Estava aqui, posta em sossego, sentada a ler este último livro com as entrevistas da Paula Rego e pus-me a pensar no que ela diz quando evoca a maldadezinha implícita que existe em alguns meios portugueses. Histórias velhacas que são contadas como histórias infantis ou, vá, como coisa normal. Percebo-a mas, felizmente, as minhas vivências não passaram por aí.
Se eu quiser contar histórias malvadas e que se tenham passado comigo terei que me esforçar um bocado.
No entanto, esforçando-me, ocorrem-me algumas. Contudo, não gosto de pensar nelas pois foram excepções numa vida sempre tranquila e feliz.
E, de resto, as piores histórias não foram comigo. Apenas testemunhei.
Nao percebo qual o gozo que dá recordar coisas que, na altura, incomodaram e que não são exemplo de nada ou não servem de lição para coisa nenhuma. Não li o Meças, apenas folheei. É temática que não me interessa. Gente que se passa ou que é má como as cobras ou que sublima um desencanto congénito agredindo os outros pode não ser uma raridade mas não deve ser vista como aviso ou como cúmulo da degenerescência. É apenas uma pouca sorte em forma de gente.
Quando me ocorreu pensar nisto, comecei por pensar na história dos canários que o meu pai sempre contava para ilustrar a minha teimosia. Queria mostrar como eu andava sempre com ideias que não lembravam ao diabo, não descansando enquanto não as levava por diante. Mal ele vinha com isso, logo eu tentava dissuadi-lo de contar. Uma história horrível. Além disso, não fazia sentido ele ir buscar aquilo pois eu tinha toda a razão do meu lado. Mas acho que ele se divertia com o meu horror.
Eu conto.
Uma vez, era miúda, talvez seis ou sete anos, não sei bem, pensei que gostava de ter um casal de canários. A razão era simples: achava-os lindos, de um amarelinho mimoso, e cantavam muito bem. Tourada. A minha mãe não queria, dizia que os pássaros faziam imensa porcaria e que ia ser uma prisão, não podíamos ir de férias. O meu pai também não queria, antevia que havia de sobrar para ele. Mas a mim parecia-me impossível continuar a acordar sem ser ao som de pássaros a cantar. Pedi, pedi, pedi. Uma luta. Por fim, tanto os macei que, contrariados, lá acabaram por ceder. Na varanda, uma gaiola, lá dentro um poleiro, um sítio para as sementinhas, um sítio para a água. E o belo casal trinando, uma felicidade. O que eu gostava de os ver e ouvir.
Eu conto.
Uma vez, era miúda, talvez seis ou sete anos, não sei bem, pensei que gostava de ter um casal de canários. A razão era simples: achava-os lindos, de um amarelinho mimoso, e cantavam muito bem. Tourada. A minha mãe não queria, dizia que os pássaros faziam imensa porcaria e que ia ser uma prisão, não podíamos ir de férias. O meu pai também não queria, antevia que havia de sobrar para ele. Mas a mim parecia-me impossível continuar a acordar sem ser ao som de pássaros a cantar. Pedi, pedi, pedi. Uma luta. Por fim, tanto os macei que, contrariados, lá acabaram por ceder. Na varanda, uma gaiola, lá dentro um poleiro, um sítio para as sementinhas, um sítio para a água. E o belo casal trinando, uma felicidade. O que eu gostava de os ver e ouvir.
A minha mãe arreliada: teve que pôr uns plásticos por baixo, havia cascas de alpista e salpicos de água por todo o lado. E o meu pai lá limpava a gaiola, lá tratava dos passaritos.
Até que, um dia, uma surpresa: apareceram uns ovinhos. Não me lembro quantos. Aqui a minha memória começa a toldar-se. A canária deve ter chocado os ovos. Lembro-me da minha alegria, vinham aí mais passarinhos, haveria de ser uma orquestra.
E um dia apareceram os filhotes.
Ia-me dando uma coisa. Ninguém teve o cuidado de me prevenir. Imaginava que seriam uns berlindinhos amarelinhos e fofinhos e afinal eram uns bichos medonhos, sem penas, uns olhos grandes, escuros, alienígenas, assustadores. Os bicos pareciam uns monstros. Dava-me medo ver aqueles seres tão feios, que me pareciam quase em carne viva.
Os meus pais tranquilizavam-me: logo, logo, vão nascer as penas, vão ficar com uns olhinhos normais, vão ser como os pais. Quando acordava, a medo, ia espreitar. Horrorizava-me ver aqueles pequenos seres mas ia na expectativa de vê-los transformados em canários normais. Até que um dia, não me lembro quanto tempo depois (dois? três dias?), na gaiola apenas os canários pais. Espantada fui chamar a minha mãe, 'Mãe, mãe, os bebés fugiram!'. E a minha mãe perplexa, sem perceber. Tinham desaparecido. O meu pai também sem encontrar uma explicação. Até que o meu tio disse com naturalidade: 'os pais comeram-nos, é costume neles'. Bem. Não podem imaginar. Devo ter tapado a cara, tal o horror. A minha mãe a mesma coisa. Disse: 'Nem sou capaz de encarar o diabo dos pássaros'. Nunca mais olhou para eles e eu também não. Nunca antes tinha sentido uma coisa assim: horror, nojo, medo. O meu pai todo chateado, 'eu não disse que isto ia sobrar para mim?'. Só que a minha mãe disse que não queria lá mais aqueles monstros. Eu ainda menos. Nem queria passar na varanda para não encarar tamanhos facínoras. Lá foi o meu pai com a gaiola. Não me lembro se foi devolver à loja. Acho que nunca quis saber. A minha mãe dizia sempre 'diabo dos canários'.
Ia-me dando uma coisa. Ninguém teve o cuidado de me prevenir. Imaginava que seriam uns berlindinhos amarelinhos e fofinhos e afinal eram uns bichos medonhos, sem penas, uns olhos grandes, escuros, alienígenas, assustadores. Os bicos pareciam uns monstros. Dava-me medo ver aqueles seres tão feios, que me pareciam quase em carne viva.
Os meus pais tranquilizavam-me: logo, logo, vão nascer as penas, vão ficar com uns olhinhos normais, vão ser como os pais. Quando acordava, a medo, ia espreitar. Horrorizava-me ver aqueles pequenos seres mas ia na expectativa de vê-los transformados em canários normais. Até que um dia, não me lembro quanto tempo depois (dois? três dias?), na gaiola apenas os canários pais. Espantada fui chamar a minha mãe, 'Mãe, mãe, os bebés fugiram!'. E a minha mãe perplexa, sem perceber. Tinham desaparecido. O meu pai também sem encontrar uma explicação. Até que o meu tio disse com naturalidade: 'os pais comeram-nos, é costume neles'. Bem. Não podem imaginar. Devo ter tapado a cara, tal o horror. A minha mãe a mesma coisa. Disse: 'Nem sou capaz de encarar o diabo dos pássaros'. Nunca mais olhou para eles e eu também não. Nunca antes tinha sentido uma coisa assim: horror, nojo, medo. O meu pai todo chateado, 'eu não disse que isto ia sobrar para mim?'. Só que a minha mãe disse que não queria lá mais aqueles monstros. Eu ainda menos. Nem queria passar na varanda para não encarar tamanhos facínoras. Lá foi o meu pai com a gaiola. Não me lembro se foi devolver à loja. Acho que nunca quis saber. A minha mãe dizia sempre 'diabo dos canários'.
Como dizia, o meu pai, para mostrar como eu sou de ideias fixas, não dando sossego a ninguém enquanto não tenho aquilo que quero, ia buscar isto: 'não descansou enquanto não lhe arranjámos uns canários e, depois, por fim, nao descansou enquanto não nos vimos livres deles'. Injusto da parte dele ao omitir que os canários que me arranjou eram canibais.
Enquanto escrevia, pensando em horrores, lembrei-me também de um holandês que morava lá, um homem solitário. Um dia uma agitação. Talvez umas duas semana morto em casa até que, pelo cheiro, os vizinhos desconfiaram. Eu, miúda, vendo os bombeiros a entrarem pela escada, pela varanda. Na rua os miúdos numa excitação -- eu aflita, pensando nele, alto, simpático, silencioso, a apodrecer. Os vizinhos também a espreitar. Eu ouvia o que diziam quase em surdina, talvez para os miúdos não ouvirem: 'coberto de bichos'. Imaginava horrores. A minha mãe em casa, não deu por nada. Era verão, uma tarde dourada, e eu andava pela rua, nas casas e jardins dos outros miúdos da rua. Nessa noite, assustada, pensava no que tinha ouvido de dia. Horrorizada. Desde aí, a ideia da solidão, de alguém morrer sozinho, assusta-me. Não gosto de pensar no medo e horror que senti nessa tarde.
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Mas, mais do que isso: não gosto de pensar nestas coisas.
Não leva a lado nenhum. Uma pessoa sente-se mal.
Não leva a lado nenhum. Uma pessoa sente-se mal.
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Portanto, também em amarelo e com uma letra talvez a atirar para o triste mas, ainda assim, um tango
Se fue
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Até já.
A ver se me ocorre alguma coisa divertida.
.......
Até já.
A ver se me ocorre alguma coisa divertida.
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Afinal não. Caí no sono. Depois de acordar, comecei a pensar que já não dava. Tenho que madrugar, dia longo e sobrelotado. Depois pensei que, se me tivesse deixado de pensamentos, até teria dado mas, assim, já não dava mesmo.
Não queria deixar-vos com histórias macacas mas acabou saindo assim. Portanto, deixo os conselhos do Primo para mais logo ou depois e me vou. E queria responder aos comentários mas terá que ficar também para mais tarde. Bom mesmo para evitar isto era se eu pudesse dormir a sesta a seguir ao almoço. Mas teimam em não pôr uma cama no meu gabinete e dá nisto.
Ciao.
2 comentários:
Oi, conhecendo seu blog! Bem interessante ;)
O Planeta Alternativo
Os canários comem os filhos?!...Nunca tal me constou, devem ter sido só os seus.
O tango tem um tal ritmo que os olhos mal dão à conta :). Isso é para espantar o sono, julgo eu.
Achei este post meio esquisito. Mas pode que seja de já não a ler há uns dias.
Porte-se. Que é isso de ter uma cama no escritório?! Isso era para o Marx que tinha um divãzinho, (ou seria um canapé?) no escritório-sala de trabalho, para não ter de se deslocar a dormir a sesta.
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