quarta-feira, fevereiro 19, 2020

Seios, sustos, uma mulher nua e de saltos altos, santinhos e anjos do além





Não há muito, num daqueles exames de rotina, a médica detectou um pequeno nódulo que não aparecia referido no relatório do exame anterior embora em tempos tenha havido referência a um, que talvez fosse o mesmo e que, inclusivamente, já foi biopsiado e que tanto medo me causou. Esse tinha um nome de que agora não me lembro (seria fibroadenoma?) e, felizmente, era benigno. Não sabendo se era o mesmo e intrigada por não aparecer no exame anterior, pelo sim, pelo não, a médica pediu para repetir o exame quatro meses depois. Foi hoje. Se por um lado tenho para mim que estou bem pois sinto-me bem, por outro sei que há coisas silenciosas que fazem o seu percurso ao longo de anos sem que quem as tem se aperceba do que quer que seja. E, se tendo a ser despreocupada, a verdade é que, na meia hora que precede o exame, um nervoso miudinho se apodera de mim de uma forma um bocado intensa. Para começar, ao ir para lá, ia tão distraída a ouvir música mas ao mesmo tempo já a ficar tão enervada que só dei por que tinha passado o cruzamento onde deveria ter virado quando já ia para aí um ou dois quilómetros à frente. Azar. Impossível virar. Tive que continuar por mais uns dois quilómetros até conseguir inverter o sentido. 

Quando cheguei, mal acabei de me inscrever fui logo à casa de banho. Tinha ido antes de almoço, menos de uma hora antes, mas sentia a bexiga a ponto de rebentar. 

Passado um bocado, chamaram o meu número.

A funcionária mandou-me entrar para um cubículo e disse que me despisse da cintura para cima, vestisse a bata e me deixasse ficar sentada com a porta aberta. Assim fiz. Pensei que aquela de ficar sentada de porta aberta fazia sentido para ter ar para respirar e para ouvir quando me chamassem. Vesti a bata com a abertura para a frente e não a abotoei, apenas a tracei, prendendo-a com os braços cruzados debaixo do peito. Disse-me ainda que, quando me chamasse, eu levasse a carteira comigo.

Entretanto, senti que estava outra vez aflita para ir à casa de banho. Pensei que não podia ir pois a casa de banho fica na zona aberta ao público e, naquele estado, meio despida, não era muito conveniente circular. Pensei que era psicológico, que a bexiga não podia ter-se enchido em meia dúzia de minutos. Mas cada vez estava mais aflita. Pensei que se não me chamassem rapidamente teria mesmo que ir.

Pelo meio, cada vez mais cheia de medo, pensava que tomara que estivesse tudo bem. E, às escondidas de mim, pedi protecção. Mas senti-me uma pedinchona incoerente e sem vergonha na cara. E, lembrando-me de uma coisa que tinha lido na véspera num livro, numa livraria, deu-me vontade de rir.
É que, na segunda-feira, fiz uma daquelas minhas incursões por uma livraria mas, como sempre, tomada por firme decisão de não comprar qualquer livro. Ia-os catrapiscando e pensando: vou ser lógica, vou ceder à ortodoxia dos bem-comportados, não vou ser uma pessoa assim, bla-bla-bla. Às tantas, folheei um e li uma coisa que era qualquer coisa como isto: um homem dizia que, quando estava em apuros e aflições, tirava uma imagem que tinha na carteira e pedia-lhe protecção. E exemplificava, mostrando ao outro a imagem. O outro exclamava: 'Mas é a Greta Garbo!'. O homem confirmava e dizia que era importante ter qualquer coisa em que acreditar. E eu achei a ideia deliciosa. E fiquei cheia de vontade de trazer o livro nem que fosse para reler a cena e para ver se havia mais coisas assim. Mas resisti. Há dias em que consigo portar-me bem. E agora não tenho como validar se foi isto mesmo que li ou se o que contei foi uma construção da minha cabeça a partir de um relance em diagonal num livro aberto ao acaso.
Mas, então, estava a lembrar-me disto e quase a  rir, já mais aliviada da bexiga e do medo. Às tantas, a funcionária chamou 'Bárbara'. Fiquei admirada, pensei que ela tivesse trocado a ficha. Então, para meu espanto, vejo que do cubículo ao lado -- no qual eu não sabia que estava uma pessoa pois quando para lá me dirigi estava fechado -- sai um mulherão. Teria à volta de trinta, era morena, alta, formas generosas. Ao contrário de mim que ia fazer apenas uma ecografia mamária, ela devia ir fazer também a pélvica pois estava nua. Contudo, curiosamente, manteve os saltos altos, muito altos, e a bata aberta atrás, presa por um cintinho, mas deixando-lhe à mostra as costas e, ao andar, as pernas. Uma imagem muito sexy. E ia com a carteira ao ombro o que tornava o conjunto ainda mais insólito. Avançou resoluta, aparentemente sem sombra de medo.

Quando faço os dois exames e também tenho que me pôr nua, vou praticamente descalça para o gabinete da médica, só com umas sapatinhas descartáveis. Pois ela ia gloriosa, em cima dos seus saltos altos. 

Fiquei a pensar que, antes de se levantar, ela devia estar sentada, tal como eu, de porta aberta, tal como eu. Quem estivesse de frente, teria visto aquela beldade toda nua e de saltos altos, apenas vagamente coberta por uma bata fina e descartável, provavelmente a olhar para o telemóvel, e eu, de calças e igualmente de saltos altos, também com a bata, mas certamente com ar amedrontado, a tentar não pensar que não aguentava sem ir à casa de banho e que tomara que o exame não desse nada de mal.

Passado um bocado, saíu do gabinete da médica, bárbara e gloriosa, enfiou-se no cubículo, ouvi fechar a porta, e antes que me chamassem, saíu, saia justa, pelo joelho, um casaco justo a três quartos, a carteira ao ombro; deitou a bata no recipiente e lá foi, óculos escuros na mão.

Passado um bocado, ouvi o meu nome. Lá fui. Assustada e a sentir-me quase muda. A funcionária disse-me para despir a bata e deitar-me de barriga para cima. Escusava de dizer, sei como é. Braços para cima. Desprotegida. A médica encheu-me o peito de gel e começou a tortura, passando o dispositivo, que parece um rato, por toda a superfície dos seios. Faz força, incomoda. Com os braços para cima, não ficamos apenas expostas, ficamos à mercê. Provavelmente por estar em tensão, tudo aquilo me dói. E depois há o medo. Ver a médica a parar, a fixar a imagem no ecrã, a medir o tamanho do que encontra. Mas ela concluíu que estava tudo bem. Ainda lá estava o nódulo mas igual ao que estava há poucos meses e igual ao que estava anos antes. Explicou que pode acontecer não ser detectado em alguns exames por estar escondido atrás de alguma gordurinha. Foi ela que disse: nas maminhas há gordurinhas que, por vezes, não deixam ver bem. Quando ela me disse isso, descontraí. Deixou de me doer e deixei de estar aflita para ir à casa de banho. Respirei fundo, consegui falar.


Quando saí, ia na maior felicidade. Sentia-me agradecida e ocorreu-me que talvez devesse ter na carteira uma fotografia de alguém a quem agradecer numa situação destas. Não uma santa mas um santinho. Pensei que talvez o Jeremy Irons, e que bom, bom mesmo, seria ter um cd com a voz dele e, então, punha-o a tocar e era como se tivesse o santo em pessoa ali a dizer-me poesia. Depois detive-me, senti-me incorrecta por ter pensamentos tão hereges quando deveria era sentir-me recatadamente agradecida.

De tarde trabalhei sentindo a alma leve como uma pluma.

&

Como post scriptum posso ainda contar que, como no sábado e no domingo estive doente e dormi que me fartei, na noite de domingo, sentindo-me já fresca, estava sem pitada de sono. Então, levantei-me e mudei-me para a sala. Estendi-me no sofá, tapei-me com uma manta quentinha e pus-me a ler Gabriel Garcia Márquez: o livro de contos onde se inclui a história da cândida Eréndira e da sua avó desalmada. E o que me deliciei. A sala às escuras excepto o que se via sob aquele pequeno foco de luz. E o que se via era uma delirante delícia.
Tinha chovido tanto que o quintal estava alagado e havia caranguejos por todo o lado. E com o rio transbordante e com a intempérie não só tinham aparecido caranguejos aos montes como tinha aparecido um anjo de cabelo ralo, desdentado e velho. E o casal tinha posto o anjo velho numa gaiola e veio gente de todo o lado para ver o anjo; e o casal ficou rico. E, pelo meio, iam os dois para o quarto e era de todas as maneiras, aos coelhinhos, às formiguinhas e a outros bichinhos. Às vezes enganavam-se e faziam de outras maneiras e não naquela em que iam a pensar. Depois um dia, muito tempo depois, as penas, que tinham caído, voltaram a nascer nas grandes asas e o anjo, a custo, levantou voo e lá foi. Ou, então, a história da jovem Erêndira que era uma escrava às mãos da avó, uma velha gorda, a quem a neta tinha que dar banho, vestir, fazer a lida da casa. Um dia, morta de cansaço, a menina pousou o castiçal e adormeceu. As velas pegaram fogo aos cortinados e casa ardeu mas a avó foi boazinha, disse que não fazia mal, que a neta pagaria o prejuízo. E passou a vender os serviços sexuais da jovem de catorze anos. Dezenas de vezes por dia. A menina exausta. Até que um dia apareceu Ulisses e a menina e ele fizeram amor, de gosto, ao longo de toda a noite. Não contei que o pai da menina se chamava Amadis e o avô também e que já tinham morrido, estavam enterrados no quintal. E que, depois da casa ter ardido, a avó andava com a caixa dos ossos dos Amadises por todo o lado onde fossem. 
Pelo meio a prosa ia andando com pormenores que me traziam a felicidade, tanta a inteligência, o humor e a elegância das palavras. E eu estava a ver que não me dava o sono, tão gostosa estava a leitura. Até senti que, a qualquer momento, poderia sentir um lobo a espreitar-me, na distância, na insolência. Mas não, acabei por cair no sono.


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As fotografias são de Clara Belleville

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Uma quarta-feira feliz. 
A todos desejo alegria. E saúde.

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