quarta-feira, setembro 26, 2018

O ovo




Sou muito pré-histórica. Ninguém é perfeito mas este meu defeito começa a pesar. Manifesta-se assim: quando a gente foi fadada para ser inocente, vem este defeito que começa a alastrar dentro de nós e começa a fazer com que a gente passe a ter a sensação do déjà-vu com mais frequência do que devia. Muito abusado este defeito. 

Por exemplo. Vem um inteligente e tem uma ideia e toda a gente aplaude tamanha inteligência e vai a gente, com o tal defeito da pré-história, vê logo que aquilo, mais tarde ou mais cedo, vai é dar merda. E, quando todos se levantam e batem palminhas, a gente, presa à cadeira, pensa: 'está bem, está, daqui por uns tempos a gente fala'. E se tenta alertar, 'cuidado, então não vêem?, aquilo é gato por lebre', logo vêm os zeladores pelos bons costumes dizer que a gente é avessa à mudança, desalinhada do pior, e que mais vale é estarmos caladinhos para não travarmos o progresso.

E isto de as coisas irem dar merda -- e quase ninguém perceber que a linda coisa que aplaudiu não é senão o ovo da mediocridade que vão chocar - e a gente perceber isso logo de início é uma chatice. É que, cá para mim, isto não é de a gente ser mais inteligente que os outros: isto é mas é de ser mais velha que o caraças e ser vcc nunca foi bom em parte nenhuma do mundo.


Por exemplo: vejo a Cristina Ferreira a entrar na SIC, a andar de perna aberta e ao léu, laçalhão de lado, sorriso superlativo e plastificado, dizendo lugares comuns e parvoíces como se estivesse a descobrir o mistério do bosão e penso: a SIC não vai acabar bem. É que, pior. tudo aquilo se passa em horário nobre. Os directores da SIC a prestarem-lhe vassalagem. E o dito maçador déjà-vu: isto é o inexorável caminho da decadência. A SIC está numa deriva, com perda de popularidade, perda de receitas, recorrendo a todo o tipo de cavalices e chico-espertices e, não contentes com isso, foram buscar um dos expoentes da maneira fácil de agradar às bases. Baixar o nível, banalizar, explorar o lado mais primário das emoções. Qualquer profundidade será vista pela diva Cristina como uma seca que as pessoas não querem ouvir e ver. E é imparável. A partir do momento que alguém toma a opção de contratar uma pessoa assim, vai apoiá-la, vai querer provar que tomou a decisão acertada. E o caminho descendente será percorrido.

Nas empresas acontece isto a toda a hora. Gente impreparada, gente exibicionista, gente sem um pingo de humanidade ou visão de longo prazo, gente parva -- tudo aparece posto em lugares de poder. Começam por impressionar bem os incautos. São aplaudidos. E vão trilhando o seu caminho de passar por cima de toda a folha, de pisar o que encontram pela frente. Um desastre.


Mas nas letras a mesma coisa: quantos bons escritores são ignorados enquanto tudo o que é show off, alarvidade e bajulação ou pura ignorância é levada aos ombros? 

Como querer ter uma sociedade exigente, culta, crítica quando, em simultâneo, a tolerância para com a mediocridade é a palavra de ordem?

Os States. O desastre mais vergonhoso no mundo moderno. Um país em que o grande maioria não sabe de geografia, de literatura, de história, de ciência --- como não ia acabar assim, nas mãos de uma besta quadrada? O que é o Trump senão a resultado de uma bem evidente tendência degenerativa?

Ou quando uma coisa como o Web Summit, supostamente uma plataforma de encontro entre empresas tecnológicas, se propõe ter uma Marine le Pen como oradora ou quando uma universidade convida negacionistas para serem oradores, está-se à espera de quê? Que coisa boa pode nascer daí? Alguma vez gente estúpida traz algo de bom seja para onde for?


Sermos contemporizadores, fofinhos, adeptos de brandos costumes, sermos ceguinhos, não querermos ver um palmo à frente do nariz, irmos na onda, carneiros passivos -- é a melhor maneira de abrirmos a porta a quem nos há-de destruir. Não é à toa que se choca o ovo da serpente .

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Um Leitor a quem muito agradeço enviou-me um vídeo (o que está aqui abaixo) que me pareceu interessante. Ao tentar localizá-lo no YouTube para o incorporar aqui encontrei a versão mais longa e mais contextualizada. Coloco ambos aqui apesar de o segundo não estar traduzido.

Porque é que a América é o melhor país do mundo?



Porque é que a América já não é o mais fantástico país do mundo?



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E, por falar nisso, aqui fica uma sugestão, para quem ainda não viu

O ovo da serpente, um filme de Ingmar Bergman


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As fotografias que intercalei no texto são da autoria de Christy Lee Rogers e foram feitas debaixo de água. São maravilhosas, incomuns. Valem a pena. A necessária antítese. O antídoto.

Partilho o vídeo que mostra o movimento maravilhoso das bandeiras e das gentes dançando debaixo de água -- sonho e liberdade


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6 comentários:

Marieta Pinho disse...

Palminhas para si UJM.Bjs.

Um Jeito Manso disse...

Olá Marieta,

Gracias very much. Tomara é que eu as mereça mesmo.

Um abraço, Menina-do-Cerelac

Janita disse...

Santo Deus, UJM!! É tudo tão completo, bem descrito, com fotos lindíssimas, que mais parecem telas renascentistas, que eu leio, vejo e oiço e nem sei o que dizer.

Tudo isto depois de ter clicado na imagem, que nos leva ao seu outro blogue, e vir de lá extasiada com aquele terno affair entre Lisboa e o Ginjal...Nem apetece sair daqui.

(Já estive na esplanada do "Atira-te ao Rio". Adorei o passeio.)

Quando for grande - o que nunca irá acontecer - quero ter Um Jeito Manso de ser.

A big smile too. :)

Um Jeito Manso disse...

Olá Janita,

Pois é... o Ginjal... até me deu vontade de lá ir escrever uma coisinha. Não sei como é que eu conseguia, todos os dias, escrever nos dois blogs. Agora adormeço a meio deste...

Mas deu-me aquela saudade, sério. Vou ver se acordo para ir lá dar um arzinho da minha graça.

Adoro passear no Ginjal, passeio mais lindo.

Abraço, Janita!

Anónimo disse...

E na Sic a coisa compõe-se: Manuela Moura Guedes a comentadora!
Medo!

Um Jeito Manso disse...

Claro, as cobrinhas começam a rebentar por aí. Coloca-se o ovo, choca-se o ovo e é vê-las a despontarem. O canal do Número 1 começa a ficar composto. Até que o lixo há-de transbordar. Estamos cá para ver.