segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Dois momentos que me marcaram




Contei-o uma vez e, deliberadamente, tentei fazê-lo de uma forma vagamente abstracta. Decorreram uns anos. Sinto-me mais apta a contar agora com maior objectividade, pelo menos tanta quanto a minha memória o permita.

Estávamos a fazer uma caminhada à beira-rio. Era de noite, estava frio e vento, as águas eram ruidosas ao bater contra as muralhas e as correntes que prendiam os barcos ao cais rangiam furiosamente.

Eu fotografava os reflexos das vagas luzes nas águas batidas e as pequenas luzes tremeluzentes nas casas ao longe; e o meu marido, não querendo estar parado, foi seguindo. Faz isso muitas vezes: ganha-me distância e depois volta atrás para me apanhar e puxar por mim. Nessa altur,a eu tinha deixado de vê-lo. Não estava ninguém por perto naquela noite fria. 

Então, quando começava a afastar-me do cais, pareceu-me ouvir uma voz vinda do rio. Assustei-me pois a voz parecia-me vir das águas, de um lugar onde não havia sequer barcos.

Olhei em volta, procurando o meu marido mas não o vi. Um pouco a medo, aproximei-me da muralha de onde me parecia vir a voz. Ouvia-se mal, as ondas batiam com força. Ali a muralha é inclinada. Fui-me aproximando. Ouvi, então, distintamente: 'Ajude-me...'. Uma voz de mulher. Aproximei-me, baixei-me. Com dificuldade consegui perceber, então, lá em baixo, dentro de água, uma mulher, a cabeça tentando manter-se fora de água mas sendo permamentemente submersa pela força da ondulação. Estendia os braços para a muralha, tentando segurar-se. 

Disse-lhe: 'Estou aqui. Vou ajudá-la'. Olhei em volta a ver se via alguém. Ninguém. Tentei ligar ao meu marido. Não atendeu. Com o telemóvel no bolso e com o barulho do vento não ouviu. Debruçada, disse à mulher: 'Tente agarrar-se. Vou à procura de ajuda'. Fui a correr ver se descobria alguém junto aos barcos, a ver se alguém tinha cordas. Ninguém. Até que vi dois homens. Pedi-lhes ajuda: 'Está uma mulher dentro de água. Preciso de ajuda'. Os homens foram a correr comigo. Entretanto, vinha o meu marido que veio também logo ver o que se passava. Tentaram ver se conseguiam descer a muralha mas era impossível, escorregavam. Ela chorava. Durante todo esse tempo fui falando com ela. 'Estou aqui, não tenha medo, vai tudo ficar bem'. Algum deles ligou para os bombeiros. E eu: 'Já aí vêm os bombeiros, tente agarrar-se, força, estamos aqui, não lhe vai acontecer nada, não tenha medo'. Por entre o barulho da água contra a muralha ouvia-se o seu choro. 

Chegaram os bombeiros. Atiraram cordas, ela não tinha força, devia estar exausta. Os bombeiros desceram pelas cordas e trouxeram-na. Era uma mulher de uns quarenta e tal anos. Encharcada, enregelada, tremia, chorava. Deitaram-na na maca, envolveram-na. Perguntaram-lhe por alguém da família. Chorando, trémula, falou no marido. Não se lembrava bem do número. Fui eu que liguei. Enervada com a situação, sentindo-me atrapalhada por não saber como dar uma notícia daquelas: 'Já está tudo bem mas a sua mulher caíu à água mas está tudo resolvido, já foi resgatada e vai ser levada para o hospital'. O homem não mostrou nem surpresa nem grande preocupação. Pelo menos foi o que me pareceu mas, claro, posso ter-me enganado. Afinal, o telefonema durou um breve instante. Disse: 'Está bem. Vou para lá'. Enquanto os bombeiros faziam as manobras de a virar, de a auscultar, tapar, registar o meu contacto, etc, ela esteve sempre de mão dada comigo. A mão estava gelada e toda ela tremia. Perguntei-lhe: 'Mas como aconteceu...?'. Ela apertando-me a mão e chorando ainda mais disse: 'Sou tão infeliz...'. Depois pediu-me: 'Venha comigo... não me deixe... ajude-me... sou tão infeliz'. Fiz-lhe uma festa e disse-lhe: 'Vai tudo ficar bem'.

Não me deixaram ir na ambulância.

Liguei para o hospital e disse que ia chegar uma mulher, e disse o nome dela, que eu suspeitava que tivesse tentado suicidar-se. Disseram-me que estivesse descansada, que teria acompanhamento especializado. 

Algum tempo depois, voltei a ligar e perguntei por ela e se o marido lá estava. Disseram-me que sim, que já estava com o acompanhamento que situações assim requerem e que sim, o marido já lá estava.

Não fui lá. Pensei que os técnicos de saúde saberiam lidar com a situação melhor do que eu e que a minha presença apenas poderia introduzir confusão. Mas a voz dela a chorar e a dizer-me da sua infelicidade não me sai da cabeça.

Pouco tempo depois, de noite, estávamos a atravessar da Ponte 25 de Abril, quando vimos um vulto sobre a vedação, notoriamente na posição de quem está a pensar atirar-se. Mas, dada a velocidade a que o carro ia, só o assimilámos já o carro estava bem mais à frente. Ficámos apavorados mas percebemos que seria preferível pedirmos socorro do que pormo-nos nós a correr na ponte, podendo assustar a pessoa e precipitar as coisas. O meu marido acelerou e, num ápice. chegámos à casa da Lusoponte. A funcionária estava ao telefone e eu gesticulei, gritei: 'Está uma pessoa em cima da ponte! É urgente!'. Ela com ar de quem lida com uma banalidade disse: 'Já foi accionado o alarme.' E eu, em pânico, 'E já foram para lá?' e ela, 'Sim, claro, descanse' E depois, com um certo enfado. 'Gostam muito de se empoleirar na ponte'. Pelo tom e pelas palavras percebi que não era coisa rara. E tudo aquilo me fez muita, muita impressão. Alguém atravessa a noite com vontade de pôr fim à vida.  Momento único e decisivo. E aquela outra pessoa que ali está todos os dias vê isso como um acontecimento banal e não fica em pânico, aflita como eu estava.
Agora, em especial à noite, quando passo a ponte, vou sempre com atenção. E durante muito tempo, sempre que íamos andar à beira-rio, passávamos por aquela muralha, com medo que estivesse lá alguém e que não a ouvíssemos.
Não sou dada a balanços ou a pensamentos muito aprofundados (especialmente porque intuo que não há maneira de atingir as profundezas da mente pelo que todos os esforços serão sempre escusados). Mas, às vezes, se me dá para aflorar, ainda que ao de leve, isto de se tentar perceber qual o sentido da vida, da minha em concreto, dou por mim a pensar que, para além daquilo da propagação da espécie e de ter ajudado a fazer um bosque frondoso onde antes apenas havia mato e pedras, se calhar devo acrescentar este facto -- que me emociona sempre -- de talvez ter ajudado a salvar duas vidas. E junto ainda as palavras simpáticas de Leitores que dizem que as minhas palavras os têm ajudado em momentos mais difíceis da sua vida. E, por tudo isto, acho que tem valido a pena viver.


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Lembrei-me de escrever isto depois de ter transcrito o prefácio de Agustina sobre o Al Berto (que não se suicidou mas em quem ela via a presença de um certo desacerto com a realidade).

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