segunda-feira, setembro 04, 2017

O desassossego de Fernando, o homem que queria e não queria ser múltiplas pessoas



No liceu, por aquelas alturas, eu era Julieta e Fernando Pessoa não me dizia nada até o meu Romeu, um excelente jogador de futebol que tinha a marca distintiva de ser um sarrafeiro de primeira, surpreendendo toda a sala, incluindo a professora,  ler, com voz sentida, O Mostrengo. Apaixonada já eu estava. Presenciando aquela leitura, fiquei arrepiada, irreversivelmente seduzida. A sala ficou em silêncio. Não sei se todos rendidos a Fernando Pessoa, se estupefactos com aquele dom de que ninguém suspeitava no aluno mais mal comportado da sala.


[Aqui dito por Guilherme Gomes]


E durante mais uns quantos anos, Fernando Pessoa ficou para mim apenas como aquele que tinha proporcionado tão extraordinária revelação. Ricardo Reis ou Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro eram para mim uma ficção que não entendia bem e cujos frutos não me atraíam. Como poesia, aquilo não me convencia. Portanto, fui entrando na idade adulta sem grande apego a Fernando Pessoa. Apego, disse eu? Qual apego? Interesse. Praticamente nulo.


Mais tarde, nem sei quando, comprei uma colectânea. Devo tê-la para aí. Montes de poemas. Pensava: 'este fazia poemas a metro' ou 'isto é um granel'. Coisas de jeito misturadas com banalidades -- pensava eu enquanto ia sentindo uma curiosidade crescente; mas, ainda assim, sem ficar cativada.

Depois, sendo eu habitante afastada do mundo académico-literário, ia sabendo com alguma incompreensão do fenómeno de estarem sempre a aparecer mais poemas, mais textos, mais edições. Pensava que aquela arca teria que não ter fundo para assim irem surgindo mais pseudónimos, mais escritos. Parecia-me uma história rocambolesca. Às vezes, no meu íntimo, pensava: 'isto é uma história mal contada'. E, sobretudo, tenho que confessar a verdade: aquela poesia, fosse qual fosse o pseudónimo a escrevê-las, continuava a prender-me por aí além.

Até que um dia adquiri o Livro do Desassossego. Era um livrinho pequeno. Achei-o extraordinário. Fui lendo, relendo. Algumas passagens não me pareciam nada de mais mas depois havia outras que eram surpreendentes. Anos depois vi-o à venda noutra edição. Tinha crescido: era agora um livro gigante. Mas outro livro. Pura incompreensão para mim, isto.

Contudo, o mesmo choque: se alguns textos se debruçavam sobre banalidades, a forma como essas banalidades inconsequentes -- mas, na realidade, determinantes -- era apresentada continha, a meu ver, uma interrogaçõa profunda sobre o acaso, sobre a pequenez de tudo mas, ao mesmo tempo, sobre a imensidão que, na verdade, é feita de uma miríade de pequenas coisas.

E se tudo podia parecer vogar sobre o manto de leveza ou pasmo que sobrevoa a vida, o que se percebia era a indeterminação, a quase desmotivação, a incessante demanda e a certeza de que jamais se alcançará a resposta. Coisas assim, que me deixavam estupefacta. Pensava com estranheza como era possível ter chegado até aquela idade sem ter sabido que havia, em língua portuguesa, um livro fabuloso como aquele. Fabuloso não parece uma boa palavra, especialmente agora que está tão vulgarizada. Indefinível é melhor. 

Pois bem. Se para mim, que sou leiga e ignorante, difícil é pronunciar-me de forma douta e esclarecedora, atraente é tentar apreender o que outros, mais entendidos dizem.

Para começar, a palavra a quem sabe do que fala:

Teresa Rita-Lopes fala do(s) Livro(s) do Desassossego - o livro da vida de Fernando Pessoa

Teresa Rita Lopes é uma das mais respeitadas especialistas na vida e obra de Fernando Pessoa. É dela a organização da mais nova edição do clássico Livro do Desassossego, que recebeu um "s" no título da Global Editora: pois são três livros, escritos por três semi-heterônimos diferentes do autor - Vicente Guedes, Barão de Teive e Bernardo Soares. A escritora e estudiosa explica que respeitou a organização pensada pelo próprio Fernando Pessoa, ao longo de sua vida.
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Vem isto a propósito do sucedido.

Num outro dia atípico e pouco recomendável,  tentei ocupar o tempo rodopiando entre jornais de outras paragens e foi aí, mais concretamente no The New Yorker,  que fui dar com o artigo cuja leitura recomendo e que aqui menciono:

Fernando Pessoa’s Disappearing Act


The mysterious masterpiece of Portugal’s great modernist.


By Adam Kirsch


Transcrevo o início do artigo: 
If ever there was a writer in flight from his name, it was Fernando Pessoa. Pessoa is the Portuguese word for “person,” and there is nothing he less wanted to be. Again and again, in both poetry and prose, Pessoa denied that he existed as any kind of distinctive individual. “I’m beginning to know myself. I don’t exist,” he writes in one poem. “I’m the gap between what I’d like to be and what others have made of me. . . . That’s me. Period.” 
In his magnum opus, “The Book of Disquiet”—a collage of aphorisms and reflections couched in the form of a fictional diary, which he worked on for years but never finished, much less published—Pessoa returns to the same theme: “Through these deliberately unconnected impressions I am the indifferent narrator of my autobiography without events, of my history without a life. These are my Confessions and if I say nothing in them it’s because I have nothing to say.” 
This might sound like an unpromising basis for a body of creative work that is now
considered one of the greatest of the twentieth century. If a writer is nothing, does nothing, and has nothing to say, what can he write about? But, like the big bang, which took next to nothing and turned it into a cosmos, the expansive power of Pessoa’s imagination turned out to need very little raw material to work with. Indeed, he belongs to a distinguished line of European writers, from Giacomo Leopardi, in the early nineteenth century, to Samuel Beckett, in the twentieth, for whom nullity was a muse. (...)
 E a sua conclusão:
In its alternations between self-loathing and self-exaltation, “The Book of Disquiet” can seem like a quintessentially manic-depressive epic. Pessoa’s achievement, deliberate or inadvertent, is to show how the roots of a certain kind of misery lie in solipsism—the belief that nothing outside the self really matters, so that the mind can never be truly affected by what it experiences. “Freedom is the possibility of isolation,” he writes in the final entry. “If you cannot live alone, then you were born a slave.” But even Pessoa, finally, could not live alone; he kept himself company by inventing his heteronyms, which, unlike actual people, would always remain under his control. Only death could free them—and him—from his imagination’s all too powerful grip. ♦

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E eu que, em diversos palcos da grande imprensa internacional, vou encontrando referências às maravilhosas praias de Portugal, aos melhores locais para fazer compras em Lisboa, aos lugares de charme onde ficar no nosso país... e por aí fora, dou por mim a pensar: mas querem lá ver que Fernando Pessoa ainda vai tornar-se um astro na literatura internacional? a literatura portuguesa vai ficar na moda? Eu, se fosse agente ou editora, sintonizava as antenas.

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Entretanto, para abrir o apetite aos distraídos.

"Educação Sentimental" --  Livro do Desassossego, Bernardo Soares

 

| Catarina Wallenstein



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Fernandinho e o seu bombonzinho e inconsumado amor: Ofélia
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Como se cada beijo
    Fora de despedida,
Minha Cloé, beijemo-nos, amando.
    Talvez que já nos toque
    No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia;
    E que no mesmo feixe
    Ata o que mútuos fomos
E a alheia soma universal da vida.

[Poema de Ricardo Reis referido no artigo acima menionado]

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