quinta-feira, julho 28, 2016

Adel, Ali e o filho dos pais que, ao meu lado, tão angustiadamente falavam
- ou os riscos de atentados terroristas nesta desorientada Europa




Esqueço-me frequentemente que o meu corpo tem limites que a minha mente desconhece e o resultado disso é que, volta e meia, tenho umas 'cenas'. Nada de mais, pelo menos até ver (noc, noc, noc - três vezes na madeira) mas há exames, análises, médicos, ou seja, maçadorias adicionais e, sobretudo, recomendações de repouso, repouso, repouso.

Hoje, de tarde, numa dessas incursões, estava eu no balcão da recepção e o sistema informático bloqueado, não conseguiam emitir facturas, aceder às agendas dos médicos, etc. E eu ali à espera. Mas, como estava sem pressa, não me fez confusão. E, sobretudo, às tantas comecei a ouvir a conversa de um casal que, encostado também ao balcão, perto de mim, falava com a que me pareceu ser a chefe do atendimento. Mesmo que não quisesse ouvir, ouvia na mesma dado que falavam com naturalidade. Ao princípio, eu estava distraída, reparando na aflição das pobres coitadas que ligavam e desligavam os computadores, que diziam umas às outras para experimentarem carregar aqui ou ali -- e nada funcionava.

Mas, depois, como aquilo não desenvolvia -- e ligaram para um técnico de informática que fosse lá com urgência pois já estavam fartas de fazer tentativas com ele do outro lado -- olhei para o lado e vi quem mantinha aquela conversa com a 'patroa' da recepção.


Era um casal talvez com uns quarenta e tais, classe média (a classe média portuguesa que é pouco mais do que remediada). Falavam do filho, agora com 19 anos. Que estava cada vez mais estranho, que não estudava, que dizia que não valia a pena porque depois não há trabalho, que passa os dias fechado no quarto de roda do computador, que ouve músicas muito estranhas (o pai acrescentava: pesadas; e depois contava que o filho lhe tinha perguntado se não havia nenhuma música com a qual se identificasse e que ele tinha respondido que não, e depois virava-se para a senhora da recepção e dizia: está a ver? Tem conversas destas, cada vez mais estranhas). A senhora da recepção fazia um ar compreensivo.


A mãe tinha um rosto de angústia e perplexidade e continuava: que ele se veste de forma cada vez mais estranha, que acha que não é gótico mas que é muito estranho, e aquelas músicas, tão esquisitas que quase dão medo. E que se tem apercebido que ele visita sítios muito estranhos na internet. Que não se interessa por procurar coisas úteis, só coisas estranhas que a deixam preocupada.

A senhora da recepção perguntou se não havia outros casos na família e a mãe do rapaz, num tom de voz mais baixo, disse que o pai há uns anos tinha passado por uma fase muito difícil e que isso tinha marcado muito o filho, e aí o marido encolheu-se nos ombros, quase envergonhado, fez que sim com a cabeça e disse: foi complicado, foi. A mãe continuou: e a avó também tinha problemas de nervos. A senhora da recepção fez um discreto e entendido sorriso: estas coisas são genéticas, muitas vezes são.

A mãe, com o rosto branco e derrotado, continuou: que já o tinham posto numa instituição mas que, quando ele fez 18, lhes disseram que, a partir daí, só se ele quisesse, que não o podiam ter preso. E que o filho não quis.


O pai dizia que já tinham marcado consultas mas que ele nunca ia. E que não sabiam se havia de ser psiquiatria ou psicologia. A senhora da recepção decretou: Psiquiatria - porque ele precisa de medicação. E que a psiquiatra depois é que havia de dizer se devia ter também acompanhamento psicológico. 

Os pais perguntaram, quase a medo, quanto custava. A senhora da recepção perguntou se tinham seguro. Que não. Então explicou-lhes que tinham que pagar na totalidade. 90 euros a primeira consulta, porque é a mais demorada, e 60 (ou 70, não me lembro) as seguintes. Os pais entreolharam-se, preocupados. Depois a mãe perguntou: E tem que vir quantas vezes à consulta? Uma vez por semana? A da recepção disse que não, que até podia ser de 2 em 2 meses, que as de psicologia é que poderiam ser mais mas que isso a psiquiatra é que depois havia de recomendar, que até podia não ser preciso.

Aflitos, disseram: Pois, se for muito a gente não pode. Depois a mãe disse ao pai: Se calhar havíamos mesmo de ver isso do seguro. E o pai disse: Pois, temos que ir ver. Imaginei que deviam estar a pensar que um seguro também não é barato. E não é.

Mas marcaram uma consulta e que iam convencê-lo a ir, porque começavam a sentir medo do que ele pudesse fazer. E lá saíram os dois, esmagados.


Fiquei numa ansiedade. Imagino o sofrimento de ver um filho assim, de não lhe conseguir chegar.

Não sei se no Serviço Nacional de Saúde não haverá psiquiatras e psicólogos que façam um tratamento atempado e de proximidade junto de jovens que começam a derrapar em planos perigosamente inclinados. Se calhar não, ou se calhar não em número suficiente.

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Agora, ao percorrer os jornais online, leio que o autor do acto bárbaro na igreja francesa era um jovem de 19 anos que desde há anos era problemático, tanto que ainda andava com pulseira electrónica, e que quem o acompanhou no acto foi outro jovem talvez ainda mais jovem. Vi a foografia: pouco mais que um menino grande.

Jovens como Adel, perturbados, que se sentem desinseridos -- ou Ali, o outro jovem de 18 anos, que matou tantas pessoas em Munique e que tinha perturbações de foro mental, tendo conhecido o outro jovem que o teria acompanhado no ataque no centro de apoio psiquiátrico e que tinha como ídolo o doido varrido do Breivik -- são verdadeiras bombas-relógio com as quais os pais não sabem lidar e, como se tem visto, nem os pais nem as sociedades.


Adel Kermiche virou-se para o Daesh porque é o que está a dar, a 'onda' mais mediatizada, enquanto Ali andava obcecado com a matança de Breivik, tão mediatizada cinco anos atrás.


Vê-se as fotografias de ambos e o que se vê são putos, adolescentes, jovens a quem, certamente, os pais não conseguem compreender ou amparar.


Claro que no Daesh qualquer destes infelizes jovens caem que nem ginjas na sua estratégia de marketing já que nem têm que os treinar nem influenciar: estão, por eles mesmos, prontos para fazer maluquices a eito e por conta própria.

Por isso, uma vez mais o digo: mais do que andarem por aí a falar em guerras religiosas, a imaginar grandes complots, penso que seria bom que quem manda percebesse o problema grave, endémico e profundo que tem em mãos. O mal maior não está fora das fronteiras da Europa: está dentro. Há um sentimento de desenraizamento e desesperança entre muitos jovens e esses sentimentos, muitas vezes, são maus conselheiros. Em minha opinião, deveria ser planeado, com urgência, acompanhamento sociológico/psicológico/psiquiátrico a todos os jovens identificados como jovens de risco.

Deve também, de uma vez por todas, encarar-se o grave problema do tráfico de armas. Se em França ou no outro dia num comboio foram usadas facas já o rapazinho de Munique, se não estou em erro, tinha um arsenal bélico em seu poder. Adquirido na dark internet, ouvi dizer. Certo. A internet não detectada, sites a que não se acede pelas vias normais. Ok. Mas teve que as pagar e o dinheiro é físico, e sobretudo as armas são físicas, materiais, não são virtuais. Circulam. A toda a hora se houve falar em rixas que acabam em tiroteio. Parece que meio mundo tem armas.


Se estou a ver bem o que se tem estado a passar, nenhum destes atrozes atentados teve na génese o Estado Islâmico. Se bem leio a realidade, tudo se tem passado às mãos de europeus desequilibrados: um adulto jovem desempregado, em processo de divórcio, perturbado, outro que sofreu bullying em miúdo e que vivia fechado na adoração de mitos bélicos, outro que sonhava com guerreiros do deserto que degolam prisioneiros, mais ou menos, tudo nesta base. 

O que a mim me parece, face ao que observo, é que estamos perante uma sociedade que não sabe interpretar a causa dos riscos, uma sociedade que gera líderes fracos como galinhas atarantadas, uma sociedade que explora até à náusea as desgraças sem as saber perceber e sem, sequer, perceber que a invenção de heróis que são uma espécie guerreiros do Daesh é um incentivo para adolescentes que não reconhecem outros 'idolos' que não os que as televisões e os jogos e filmes de guerra idolatram.


Nota: Comecei este texto refeindo uma conversa a que hoje, involuntariamente, assisti e derivei para o tema dos atentados. Contudo, não sei quais os riscos que tanto atormentam os pais que ali, por várias vezes, vi prestes a rebentarem em lágrimas.

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As imagens que usei são algumas das belas obras de street art que se podem ver em Lisboa e que, sabendo sou grande admiradora, Leitor a quem muito agradeço há dias me enviou. Poderão ver tudo aqui.

Lá em cima Benjamin Clementine interpreta The people and I 

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.

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5 comentários:

Anónimo disse...

ontem ía a caminho de fazer uma endoscopia ao S.João (Porto),e ouvi esta música, animou-me bastante e depois fui ver na net

para além de gostar da música - https://www.youtube.com/watch?v=-rey3m8SWQI


é este tipo de beleza que pode dizer, dá a pata, abana o rabo, que um gajo faz tudo-))

Bob marley

Anónimo disse...

como é normal ter-se uma cloud oferecida pela google ou microsoft ou outro serviço, dropbox ou mega, aqui vai um serviço que permite gerir todas do mesmo sítio


o serviço gratuito oferece 20 terabytes de transferência de dados (chega e sobra), a generosidade disto é tanta que associado ao preço anual 42$ para o serviço pago, que se forem como eu subscrevem logo.

https://www.multcloud.com


Bob Marley

bea disse...

...e quanto escreve! Parece-me haver um mal estrutural na Europa. Que tem a ver com a educação. Dos pais. E dos filhos. E de quem não é uma coisa nem outra. Não a educação como polidez, mas a educação da vida para ser com os outros. Da disponibilidade que mexe nos egoísmos e é pouco treinada.

Um Jeito Manso disse...

Gracias Bob,

A ver se um dia destes exploro tudo isso. Para já, ainda nem a dropbox utilizo... Devia ter alguém que me tratasse desses aspectos práticos já que manifestamente a minha cabeça não me puxa para essas 'cenas'. Depois dá do que que dá, sempre à nora,

A ver se nas férias arranjo tempo para me organizar e seguir as suas preciosas icas.

Obrigada!

Um Jeito Manso disse...

Olá Bea,

A sociedade parece ignorar os sinais óbvios até que eles nos entrem pela casa adentro.

Uma preocupação.

Um abraço, Bea.