domingo, setembro 03, 2017

Cenas da vida doméstica




E não esperem, por favor, que vos fale da actualidade pois não faço ideia de actualidade nenhuma. Todo o dia fora da actualidade. Nem notícias, nem fofocas, nem temas que incendeiem as redes sociais, nem coisa nenhuma.

Estes meus dias andam peculiares. Mas à tarde emergi num outro mundo e ainda é nele que estou.

Conto.

Já era noite, fui à casa de banho buscar um creme, tinham-me pedido uma massagem, e, num relance, vi-me ao espelho. É instintivo: sempre que passo perto de um espelho, olho-me. E fiquei admirada: vi-me bonita. Lábios em cor-de-rosa brilhante, sombra em cor de musgo sedoso nos olhos, cabelo penteado, apanhado dos lados. Nem parecia eu. Há duas semanas que não me arranjo desta maneira, a imagem no espelho parecia-me uma outra eu. Voltei à sala e disse: 'Olha, gostei de me ver, estou bem'. O meu marido olhou-me e confirmou: 'Estás mesmo'. A menina sorriu orgulhosa. Como sempre que cá dorme, pede para me maquilhar. Vai buscar o grande estojo que a tia me ofereceu e que faz as suas delícias. Antes pintalgava-me toda. Agora não. Está crescida, fez sete anos, já tem mão, já tem o gosto apurado.

Antes estive eu a penteá-la. Apanhei um pouco de cabelo de cada lado, fiz duas trancinhas e prendi-as em cima com umas molinhas em tartaruga. Com o seu cabelo castanho claro assim apanhado, os seus belos olhos em azul-acinzentado claro e os seus lábios cheios e rosados, estava linda.


Entretanto, o irmão, já com sono, estendido no sofá, disse: 'Eu, para mim, é uma massagem. Trinta minutos, se faz favor'. Lá fui, então, buscar creme, lá lhe fiz uma massagem talvez de uns cinco minutos. Antes tinha estado a portar-se mal, a tirar o pente à irmã, antes a tirar-lhe o copo de lavar os dentes, a empurrá-la, sempre a fazer das dele. Zanguei-me. Quando estava a dar-lhe uma lição de moral, disse, com ar enfastiado: 'Já percebi, porra'. Zanguei-me outra vez. 'Isso diz-se? Ai, ai!'. Fez cinco anos e embora fisicamente não se pareça com o pai, na maneira de ser é tal e qual. Reguila, provocador, naturalmente irreverente, a tender para o disparate. O pai, quando era pequeno, não apenas dava conta do juízo à irmã, sempre a provocar-lhe ira, como dizia palavrões que até fervia. Acho que já o contei. Eu zangava-me, dizia que, se continuasse a dizer asneiras, lhe punha pimenta na língua. Não ligava patavina. Também com quatro ou cinco anos era um abusador. À mínima, lá saía palavrão. Um dia, furiosa, peguei nele e pus-lhe mesmo pimenta na língua. Nunca imaginei o efeito daquilo. O miúdo quase dava pulos até ao tecto, aflito. Fiquei aflita, talvez mais que ele. Peguei nele ao colo, fui a correr para a casa de banho, lavei-lhe a língua, lavei, lavei. Arrependida, arrependida, ainda hoje arrependida. Dava-me conta do juízo. Tinha tanto de inteligente, divertido e generoso como de traquinas e mal comportado. A minha filha, quase três anos mais velha que ele, penou um bocado. Assim é este agora. 


Ela é uma doçura. Opiniosa e decidida, é, no entanto, uma ternura. Agora ganhou o gosto a mandar mensagens. Nesta semana, um dia estava eu a dormir, às oito e picos da manhã, recebo uma mensagem da minha nora: 'Olá. Já estás acordada'. Pensei que se tinha enganado, que seria para a mãe dela pois a mim não me trata por tu. Estremunhada, respondi: 'A mensagem é para mim?' E, na volta: 'Sim, é'. Perguntei: 'Porque perguntas isso?'. Com familiares hospitalizados, pensei que havia coisa, e logo o meu coração começou a disparar. Resposta: 'Porque queria saber se estavas acordada.' Só depois reparei que a seguir às palavras vinha um bonequinho, acho que um unicórnio. Percebi, então. Perguntei se era ela, a bonequinha mais linda. Confirmou que sim. Respondi que ela me tinha acordado e que ia voltar a dormir. Respondeu: 'Bons sonhos'. Aqui presumo que já industriada por algum dos progenitores. Mas também pode ter sido coisa dela.

Hoje já se fartou de enviar mensagens aos pais. Eles enviam-me mensagens a mim a perguntar se eles se estão a portar bem ou se já jantaram ou o que estão a fazer e é ela que responde, e com uma velocidade e um à vontade fantásticos. Desliza o dedo sobre a letra para escolher o acento correcto, aceita as palavras sugeridas, escolhe bonecos que lhe parecem alusivos à conversa. Ele também pede para mandar uma mensagem mas só quer mandar bandeiras. De tarde, transcreveu palavras que tinha manuscrito e que eu lhe tinha ditado: Gato lava vulcão. Depois escreveu o nome dele. Seguiu assim a mensagem. O meu filho respondeu: Lava e vulcão fazem sentido. Só não sei o que está o gato aqui a fazer.


Agora de noite, os pais andam com os amigos e com o bebé no Avante. De tarde fiquei também com o bebé. Eu sozinha com os três. O meu marido tinha ido fazer uma visita daquelas que têm ocupado os nossos dias. Mas correu bem. Portaram-se bem. O pior foi quando o bebé acordou cheio de fome. Ficar calado na cadeira da papa está quieto. Eu e a maninha a preparamos a papa e ele aos gritos. Depois lá comecei a dar-lhe a pratada: acalmou-se instantaneamente. Se, pelo meio, tinha que interromper nem que por uns segundos, por exemplo, para abrir um iogurte líquido para o mano, que custava a desenroscar, logo ele desatinava, numa berraria. Come que se farta e tem que ser de penalti. Depois, mal acaba de comer, quer cirandar. Eu a querer lavar a louça e ele aos berros. Como, entretanto, o avô chegou e foi jogar à bola com o outro para a relva do jardim (enquanto a mana, com a minha máquina, fazia a reportagem fotográfica), levei-o lá para baixo e, dando-lhe balanço, pu-lo a dar pontabés na bola. Adorou. Uma festa. 

Entretanto, já estive a trocar mensagens com a minha filha. Na segunda-feira fico com os dela. Mais crescidos, dois reguilaços, vivaços, super bem dispostos. temos que arranjar programa à maneira.

Agora estes dois já estão, obviamente, a dormir. Como habitualmente, pediram que contasse uma história da princesa Margaret. Ela disse: 'A Princesa Margaret pinta um quadro'. Lá contei. Depois pediram mais uma: 'O primeiro dia de escola da princesa Margaret'. A parte pela qual sempre aguardam com expectativa é aquela em que o cão Kikas se porta mal e causa embaraços a toda a família. Um dia ainda vou ver se relembro as dezenas e dezenas de histórias da princesa Margaret que já inventei e publico uma colecção. 

E é isto. Agora vou eu dormir que a alvorada é cedo.

A vida é um verdadeiro carrocel, altos e baixos, sustos e alegrias, momentos de agitação, momentos de paz. Saibamos sempre agarrar e fazer perdurar os bons instantes e deixemos esquecer o que de menos bom vai atravessando o nosso caminho -- é o que eu penso. Não sei se penso bem, se mal, mas, pensar assim, a mim ajuda-me muito.

E que as crianças guardem boas recordações da sua infância e saibam transportar por toda a sua vida as doces memórias de quando ainda acreditavam que o mundo era um lugar seguro e tranquilo para que lutem para que assim ele seja.


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Fotografias de aves no The Guardian

Connie Talbot interpreta Three Little Birds 


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