimentos. Quando queriam ir-se embora, tinham sempre que andar à minha procura.

Nessas alturas, eu era inocente e feliz.


Claro que havia, de vez em quando, algum sobressalto. Uma que andava sempre triste, sem que se percebesse porquê. Mais tarde viria a suicidar-se. Mas isso, muito tempo depois. Naquela altura, apenas causava estranheza tamanha infelicidade. Ou o irmão da namorada de um dos meus tios que regressou da guerra e que veio cheio de angústias, gritos a meio da noite, e deixou de querer participar nas actividades do grupo, não queria sair de casa. Falava-se à boca pequena, veio perturbado. Ouvia-as a conversarem, davam conselhos. Falavam baixo. Mas eu era miúda, percebia que algo de grave se passava, ouvia falar em guerra, mas, ao certo, não sabia nada. E o grupo continuava a ser a mesma alegria.

E a verdade é que, de modo geral, tenho atravessado o tempo assim, transportando boas memórias, momentos de leveza. Apesar de pressentir que, tantas vezes, há o lado menos bom da vida, sentindo que, por vezes, esse lado chega perto de mim, os meus passos têm-me transportado para os campos cheios de luz onde o passado é bom de recordar e o futuro é para onde sempre quero ir.


Mas agora estou onde nunca estive, a meio de uma fissura que parece abrir-se sob os meus pés. 

Hoje estava a ver o fim do noticiário da TVI quando vi que o Paulo Portas tinha trazido um coro a entoar Verdi, cada um em sua casa e, também em sua casa, o maestro. Custa a acreditar que pudesse ter soado tão bem. Emocionei-me ao assistir, tão bela a música, tão bela a interpretação, e emocionei-me ao ver como, de uma forma ou outra, nos vamos todos adaptando a estes tempos de incerteza e medo. Mas a seguir falou o José Alberto Carvalho. Emocionado, esforçando-se para conseguir falar, deixou-me presa ao que dizia, deixou-me angustiada por ele, pelo sofrimento dele. Muito impressionante, muito triste. Que tempos estes em que nem para confortar quem perde um ente querido, nem para acarinhar os filhos ou netos, nem para sossegar os pais, se pode dar um protector abraço. Que tempos estes, que tempos estes, deus meu. 

Como me parecem longínquos e tão ingenuamente felizes os tempos do meu passado.

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As fotografias, como é bom de ver, foram feitas in heaven, lugar onde se recebem de braços abertos todas as estações

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Tomara que, não tarda, venham novos tempos e que, de novo, possamos estar juntos, abraçar-nos, dançar, ser despreocupados e felizes.


A todos desejo uma semana o melhor possível.

Saúde. E esperança.

13 comentários:

Maria Santana disse...

Um abraço "virtual" de agradecimento pr este post!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A UJM sempre a espalhar beleza.

Aquele abraço.

Diogo Almeida disse...

Tem o seu pai algo de quem e como sou, também. Ao ler o post voltei à minha infância, que foi de uma felicidade incrível, e, no reverso, no contraste, a cair nesta realidade pesada que temos nos braços.

Voltaremos a ser felizes.

ECD disse...

Muito bonito. Cuide-se UJM

Pôr do Sol disse...

Curiosamente ainda hoje falei sobre as restrições a que estamos agora sujeitos e as que os nossos pais e avós estiveram. Eles ultrapassaram e nós havemos de passar isto tambem.

Todo o dia recebo videos divertidos, alertas, mensagens de esperança. Hoje chegou-me um com as profecias de Nostradamus de 1555:

E no ano dos gemeos (2020)
surgirá uma rainha (coroa-corona)
desde o oriente(China)
que estenderá sua praga(virus)
vinda dos seres da noite(morcegos)
à terra das sete colinas(Itália)
transformando o pó (morte)
aos homens do crepusculo(ansiões)
para culminar na sombra da ruína (fim da economia mundial)

não sei se acredite. parece-me demasiado adaptado. Mas tudo é relativo e portanto inprevisivel.

Haja esperança e fé que ultrapassaremos isto.
E muitos de nós apreenderemos algo e seremos diferentes no futuro se a memoria não for curta.

Mais uma vez obrigada. Um beijinho mesmo que virtual.

Paulo B disse...

Olá UJM,

Tenho andado numa roda-viva também, mas tenho vindo aqui com alguma frequência, embora não tenha conseguido comentar. Isto do tele-trabalho tem muito que se lhe diga.

Como sabe gosto muito de teatro e não podia vir de deixar aqui partilhar umas magníficas peças que o TNDMaria II disponibilizou online: https://vimeo.com/showcase/6879385
Felizmente vi-as ao vivo!
A peça Sopro é magnífica (é do diretor do TNDMaria II - dramaturgo de que gosto bastante! Tem uma peça muito terna em jeito de monólogo - "By Heart" - muito adequada para ir ver (volta e meia volta a exibi-la) no regresso à "realidade".

A «Montanha - Russa» é também uma peça / teatro-musical bonito - com música ao vivo dos Clã! É para todas as idades mas... quiçá entretenha os mais novos, agora fechados em casa! Pode ser que lhes estimule o gosto pelo teatro!

PS: Cá por cima o TNSJ também tem uma oferta interessante: https://www.tnsj.pt/pt/espetaculos/5711/o-dia-mundial-do-teatro

Uma boa semana!

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria Santana

Abraço a sério para si.

Obrigada. Saúde!

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

E o Chico, não-Chicão, sempre a espalhar charme. Obrigada. E vai daqui um abraço e muitos smiles.

Saúde.

Um Jeito Manso disse...

Olá Diogo, talentoso Diogo,

Estamos a viver um momento especial, uma fractura. Os tempos vão ser outros.

E recordando uma infância feliz e pressentindo um futuro feito de tempos desconhecidos, estou certa que o Diogo deixará que a sua criatividade interprete este sobressalto de uma forma especial e bela.

Obrigada por aqui ter vindo, Diogo.

Saúde. E estima.

Um Jeito Manso disse...

ECD, olá!

Fiquei tão contente quando aqui o vi. Que bom sabê-lo por estas bandas. Espero que esteja a bom resguardo, esperando que a besta invisível e estupidamente minúscula meta a viola no saco. Temos que dar conta dele para recuperarmos a nossa liberdade, não é?

Saúde para si e para os seus.

Abraço!

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr-do-Sol,

É isso aí. Se antes, sem grandes ciências, sem supercomputadores, sem supermicroscópios, sem internet, sem comunidades de cientistas, conseguiram acabar com epidemias, pestes, tragédias, como não haveremos agora de dar cabo dele em três penadas?

Devemos estar colectivamente míopes para não vernos como passar uma rasteira ao bicho e, a seguir, pisá-lo com a sola do sapato.

Abraço, Sol NAscente, abraços e beijinhos. Saúde. Não facilite que o animal é traiçoeiro.

um dia bom, apesar de tudo.

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Bom sabê-lo animado, fiel ao seu amor pelo teatro. Obrigada. A ver se no fim de semana tenho tempo de ver. É que esta droga do teletrabalho não me deixa folga. Uma coisa absurda.

Olhe, Paulo, estes tempos são um desafio, não acha? Muito trabalhinho pela frente, tentando planear um futuro mais sustentável, mais inteligente, mais em sintonia com o respeito pelo planeta, não lhe parece?

Estes novos hábitos vão desenhar um mundo novo. Acho eu.

E obrigada pelas dicas.

Take care.

Abraço, Paulo.

Paulo B disse...

Olá UJM,

São - serão - tempos interessantes e perigosos.
Parece-me óbvio que dificilmente se voltará ao status quo anterior. Ainda que se vá fazer um esforço enorme para isso.

Preocupa-me especialmente as forças de fragmentação do tecido social, muito ativas - como é habitual - nestes momentos de enorme tensão. Essas forças de fragmentação servirão para abrir os enormes espaços vazios que alguém aproveitará para ocupar. E tenho algum receio que os alguéns na linha da frente não são aqueles que desejamos (ou pelo menos eu desejaria).
As campanhas de desinformação e manipulação estão aí por todo o lado. Sinais tão pequenos como aquela atitude indesculpável do pequeno tiranete do Porto (a anunciar que deixava de reconhecer autoridade à DGS), passando pelo governo Húngaro, pela calada da noite, a implementar uma espécie de regime ditatorial no coração da Europa e seguindo para as mil e uma teorias da conspiração que por aí proliferam - muitas ajudadas por políticos que, sendo parvos, lá vão fazendo o seu caminho (e suspeito que o Bolsonaro tem mais apoios em Portugal do que se possa pensar... Dentro e fora da enorme comunidade brasileira).

Curiosamente, a nível do planeamento do território, está situação até veio revelar algumas vantagens do nosso povoamento disperso e de baixa densidade. Veio também mostrar, aos mais atentos, que o interior - desertificado - até pode ser um sítio agradável para viver. Será que saberemos aproveitar isso para um programa massivo de regresso ao interior?

Também é óbvia a necessidade de um investimento a sério nas redes de serviços e equipamentos de interesse geral (serviços públicos). É necessário relembrar que antes das Smart cities, das apps informáticas e outras mil e uma coisas muito tecnológicas é necessária a infraestrutura básica: uma DGS que ainda tem um sistema de contabilização de casos falível / dado a erros (não tanto pela infra tecnológica, mas pela infra organozacional aparentemente), um país que tem ainda tanta gente sem sequer ter acesso às internet, sem equipamentos para tal e, sobretudo, sem literacia para a usar - sobretudo os mais pobres (e aqueles que mais precisariam agora de saber usar serviços públicos online e afins de forma autónoma...). E nem falo num sistema financeiro que levando uma parte substancial das poupanças das pessoas, nem uma medida simples como disponibilizar cartões contact less a todos os seus clientes, terminais que suportem a função e suspenderem as cobranças dos serviços do tipo mbway, nem isso souberam fazer.

Muitas lições a retirar, muito trabalho pela frente e, sobretudo, muitos perigos pela frente!

Como disse o Pacheco Pereira numa crônica numa destas semanas atrás, qualquer coisa como a história não se repete mas ensina-nos bastante. E, faz 100 anos, tivemos uma pandemia semelhante com problemas semelhantes ( as forças fragmentárias, a perda de credibilidade das instituições, a comunicação sob ataque da propagação de "fakenews" promovidas pelo esoterismo da altura - médiuns, seitas, oportunistas, movimentos autoritários -, ...). Que se aprenda alguma coisa com a história e que se abrace o mundo novo que temos pela frente para criar uma sociedade mais fraterna e inclusiva.