segunda-feira, novembro 11, 2019

Quero o que antes da vida foi o profundo sono das espécies, a graça de um estado







Do cogumelo gigante da semana passada nem vestígios. Ainda pensei que estivesse reduzido a uma cutícula como tenho por lá visto algumas, mas nem disso encontrei sinal.

Noutro sítio, um que, de também tão grande, se abriu ao meio, ainda lá está, já a dar mostras de querer decompor-se, voltando à terra de onde, ele como todos nós, saímos.


Mas, do primeiro, nada. Algum animal o terá devorado? Ou ter-se-á desfeito em água? Evaporado?

Entretanto, onde a semana passada nem afloravam, agora estão dois grandes, brancos, perfeitos, a parte inferior rendilhada.

Coloquei o meu pé ao pé para se perceber o tamanho destes cogumelos.
Não tão grandes como o outro que desapareceu mas também grandes como duas belas farófias


Parecem-me milagres. O que eram antes de serem?

Rompem da terra, de sob as pedras, de sob a caruma,  um fofos, outros muito etéreos, quase uma espuma solidificada, outros bem carnudos, tisnados, quase uma crosta em vez de pele.


Como as borboletas que são belas e existem mas que o são a partir do que não eram, suspeito que os cogumelos também. Um pouco como o que escrevo. Estas palavras existe à medida que aparece e não faço ideia de onde estava antes de existir. São mistérios e, tal como todos os mistérios naturais, insondáveis. 

Dos pequeninos, aqueles pontinhos que se erguiam nos seus filamentos transparentes, também nem sombra. Em contrapartida, há agora outros muito discretos, elegantes, num tom requintado.

E continuo a vê-los trincados. Devem ser saborosos e não fatais.


E há outros também pequenos, quase umas florzinhas brancas, por vezes rosadas no centro, luzindo por entre a caruma rubra e molhada, entre folhinhas nascentes, verdejantes.


Só os vejo porque ando cada vez mais devagar, espreitando a terra, baixando-me para desvendar tudo o que me parece diferente do que encontrei na vez anterior que por lá passei. Conheço cada pedra, cada erva, cada rebento.

E encanto-me com tudo. E agora também com o orvalho coalhado por entre a caruma e as folhinhas e pedrinhas. São gotas de uma limpidez absoluta, cristais de luz.


Não encontro um período em que consiga dizer que alguma coisa morre neste meu pedaço de terra.  Tudo vive e revive. Um devir pleno de vida. Pode alguma coisa tombar, quase desfazer-se, misturar-se com a terra, transformar-se em segredo. Mas tudo renasce. Renascerá sob outras formas, mas renasce.

Não sei qual o elo de ligação entre todas as coisas ou o laço que une o que foi, o que é e o que vai ser. Talvez seja apenas a vontade intrínseca de existir, essa força telúrica que dá vida às coisas. A continuidade do tempo como seiva desta vida que se entrelaça, numa longa e infinita cadeia.


As folhas misturam-se com a água da chuva, as cores tingem-se das mais belas cores de outono e assim entrarão na terra, macias e coloridas e da terra brotarão novas formas de vida.

Até das pedras nascem musgos, rebentam flores, despontam árvores. Uma maravilha a céu aberto.
Já mostrei uma vez. 
Do rochedo nasceu um pinheirinho. Ficámos intrigados. De onde lhe vem o sustento? Pensámos que não tem como sobreviver, sem terra. Mas não tivemos coragem para interromper a sua ousadia. 
No verão, ao trepar por ali, algum dos meninos o partiu. Quando o vi com o seu tronco fininho quebrado fiquei de coração desfeito. Juntei as duas partes e amparei-o com pedrinhas em volta. Ainda pensei pôr-lhe uma fita em volta, um pano, qualquer coisa. Mas pensei que poderia ser pior, não deixando que cicatrizasse. Penso nele como se fosse um bichinho. Ao fim de uns meses após o acidente, ainda ali está, vivo, mais crescido. Não retiro as pedrinhas que o amparam com medo que tombe. Não sei quanto tempo vai viver mas não interessa. Há seres que transportam em si a inviabilidade para suportaram inclemências e que não foram fadados para serem iguais aos outros que conhecem todas as fases da decadência.  São seres que, enquanto existem, são belos e eternos na sua cintilante efemeridade. assim o meu querido pinheirinho.

E há arbustos ou pequenos troncos que parecem secar, depois voltam a aparecer cobertos de líquenes ou deles rebentam novas aflorações.

Na primavera passada, naquela de cortar pinheiros que não guardam a devida distância entre eles, para grande desgosto meu, o meu marido cortou um que já estava bem grande. Pois bem, está a rebentar por todo o lado. Recusa-se a desaparecer, impõe a sua viçosa vontade de viver. Acho isso tocante. Não sei se teremos coragem de voltar a tentar o seu fim.


Uma vez, há uns anos, em dia de grande vendaval, algumas árvores caíram in heaven. Um dos que mais me doeu foi um pinheiro enorme que tinha sido plantado pelo meu pai e que estava num canteiro em volta do qual estava um banco de madeira também feito pelo meu pai. O banco partiu-se e o pinheiro, que parecia ajoelhado, teve que ser abatido. A parte do tronco que estava debaixo de terra e da qual partiam as raízes era enorme e eu nunca consegui desfazer-me dela. Ainda lá está e nesta altura cobre-se de musgos, folhinhas e cogumelos, na primavera cobre-se de florzinhas e no verão tem líquenes secos que ficam lindos e chega o inverno e deixa perceber que é um corpo pleno de vida, sempre a reinventar-se, sempre a mostrar-me que a memória do meu grande pinheiro ainda está bem viva.


Hoje de manhã estive com os meus pais e com a parte da família que estava disponível e foi muito bom como é sempre bom. Momentos de felicidade. Sentimento de pertença: os laços de sangue falam muito alto e quando, num grupo, para além daqueles com quem existem os laços de sangue, há afinidades e gostamos uns dos outros, é uma bênção. São momentos de harmonia que perduram na nossa memória. Na memória... e nas fotografias porque, como sempre, registo os sorrisos, as brincadeiras, as alegrias.


E depois, para além das tarefas domésticas -- que ao domingo são sempre muitas -- estive a ler um livro que me aconchegou a alma: o segundo volume de A vida no campo do Joel Neto. Uma vez mais é daqueles livros que, sendo um registo diarístico, não tem outro enredo que não a descrição das pequenas coisas: o jardim que se constrói, a vereda que se desenha, o pão feito pela última vez pela senhora de oitenta anos, a cadela inteligente e meiga, a araucária que tem um carisma que marca a paisagem, o motorista da urbana que conhece toda a gente e manda a menina buscar um casaquinho a casa e por quem ele espera. E o livro vai avançando e vamos acompanhando o que pensa, o que sente o seu autor. Lê-se, lê-se e dá vontade de continuar.


Mas interrompi porque tive outras coisas para fazer e depois li dois mails que muito me tocaram, muito mesmo, e nem respondo já pois quero que façam o seu percurso dentro de mim.

E agora aqui estou de novo, a ver as fotografias dos meus meninos queridos que crescem todos os dias, vão deixando de ser meninos pequeninos, e são tão, tão, queridos, e eu gosto tanto de estar com eles, tão brincalhões. E também já estou com saudades dos verdes e dos perfumes e da beleza imensa que irrompe por todo o lado in heaven.

Há um tempo que une todas as coisas e pessoas de que gosto, um tempo que transporta afectos e memórias e bons auspícios, e esse tempo é a cola que dá a unidade de que preciso para melhor perceber o sentido da vida e para mais confiantemente me entregar ao exercício de existir.

E dito assim pode parecer estultice e, certamente, é. Mas não encontro melhor forma de transpor para palavras o que sinto até porque é sensação vaga, ideia que talvez nunca consiga formar-se.


Mas é isto. 

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O título do post pertence ao poema Exausto de Adélia Prado.

E, se me permitem, partilho de novo um vídeo de Li Ziqi, a jovem que vive no campo com a avó


A paz entre as pessoas que se amam e respeitam e que vivem em harmonia com a natureza

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1 comentário:

AV disse...

Os livros de Joel Neto são um encanto. Têm um efeito regenerador. Ainda tenho saudades das crónicas dele ao Domingo no DN. Eram o melhor começo do Domingo. É uma pessoa com grande sensibilidade e humanidade, também.