segunda-feira, abril 03, 2017

Paula Rego e Maria Antónia Palla,
duas mulheres livres, duas portuguesas excelentíssimas.




Não sou pintora. Nunca julguei que era tal como sei que nunca serei. Não obstante, gosto de pintar. Gosto da liberdade de estar em frente a uma tela e, sem ter que provar nada a quem quer que seja, começar a desenhar, encher de cores o que antes era nada. Há nisso um prazer quase infantil, talvez até irracional.

Gosto de telas grandes e de não obedecer a nenhum programa, gosto de misturar sombras, restos de palavras, paredes gastas, silhuetas que deslizam, galos, freiras, cavalos. Outras vezes nada, só cores e só eu sei que ali está a sombra de uma escada que sobre rente a um muro ou a de uma mulher que se entrega ao calor da noite.

Pintar e não querer reproduzir a realidade é para mim um acto de liberdade sobre o qual não tenho que dar explicações e, por isso, melhor ainda.

Já contei muitas vezes: sendo eu amante de pintura, não aprecio a pintura realista. Gosto de pinturas imperfeitas, com ar mal acabado, gosto do imprevisto, do incompreensível. Para mim a pintura deve criar o objecto pintado e o objecto pintado pode ser coisa nenhuma. Pode até a pintura ser uma tela quase só cor, sem propósito, como as grandes telas de Rothko.

Há uns anos uma prima que é das Artes falou-me na Paula Rego. Eu conhecia-a vagamente mas apenas do período das colagens. Não me dizia muito. A minha prima respondeu que fosse eu ver de perto e que, indo e indo com disponibilidade para me deixar impressionar, perceberia que ali havia um outro mundo, que achava que eu ia gostar. Não me convenceu. Não gosto quando me dizem que vou gostar. Tenho para mim que só gosto do que é inesperado e que, portanto, sabe lá alguém do que eu vou gostar se nem eu sei.


Mas fui. E foi quase uma queda no abismo. 

Um mundo feito de mulheres pouco fotogénicas, mulheres façanhudas, de perna curta, entroncadas, mulheres do povo, gente de verdade. E bichos. E um mundo muito sob a superfície. 

Vim dessa exposição muito impressionada. Pintar ali era outra coisa, era um exercício não daquela liberdade insensata que a mim me sabe tão bem mas um exercício completo, um bocado de vida. Ali havia histórias, personagens, figurinos, décor, violência, carnalidade, animalidade, dores de mulher, desejo primário, sofrimentos ancestrais, vergonhas, loucuras, medos.

Depois um dia vi uma entrevista dela. Fiquei cativada.


Passei a comprar livros em que lhe era dada a palavra ou onde se falava dela. Uma mulher diferente das outras, uma mulher que falava como uma criança, marota, maliciosa, com o gosto inocente da provocação.

Quando num museu ou numa exposição vejo um quadro dela é como se alguém me puxasse por um braço, me fizesse ficar ali, como se eu me sentisse puxada para dentro do mundo de Paula, um mundo sem explicações. 

Li a entrevista neste Expresso e é o mesmo gosto de sempre, aquela vontade de ficar a ouvir histórias, Histórias da sua vida, angústias, depressões. 

Vê-la agora já com o peso da idade a fazer-se sentir mas com aquele mesmo riso de menina, aquela energia de criar bonecos, de os vestir, de se vestir com eles, de os pôr a fazer maldades, é tocante. 

Contou ao filho todas as suas histórias, e fala do aborto que fez, e fala de amantes e fala do marido e fala dos seus medos e é tudo muito tocante. O filme que o filho fez está quase disponível e eu irei vê-lo e, de certeza, irei divertir-me e emocionar-me.

No mesmo Expresso, Maria Antónia Palla. Outra mulher livre, sem tabus, com a sua própria história como testemunho. Há pessoas que se impõem pela franqueza, pela inteireza com que expõem as suas convicções e a sua vida. 


A entrevista que deu ao Expresso é exemplar. Como se não tivesse nada a esconder ou a temer, Maria Antónia fala com tristeza da filha que perdeu quando a menina tinha três anos e na qual pensa ainda todos os dias. O marido com quem não conseguiu continuar a viver depois daquela perda, apesar de, entretanto, ter nascido o menino que veio suprir tão dolorosa falta. O padrinho do filho por quem se apaixonou. O gostar de duas pessoas ao mesmo tempo. O aborto que fez porque na altura antes das eleições, tal a euforia, toda a gente ficava grávida -- mas que não era uma criança desejada. E o meio irmão de António, o Ricardo de quem gosta com afecto maternal. E o terceiro marido e o afecto do padrasto pelo enteado António que fazia massas tão boas de que ainda fala. E o casamento do filho, aos 26 anos, que a fez ir sozinha para casa, para chorar pelo caminho, por saber que ia sentir tanto a sua falta. 

E Sócrates que visitou na prisão e que espera que esteja inocente mas que, independentemente disso, ela acha que não está a ser bem tratado pelo PS e que não escreve ou não fala mais disso em público para não prejudicar o filho. 


E o filho, descontraído desde pequeno, que há coisas que o aborrecem muito mas não durante muito tempo. Um filho que ela admira quase tanto quanto o ama. 

Uma mulher livre, uma feminista, uma mulher de causas, uma mulher que sempre lutou pela dignidade e pela igualdade de oportunidade para as mulheres.

Um mulher que, com a segurança de uma vida inteira que fala por si, não tem pudor em se afirmar como é. Uma mulher muito bonita. E serena, forte, inteira.

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Maria Antónia Palla nasceu em 1933 e Paula Rego nasceu em 1935. 


São duas portuguesas excelentíssimas.

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E agora queiram aceitar o meu convite e desçam, por favor, até ao post seguinte no qual falo de milagres.

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2 comentários:

Anónimo disse...

Também gostei muito de ler a entrevista da Maria Antónia Palla. Uma mulher de coragem. Admitir um aborto por pura conveniência (não querer ter mais de um filho) é ato de coragem ainda hoje (e, sem dúvida, discutível de um ponto de vista moral). Por acaso, isto fez-me lembrar que, há uns posts atrás, a UJM criticava o Cristiano Ronaldo por ter "feito" um filho sozinho, e dizia qualquer coisa do género "com tanta namorada, não encontrou uma que lhe servisse para ser mãe dos seus filhos". Por acaso, para mim essa decisão do Ronaldo até é das coisas que mais admiro nele. A maioria dos jogadores de futebol casa novinho, com uma tipa qualquer, que assim já fez a vidinha dela, assegurando-se completamente a partir do momento em que o coitado do miúdo lhe faz um filho. Ele é rico, é jovem, é independente. Por que haveria de ter um filho da Irina, ou da Merche ou seja lá de quem for, se não o queria (quiçá por não saber ele se iria estar com elas no futuro, como acabou por não ficar com nenhuma)? Por que razão todos achamos bem que uma mulher decida fazer uso da PMA para ter um filho sozinha e criticamos um homem por o fazer? Eu admiro a decisão de não casar como todos os outros futebolistas, e que parece que é obrigação nesse meio social. Não que casando, estivesse a fazer algo de mal, mas ao menos fica claro que não o fará só porque os outros fazem, só porque a namorada pressiona. Lá nisso, o Ronaldo faz a sua vida sem se preocupar com o que dizem ou pensam dele. Nem acho que esteja em causa "encomendar" um filho como por capricho. A sensação que tenho é que o Ronaldo até é um pai dedicado e a criança gosta dele e tem também a avó que cuida dela. Não pode um homem achar que está numa altura da sua vida em que faz sentido ser pai, independentemente de qualquer mulher? Tal como acontece no caso inverso? Bem, tudo isto porque não percebo como se pode criticar a opção de Ronaldo e louvar, por exemplo, a de abortar por conveniência. Acho que ambas as situações entram no âmbito da decisão pessoal e livre de cada um e nenhuma deverá ser censurada como manifestação de egoísmo, mas muito menos a primeira.
Boa semana!
JV

Anónimo disse...

Continuo a fugir da pintura de Paula Rego. Medonha! Embora aprecie como personagem. Muito.
E prefiro qualquer Impressionista a um Chagalll, Braque (!!),Picasso, Paul Klee, Miró, Koroschka, Bacon (!!), Kandinsky, por exemplo. O que não significa que não aprecie determinada pintura abstracta. Puramente abstracta, nada a ver com, por exemplo, os autores que cito. Apesar de continuar a achar que é muito mais fácil pintar desse modo (abstracta), do que compor uma obra como os grandes autores do Renascentismo, do Barroco, do Neoclassicismo, Romantismo e Realismo.
E gosto de Maria Antónia Palla (fomos vizinhos, ou melhor, o filho António - PM - e família, e a mãe lá aparecia, em Birre, antes de me mudar para onde hoje vivo, há cerca de uns 18 anos. Eram gente enormemente simpática!).
P.Rufino