Só para dizer uma coisa. Qualquer coisa me caíu mal aqui há algum tempo, pouco, tenho ideia que um sumo frio a meio da digestão de umas ostras, ou coisa do género. Sentia-me mal, a desmaiar (a minha tensão, sempre baixa, quase tangencia os níveis de desmaio com alguma facilidade). Fui às urgências. Quando lá estava, entre meias palavras de alguém, percebi que ele tinha passado mal, que havia qualquer coisa de grave.
Tempos antes, quando andava por lá por altura da artroscopia aos joelhos, via-o passar, silencioso, quase esvoaçante na sua bata branca.
E lembrava-o anos antes, bem mais novo, mais encorpado, sorridente, ar sedutor, no 31 da Armada, logo ali abaixo. Por vezes, via-o à noite na televisão, contando a sua experiência americana, as suas expectativas na medicina de cá, as inovações que tinha trazido. Confiante na televisão, confiante ali, encantando a companhia de mesa. À porta do 31 há buganvílias bem coloridas e ele passava por elas, homem bonito, e eu pensava nele como o irmão do António. A família Lobo Antunes tinha produzido meia dúzia de rapazes talentosos. Aquele era o bem sucedido neurocirurgião, irmão do irreverente e então bem mediático escritor.
De vez enquanto, nos anos que medeiam as recordações, lia testemunhos agradecidos, falavam da sua atenção, da sua dedicação, do apoio humano que prestava aos que dele se abeiravam para cirurgias críticas.
Quando o via atravessar o amplo recinto da recepção principal, ar quase tímido, a bata aberta esvoaçante, pensava que deve ser ainda mais duro para um médico ver o mal a tomar conta do corpo e nada poder fazer para o impedir.
António, que sempre pouco falou com os irmãos mas que tanto gosta deles, vai ficando mais sozinho. E eu, que não gosto de aqui falar dos que se vão, confesso que sinto pena.
Tal como me senti triste quando morreu Margarida Sousa Uva, uma mulher que abdicou da sua vida e que se manteve sempre delicada e silenciosa, um sorriso sempre um pouco triste. Senti pena que tivesse estado doente, que tivesse sofrido. Li que morreu em casa e penso que deve ser muito triste para quem vê extinguir-se a vida de alguém que muito se ama. Os filhos vendo a mãe a sofrer, a ser abandonada pela vida. Custa-me muito pensar nisso.
Tal como me senti triste quando morreu Margarida Sousa Uva, uma mulher que abdicou da sua vida e que se manteve sempre delicada e silenciosa, um sorriso sempre um pouco triste. Senti pena que tivesse estado doente, que tivesse sofrido. Li que morreu em casa e penso que deve ser muito triste para quem vê extinguir-se a vida de alguém que muito se ama. Os filhos vendo a mãe a sofrer, a ser abandonada pela vida. Custa-me muito pensar nisso.
Lembro-me dos meus tios que, com a mesma doença, se foram tão rapidamente e quase de seguida. Quando ainda não se sentia muito mal, o meu tio gracejava: 'não podemos rir-nos um do outro'. E soltava a sua gargalhada mas agora, em vez de longa e sonora, breve. Como se rindo de uma ironia, o riso era breve. Uma dor grande a deles, a dos meus primos, a minha, a dos meus pais. As operações, a aflição à espera do resultado dos exames, a aflição ao saber que o fígado já estava afectado, depois que já se tinha espalhado, o corpo cansado, o já mal poder andar, o cansaço na voz, o a gente sentir que já não duravam muito. Falava com eles e pensava que não sabia se voltaria a fazê-lo. Ainda agora, às sextas feiras ao fim da tarde, volta e meia penso 'antes, a esta hora, eu pensava que não podia esquecer-me de ligar à minha tia'. Ou quando eu andava a ver com a Embaixada de Cuba como fazer para o meu tio ir lá tratar-se, parece que tinham um tratamento promissor, e na segunda-feira iam ao médico para ver como; e o meu primo ligou-me à hora do almoço e eu pensava que era para me dizer o que é que eu tinha que tratar mas ele estava a chorar e quase não conseguia falar e era para me dizer que o pai tinha morrido. E depois tive que ir dar a notícia à minha mãe e ela chorou tanto e eu não queria que ela sofresse e ela também não sabia como dizer ao meu pai para não o fazer sofrer porque eles eram tão amigos.
E o susto com a minha mãe. A voz dela, nervosa, a dizer que tinha que falar comigo, que tínhamos coisas a combinar. E eu a chegar lá a casa, eu com a aflição a apertar-me o pescoço, e ela a dizer que tinha cancro, que tinha que ser operada e a chorar, e agora o que vai ser do teu pai? E depois uma pessoa a agarrar-se a cada esperança, que era só ali, que era dos melhores, que se tirava tudo. Mas depois, para a operação, mais exames e os exames a terem que ser repetidos, uma mancha suspeita, e logo a esperança a desaparecer, e a aflição sempre presente, quase sem se conseguir respirar, a inquietação, a ansiedade.
Ficou bem. Mas o medo. O medo.
E lembro a cunhada de uma amiga minha. A cunhada mais nova, vinte e poucos anos. Um caroço. Ela a dizer-me que estavam muito preocupados e que a cunhada já se tinha informado, já sabia o que tinha. Estava em casa dela pois eram do Alentejo e tinha que ir ao IPO. Eu lá em casa e a mãe a dizer-me que não, com certeza apenas um gânglio, que tinha apetite, bem encarada. E eu cheia de pena.
Piorou, experimentou tratamentos em Londres, fez quimioterapia, perdeu o cabelo, andava com um lenço quase turbante, bonita, jovem, ninguém diria. Voltei a vê-la num verão, em Vale de Lobo. Biquini amarelo, lenço amarelo com moedas douradas como uma cigana, e ela rindo, de pé entre amigos, feliz, exuberante. Ninguém diria. Sentia-se bem, talvez se tivesse curado, pensava.
Poucos meses depois, no início do ano, encontrei a minha amiga na Avenida da Liberdade. Estava magra, mal encarada, triste. A cunhada tinha morrido lá em casa dias antes. Foi horrível, contou. Para todos um grande sofrimento, nem imaginas, dizia-me ela, exausta. Contou-me: pelo natal quis um blusão de pele, vê tu. Estava de cama, muito mal, sem força, e quis um blusão de pele. Fizemos-lhe a vontade, claro. Contou a minha amiga, um fio de voz. Fez-me impressão. Perguntei-lhe se a cunhada tinha chegado a vestir o blusão. Desatou a chorar.
Leio que morreu em casa, o doutor João Lobo Antunes. Talvez as abas da sua bata branca se tenham aberto como asas, talvez seja agora um anjo. E sei que talvez não faça sentido eu dizer isto. Mas quem sabe se faz.
Uma vez o meu pai dizia, com muita pena, que se não tivesse sido a pneumonia, o meu avô não tinha morrido. Morreu aos noventa e tal, o meu avô, não sei exactamente quantos. Eu respondi: 'Mas quê? Vivia até aos duzentos?'. A minha mãe desatou-se a rir e o meu pai também sorriu. Todos, um dia, nos vamos. Com sorte, iremos sem sofrimento depois de uma vida feliz. Mas custa-me especialmente quando uma pessoa vê o seu corpo a ser progressivamente minado pela doença, sente que está a dar trabalho e a causar sofrimento aos outros, vê que os outros percebem a sua finitude, vê a pena nos olhos dos outros, percebe que não vai estar para acompanhar a vida dos que ama. Isso custa-me muito. Os leigos talvez alimentem uma esperança. Os médicos sabem que não, conhecem as fases, sabem que vai ser sempre pior até ao fim. E confirmam isso no olhar daqueles que os amam.
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Não gosto de falar dos que partem. Não sei dizer palavras de circunstância nem sei esconder as emoções. Por isso, raramente falo. E comecei este texto a dizer que era só uma coisa, não queria alongar-me. Mas agora já não me lembro que coisa era.
Talvez que me lembro dele, no verão, sorriso luminoso, a passar entre as buganvílias em flor.
[Desculpem-me este texto tão sombrio].
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As imagens mostram como somos no mais íntimo de nós.
A beleza que a compaixão de João Lobo Antunes soube compreender.
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Desejo-vos a todos, meus Caros Leitores, um dia feliz.
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5 comentários:
Um dia cinzento.
Lindos estes seis irmãos. Não privei com nenhum deles. Pensava em pessoas altivas, distantes.
Mas, quando se lê as coisas que escrevem mudamos rapidamente de opinião. Gente como outra. Lutadora, sofrida, com uma inteligência para lá do normal.
Consigo imaginar o sofrimento. (dos que ficam e dos que partem)
Lembro-me sempre da minha mãe. Eram nove irmãos. Ela foi a última a partir. Um sofrimento cada vez que lhe tinha que dar uma má notícia...
De forma muito egoísta, pensei no único Lobo Antunes que já vi e de quem gosto qb sem que ele o saiba, mas acredito que estes amores ajudam sempre o objecto do amor. E até, quem sabe, o amador. Mas também pensei mais por ter lido a crónica da visão que é sobre o Pedro e a sua morte (há coincidências). Tinha ficado com as palavras do Nuno a subtrair António ao corpo do morto, anda meu bebé, e o seu desconcerto a lembrar-se que nunca ninguém o chamara assim. E agora morre o João. Aquele com quem Lobo Antunes dizia que falava em silêncio. Um dos poucos homens a quem a velhice deu charme. Uma cabeça portentosa a guiar mãos hábeis. Parece que excelente pessoa.
Não sei, acho que o cancro dá dentadas muito fortes, suga-nos por inteiro, esvai-nos. Não devia ser permitido tanto sofrimento descarado. Esta doença torna a morte preferível.
Até há cerca de quatro anos considerava a morte como um acto natural da vida.
Só tinha sofrido a perda de avós e tios velhinhos. Os pais e sogros tambem foram partindo naturalmente. Embora ficasse triste e com saudade, não vi que sofressem. Tal como as flores foram murchando lentamente.
Quando a malvada doença me descobriu achei que o Sol que vivia em mim se ia pôr em breve para não haver amanhã.
A partir daí vejo que a minha geração começou a degradar-se. Estamos todos com maleitas que nos tiram as forças, a paciencia, a vontade de nos juntarmos como sempre fizemos. A uns surgiram doenças que ao serem combatidas com medicamentos, estes provocam outras em cadeia. A quimio mesmo oral põe no sangue elevado indice de colesterol cujo combate destroi os musculos.
Tenho verdadeira admiração por aqueles que não se queixam, que partem com essa dignidade.Ouvi a noticia desta morte com um nó na garganta e segurei com esforço os soluços porque não estava sozinha. Admirava-o muito.
Por enquanto vou vivendo um dia atras de outro agarrando-me ao que de bom, apesar de tudo, ainda existe.
Que belas e extraordinárias palavras as que Por do Sol aqui deixou!
Quanto a João Lobo Antunes era um Ser especial. Que, como tal, deixará (muitas) saudades.
P.Rufino
A Todos,
Não há mortes boas. Morreu ontem um amigo meu. Só soube hoje. O telefone não se calava. Várias mensagens e telefonemas. Todos indrédulos. Sentiu-se mal, ele, caíu para o lado, morreu. Não se lhe conheciam quaisquer problemas de saúde, muito menos do coração. Estou consternada e em choque. A família e todos os seus amigos estão perplexos e sem conseguir assimilar uma coisa destas. Um choque terrível. E, no entanto, no mais fundo de mim, penso que apesar de precoce e horrível, foi uma morte boa. Partiu sentindo-se saudável, feliz, sem saber que estava a ir.
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Uma palavra em especial à Pôr do Sol. É uma valente e uma mulher de coração grande que sabe olhar a vida de frente. Sinto sempre orgulho na sua coragem. A vida é para ser vivida com esperança e alegria.
Um abraço, Sol Nascente!
E um abraço a Todos.
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