quinta-feira, agosto 24, 2017

Um deus no Portinho, um soldado a precisar de cuidados, um pintor em casa.
[O estranho que nós amamos]



O mais que me aconteceu foi estar deitada na praia a ler o ABC da Relatividade e ver aparecer, perto de mim, um deus, forrado a cabedal, com uma mota ao lado.

Deu-se isto no Portinho da Arrábida em pleno verão. E não eram um, eram dois. Mas só tive olhos para um pelo que não sei se outro também trazia uma mota ou se vinham os dois na mesma. O que sei é que o deus começou a despir-se e era uma coisa do outro mundo. Um físico assim eu nunca tinha visto. Ficou apenas com uma curta tanga azul. E eu que não gosto de ver homens de tanga, percebi que um deus pode tudo, até uma tanga indecente. Bronzeado. Tinha cabelo encaracolado, castanho, e era a inesperada materialização de Apolo.

Mas sou uma resistente: continuei a ler, como se não tivesse presenciado aquela aparição.

Quando fui nadar, estava sozinha num mar transparente, quando o deus emergiu ao meu lado. Veio debaixo de água e, mostrando uns olhos escandalosamente azuis e falando francês, disse: 'Ah, estava então a ler sobre a teoria da relatividade...?'. Não é um deus saído das águas, com uns olhos daqueles e a falar francês, que me tira a lucidez. Por isso, enquanto nadava devagarinho e ele ao meu lado, confirmei e perguntei-lhe em que é que isso o interessava. Respondeu-me que muito já que era, justamente, estudande de Física. Logo ali se selou uma súbita empatia. Não sei se falámos muito sobre a matéria, se nos movemos para Einsein ou o quê. Era uns dois ou três anos mais velho que eu, vinha de França à descoberta, era comunista mas da linha libertária, nada a ver com os revisionismos caciquistas que o incomodavam demais. Os pais eram diplomatas em Marrocos, vivia em Paris. Tinha uma irmã mais velha, já casada. Vivia sozinho e sentia-se absolutamente livre.

Durante todo o dia, desde manhã ao fim da tarde, conversámos, ora deitados ao lado um do outro na areia, ora nadando até não podermos mais. Fizemos confidências, dissemo-nos um ao outro que éramos bonitos, olhámo-nos nos olhos. Queria sair comigo nessa noite e encontrar-se comigo nos dias seguintes. À última hora lembrei-me que não era oficialmente livre, que estava para regressar dentro de um ou dois dias do Algarve aquele por quem eu usava uma aliança. Ele não percebeu a minha decisão, pareceu ficar surpreendido e triste. Quis o meu número de telefone e também não lho dei. Também não quis o dele. Ficámos incontactáveis. Nunca mais soube dele. 

A vida é assim mesmo, feita de decisões que impimem bifurcações que nos levam por caminhos nos quais divergimos de outros que, de outra forma, poderiam modificar o rumo da nossa vida.

Quando dei aulas, também apareceu um sindicalista na sala de professores. O horário dele não coincidia com o meu mas encontrava-o sempre ali. Também era quase perfeito e também andava de mota. E queria que eu me sindicalizasse. E também. Mas um dia, estando eu acompanhada, passou por mim e, para me cumprimentar, piscou-me o olho de uma maneira atrevida, parecia que estava a pedir, a desafiar, e isso causou desconforto apreciável na minha companhia pelo que o tema se tornou desconfortável. Depois esteve desaparecido. Disseram-me que tinha tido um acidente inexplicável, que parece que se tinha atirado contra um muro. Ficou muito mal. Quando voltou, estava estranho. Disse-me que tinha pedido transferência para uma escola no alentejo interior. Ele, que não conseguia viver longe de Lisboa e das praias, pediu a transferência para um lugar no meio do nada. Fiquei intrigada, disse-lhe que não percebia. Respondeu que não era para perceber. Nunca mais soube dele.


E mais uma ou outra fugaz aparição. Um dia talvez conte. Mas nada de transcendente. Nunca ninguém caído do céu. Aviador, pára-quedista, por exemplo. Nunca. Aparecer um soldado ferido no meu jardim, isso também nunca apareceu.


Se aparecesse e estivesse ferido, não sei se o traria para casa, se trataria dele. Talvez isso fosse um perigo. Histórias conhecidas de soldados levados para o quarto para serem tratados até convalescerem parece revelarem que tal comporta riscos elevados. Está certo que já não tenho aqui em casa jovens casadoiras -- que essas parece que são as primeiras a sofrer os efeitos colaterais da boa acção -- mas, ainda assim, nunca fiando.


Ser contratado um pintor para vir aqui a casa fazer o meu retrato, isso também nunca me aconteceu. Nunca.


Todos os dias, eu à janela ou sentada ou reclinada para que um pintor captasse a minha alma e a luz do meu olhar, também poderia comportar alguns riscos. 


Claro que tal dependeria do pintor, que não é qualquer um que, olhando no fundo do olhar de uma mulher, consegue com ela estabelecer uma liaison que lhe permita transpôr para a tela o que ela costuma reservar apenas para alguém muito especial. Mas também nunca fiando. 


Vai que, no fim, em vez da sublime doçura do olhar e da suave flor, melancólica a modelo, distante o pintor, sai uma coisa completamente diferente: pintor e modelo eternamente ligados, presos nas tintas da tela?

Le peintre et son modele, Picasso, 1963

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Filmes a aguardar com atenção:

Les Proies, The beguiled, O estranho que nós amamos


por Sofia Copolla


Tulip Fever - A febre das tulipas


por Justin Chadwick


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Uma bela quarta-feira a todos quantos aqui me acompanham

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