segunda-feira, agosto 22, 2016

Uma vida. Uma catedral.



De vez em quando, sei de casos assim. Casos que me fazem sentir quase esmagada pela incompreensão ou pelo espanto. Coisas assim não parecem possíveis.

O mais parecido que conheci -- e não tem parecença nenhuma -- foi um vizinho dos meus pais. Eu era pequena e na moradia ao lado da dos meus pais vivia um casal com duas filhas, uma da minha idade e outra cerca de ano e pouco mais nova. Eram altas para a idade, fortes, uma cabeleira farta e alourada que prendiam em grossas tranças. Saíam ao pai. O meu vizinho era um homem enorme, possante, um rosto grande com olhos verdes muito claros que metiam medo. Aliás, ele metia medo. De vez em quando ouvíamos manifestações de mau génio de tal maneira fortes que chegavam à nossa casa. Gritava e ameaçava-as com uma voz vulcânica, medonha.

A moradia deles era bifamiliar. Eles viviam no rés-do-chão e alugavam o piso de cima. Durante muitos anos viveu lá uma mulher que mal víamos, uma mulher muito morena e muito elegante. Era como que uma assombração. Sabíamos que ela lá estava mas não aparecia à  janela nem vinha à rua. Com frequência, de tarde ia lá um doutor muito conhecido na cidade, no seu grande carro. Encostava o carro ao muro, abria o portão e entrava em casa. Depois saía. Por vezes ele ia buscá-la e depois trazia-a. Apesar de ser falado à voz pequena, eu ouvia que ela era a amante que o doutor tinha por conta. Na altura não ercebia os conceitos mas percebia que havia ali algo de proibido. A imagem que guardo dela, das raras vezes em que a vi, é a de um mulher silenciosa,enfiada num caso de pele comprido, até quase aos pés, escuro, com uma gola alta e fofa. Sorria embora o rosto mal se visse.

E o que acontecia é que nos esquecíamos de que ela existia. Se ela ouvia a gritaria do senhorio (e era impossível não a ouvir), acho que nunca assomou à janela para intervir. 

O dono da moradia, o nosso vizinho, trabalhava não sei onde mas tinha como hobby fazer melhoramentos em casa. Mas fazia-os ele mesmo. Fazia muros, canteiros, um churrasco, um telheiro, bancadas, uma pequeno anexo que usava como oficina, uma mesa e bancos que revestia a azulejos. Nem sei. O jardim daquela moradia tinha árvores frondosas, vasos com fetos enormes, arbustos muito floridos. No intervalo das suas construções, ele regava, plantava, cavava.

O pior é que, quando se metia em obras maiores, queria que a mulher ou as filhas lhe dessem serventia de pedreiro. E as miúdas odiavam, não percebiam o que ele queria, e ele acabava sempre a gritar, que fossem buscar uma pá de pedreiro, que não era aquela, era a outra, que fossem buscar o nível, que fossem buscar uns pegros e um cordel, que segurassem aqui, que lhe passasem os tijolos. Por fim as miúdas já choravam e acabava por vir a mulher, sempre triste e silenciosa, ajudá-lo naquela labuta.

O meu pai comentou uma vez com os meus tios que se falava que ele, antes de fazer aquela moradia, tinha morado num outro sítio de onde tinha sido escorraçado porque se tinha metido numa rixa que tinha metido tiros. A minha mãe dizia que ele era mau, que era preciso ter cuidado. Quando se ouvia aquela zanga vociferante dele contra as filhas, os meus pais ficavam furiosos e acho que até nervosos e o meu pai dizia que um dia chamava a polícia e a minha mãe ficava com medo pois dizia-se que ele ainda tinha uma arma em casa. Mas o meu pai não se continha e ia ao jardim e falava para o lado de lá, que aquilo não era maneira de lidar com as filhas, que ele tivesse calma, que deixasse as miúdas, que aquilo não era coisa que se fizesse, massacrar as crianças. Ele não respondia e a minha mãe assustava-se sempre com aquele silêncio dele. O meu pai falava sem o ver pois havia tal vegetação do lado de lá que não se via nada do que lá se passava, nem daquelas obras permanentes. Eu é que via porque, volta e meia, ia brincar para lá.

Quando as zangas eram maiores, ele ficava a dormir na oficina. E, com o tempo, acabou por transformar aquilo num apartamento e acabou por viver lá sozinho sem falar nem com a mulher nem com as filhas.

Mais tarde, a mulher fantasma saíu do andar de cima, não me lembro porquê, talvez tivesse acabado o romance clandestino com o doutor.

E então a minha vizinha mudou-se para lá. As filhas também saíram cedo de casa. Estudaram e casaram logo, ansiosas por se verem livres daquele pai assustador. E então ficou ele a viver naquele anexo no fim do jardim, e sempre a fazer obras, e a mulher sozinha e triste no piso de cima. O rés-do-chão ficou sem ninguém.

Como me casei também cedo, já não me lembro como é que aquilo acabou. Sei que agora vivem lá outras pessoas que não conheço.

Lembrei-me agora daquele temível gigante que passou a vida a fazer obras que só ele apreciava, ao ler a notícia de um homem em Espanha, um antigo agricultor, Justo Gallego, com mais de 90 anos que, há mais de 50, dedica cada dia da sua vida a construir uma catedral. É a obra de uma vida. E o que já construíu é incrível, uma obra impressionante.


Durante vinte anos trabalhou completamente sozinho. Depois passou a ter a ajuda de um conterrâneo. De vez em quando, alguns dos sobrinhos também o ajudam. E há voluntários que se organizam para o ajudar. Usa materiais reciclados ou restos de obras.

Diz que não vai conseguir acabar aquele impossível monumento nem sabe qual o destino daquela sua catedral após a sua partida. E, olhando o que ali está, não é fácil prever o que irá acontecer. A sua 'catedral' é dedicada a Nuestra Señora del Pilar na sequência de um promessa feita aquando de uma tuberculose que teve em novo. Contudo, nenhuma igreja apadrinha a ideia e, de resto, também o que ali está não tem qualquer licença de construção. Situa-se na localidade de Mejorada del Campo, a 20 km de Madrid.


Justo Gallego começa a trabalhar às seis da manhã e trabalha ao longo de dez horas. Interrompe ao domingo. Vai à missa. E eu fico impressionada com uma coisa destas. Não sei se aquilo é fé, se é pancada. Mas é uma coisa de uma tal desmesura que uma pessoa fica atónita com a força física e anímica de um homem daqueles.


O homem que, quase sozinho, está a construir uma catedral à mão



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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma semana muito feliz, a começar já por esta segunda-feira.

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4 comentários:

P. disse...

Embora ache a atitude absolutamente extraordinária, tendo em conta o resultado que aqui nos revela, pergunto-me porque Diabo, ou como é possível, haver alguém que dedique uma vida inteira, estamos a falar de 50 anos!!!!!!!!!!! a construir - no caso - uma Catedral (poderia ser até outra obra)?????
O que é que passou na cabeça daquele homem? Porquê 50 anos, sim 50!!!!!!! anos, a construir aquela Catedral?
Enfim, é de uma bizarria inacreditável! Poderão chover inúmeras críticas sobre esta minha observação, mas estou-me completamente nas tintas.
Não consigo perceber tamanha tarefa, tamanho empenho, tamanha dedicação, designadamente tendo em conta as…cinco décadas que isto já leva!!!!
Não entendo e custa-me a aceitar semelhante dedicação a um projecto como este.
Mas, se calhar talvez esteja errado e não possua a tal capacidade de ser capaz de compreender este tipo de decisões. Seja!
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Olá, P. Rufino,

E não é? Uma estranheza. Talvez uma certa pancada. E, imagino eu, um bico de obra para as autoridades. Mas, enfim, se ele dedicou grande parte da sua vida com tal perseverança, deve sentir-se realizado. E isso, chegar aos 90 anos ainda com tanto que fazer e o reconhecimento da comunidade local, deve ser reconfortante para ele.

Um bom dia para si, esta terça, P. Rufino!

Anónimo disse...

quando vi esse vídeo também reparei neste, metade do tempo 25 anos, mas uma obra prima - https://www.idealista.pt/news/imobiliario/habitacao/2014/01/28/19137-o-homem-que-escavou-uma-catedral-subterranea-no-deserto-dos-eua-fotos-e-video


Bob Marley

Um Jeito Manso disse...

Olá Bob,

Não conhecia. Acho extraordinário. Não entendo como se consome uma vida nma coisa assim mas admiro na mesma.

Obrigada!