sábado, janeiro 14, 2017

Encontrei-me com Amadeo no Chiado, Lisboa, num feliz 12 de Janeiro de 2017



Surpreende como há cerca de cem anos viveu em Portugal uma pessoa mais moderna, mais arrojada do que tantos tacanhos e acomodados da actualidade.


E, no entanto, criatura inquieta e vibrante como era, onde uns poderiam ver, maioritariamente, analfabetismo, falta de higiene ou fatalismo, via ele, tantas vezes, um país extraordinário, que o inspirava activamente.


Transcrevo:

O diálogo com as vanguardas do início do Século XX será o grande motor por detrás da obra de Amadeo, mas há fatores determinantes de outra de outra ordem e que se prendem com um universo temático marcado por referentes pessoais. Numa carta dirigida à sua mãe em 1908, o pintor lamentava a ausência de "um forte meio da arte" na sua terra natal, mas queixava-se igualmente da "atmosfera parda" ou o "sol anémico" de Paris, que contrapunha ao seu "Portugal prodigioso, país supremo para artistas". Segundo Helena Freitas, "o alimento espiritual de Amadeo é também a iconografia da sua terra e das suas tipologias". Na sua pintura encontramos alusões a essa luz diferente; ao sol, às montanhas, às azenhas e moinhos; aos alvos das barracas de feira; às canções, bonecos e figuras populares…


E, no entanto. Este País. Este nosso País.
Se tantas vezes os meus olhos também apenas focam o que é belo, alegre e harmonioso, outras vezes há em que me desiludo.
Sossegada hoje, remansando, retomei a leitura de algumas tristes prosas dos dias que correm em Portugal. Tanta banalidade, tanta estupidez. E parece que há falta de assunto, falta de originalidade. Um vulgar trauliteiro a quem um jornal acolhe na qualidade de cronista tece fúteis e fúnebres considerações e logo meio mundo pega no rabo da argumentação e desata a andar em roda, cheirando o rabo do argumento e, às tantas, já todos cheiram é o rabo uns dos outros, falando do mesmo nulo assunto. Ou, se não é isso, são prosoleios rodriguinhamente elaborados por gente muito entesoada de sabedoria, aquele tipo de pessoas que, pelas comissuras, escorre desdém pela alegria de quem ousa ostentá-la. Ou isso ou conversas de tipo pastel, moleza em forma de palavras, converseta da treta, nem carne nem peixe, nem doce nem salgada. Apenas de vez em quando um raio de luz. Coisa rara, preciosa.

E, no entanto.

Se pensarmos que entre 1887 e 1918 viveu um português com um espírito livre, desencastoado de qualquer escola, desinteressado das opiniões das vizinhas enevoadas, um homem cheio de cores, de alegrias e dúvidas, de intempéries luminosas, que polvilhava os frutos imaginários com palavras, que misturava guitarras, quadrados azuis, abysmos verdes, loucuras ardentes, infantes e bandolins, julgaríamos que cem anos depois o país seria habitado por uma multidão de gente moderna, aberta, livre.

Mas não. Continuam a ser uma raridade. E às janelas continuam as mesmas lesmas, as beatas e sacristãos, as belinhas e os jorginhos precocemente envelhecidos, os padrecas e pseudo-padrecas escorrendo sebo, as madrinhas tresandando a naftalina e as descaradas de coxa grossa rebolando o verbo pelas esquinas parlamentares. 
De uma ou outra maneira, parte deles continua a esconder-se atrás da cortina para insinuar torpezas alheias, para lançar suspeições, agora escrevendo em blogs ou nos facebooks desta vida, tecendo loas aos balcões de televisão ou compondo crónicas a metro ou, os mais canhestros, escarrando comentários putrefactos pelos passeios da internet.

Não quero mostrar-me pessimista. Não é estado de espírito que se mostre a uma sexta-feira à noite. Nem eu sou de estacionar por aí. Portanto, adiante. Vou, antes, juntar-me a Amadeo, o caminheiro apaixonado. Estive com ele no Chiado e foi um bocado muito bem passado.

A quem também por lá possa passar aqui fica o meu incentivo:
Vão, rejuvenesçam, riam, encham-se de nuvens coloridas, imaginem guitarradas ao som de morangos carnudos, dancem sobre os triângulos dourados da imaginação, deslizem de sala em sala, depois voltem atrás, aproximem-se, apreciem, depois afastem-se, vejam noutra prespectiva. Vejam sempre noutra perspectiva.

Transcrevo da apresentação da exposição patente no Museu Nacional de Arte Contemporânea ao Chiado, entre 12 de Janeiro e 26 de Fevereiro.


AMADEO DE SOUZA-CARDOSO / PORTO LISBOA / 2016-1916:


Quando Amadeo de Souza-Cardoso regressou a Portugal no início da Primeira Guerra Mundial, era um pintor reconhecido nos meios da vanguarda, tendo participado em exposições coletivas em Paris, Berlim, Nova Iorque, Chicago, Boston e Londres.

As exposições individuais que realizou em Portugal, em 1916, inserem-se nessa determinação de afirmação da carreira: a primeira decorreu no Porto, no Jardim Passos Manuel, de 1 a 12 de Novembro; a segunda, em Lisboa, na Liga Naval Portuguesa, de 4 a 18 de Dezembro. O Museu Nacional de Soares dos Reis evocou a exposição no Porto e agora o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado evoca a exposição em Lisboa.

Estas exposições provocaram escândalo e debate. 

Em Lisboa,  a exposição proporcionou o encontro entre Amadeo e Almada Negreiros, entusiástico defensor de Amadeo. Foi neste contexto que Almada apresentou a exposição na Liga Naval como “mais importante do que a descoberta do caminho marítimo para a Índia.”

O que se viu há cem anos e o que vemos hoje nas obras expostas? 

Como eram os espaços onde Amadeo expôs? 

Qual o papel de Amadeo enquanto “comissário” de si próprio? 

O que poderá ter motivado as reações mais violentas? O que se escreveu na imprensa? Que discussões houve em torno da pintura de vanguarda? 

Estas são algumas das questões fundamentais desta exposição.


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Já agora, se me permitem, dois vídeos sobre Amadeo feitos há algum tempo, o primeiro dos quais feito a propósito de uma outra exposição, no Grand Palais.



 Ou um vídeo mais longo onde falam, entre outros, os dois artistas de que ontem falei: Julião Sarmendo e Pedro Cabrita Reis.

 

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.

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4 comentários:

bea disse...

Se Amadeo é o meu pintor preferido, devo-o a Rui Mário Gonçalves que conheci um belo homem e óptimo professor (como o vídeo atesta). Consagrava-lhe semanas de aulas, quadro a quadro. Depois, vê-lo na primeira sala do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, além de nos descansar o espírito, insufla vontade de viver. Mas nestes tempos as visitas são pagas e na primeira sala, que antes era um cartão de visita extraordinário, nem sempre encontro Amadeo ou o seu amigo Almada e o meu quadro preferido de Pessoa. Faltam-me. Mas é assim, vão-se os tempos ficam as vontades.

Continuo sem entender a razão do pintor ter sido esquecido pela história da arte internacional, foi grande. É grande. Um génio que tudo viveu depressa porque a natureza ou um deus ou o que seja dá às almas grandes de vida breve esse frémito de tudo experimentar, como se não caibam no tempo. E não cabem.

Obrigada JM; o post "está com tudo". Vou arranjar tempo para ir ao Chiado em peregrinação.

Anónimo disse...

Lindos, lindos! Eu sempre tive um fraquinho maior pelo Santa-Rita Pintor do que pelo Amadeo. Acho que o génio do primeiro era maior, apesar de o Amadeo ter produzido mais obras marcantes. E vou-lhe confessar: acho graça a algumas coisas do Pedro Cabrita Reis e do Julião Sarmento. Não a tudo, muita coisa é banalidade, como diz, mas há algumas peças que têm, se não algo mais, pelo menos cores interessantes. Isto dito assim até parece um bocado triste... Há uma obra do Julião Sarmento com um homem a agarrar uma mulher pelo pescoço, ambos na cama, que acho bastante boa, diferente do comum.

Isto foi mais para dizer um olá do que outra coisa!

Abraço e bom fim de semana (boas férias!)
JV

Um Jeito Manso disse...

Bolas, bolas, bolas, bea... Desta vez não foi minimalista ou sisuda, desta vez deixou que a sua voz empolgada falasse por si. Gostei.

E concordo: Amadeo devia ser mais conhecido e ombrear com os grandes nomes da pintura. Mas nestas coisas há o factor sorte. Se entrar no circuito, se arranjar agenciamento (galerista, no caso), se a comunicação social 'pegar', etc, etc. Agora como antes e sempre.

Mas pode ser que, aos poucos, a justiça seja feita.

E escreva mais vezes assim, bea, com essa força toda.

Um Jeito Manso disse...

Olá JV! Quando a vejo fico sempre contente. Brava JV, obrigada pelo abraço!

Sabe, uma vez estava eu também em Madrid, também no Retiro, e acho que só pode ter sido no Palacio velasquez, quando entro e vejo quadros com saias, outros com mulheres sem cabeça, outros com uma saia e uma camisa... e penso... "caraças, parece coisa do Julião Sarmento". E era.

Sou capaz de alguma vez ter achado graça a algum quadro. Não garanto mas admito que, em cem que lhe tenha visto, talvez um tivesse graça. Coisa pouca, ainda assim.

Cabrita Reis....? Menos que 1%. Não posso. Parece que está a gozar com a nossa cara.

Mas deixe, JV, não vai ser por isso que a gente se vai zangar...

Olhe: espero que vá tudo bem lá pelas suas andanças jurídicas. Força com isso. Quero um trabalho de se lhe tirar o chapéu e quero que se torne conhecida pela qualidade do seu trabalho e ensino. E se um dia for para ministra ou para uma cena dessas força também. Estarei sempre na linha da frente para a incentivar.

Um abraço, miúda!