quarta-feira, fevereiro 10, 2016

Carnaval e outras memórias






Quando eu era pequena, gostava de brincar ao Carnaval. A minha mãe deixava que eu e a as minhas amigas escolhêssemos roupa dela à nossa vontade. Provavelmente restringia discretamente a escolha mas não me lembro de ter dado por isso. Tenho ideia que não dizíamos mascarar mas entronchar.
Agora que escrevi, fiquei na dúvida se era entronchar ou entrouxar e verifiquei que existem as duas palavras e que ambas fazem sentido no contexto. 
Vestíamo-nos à senhora, usávamos soutiens das mães que enchíamos com roupas para ficarmos mamalhudas, púnhamos roupa dentro das cuecas para ficarmos rabudas, calçávamos sapatos altos, eu gostava de usar casaco com gola de peles, e fazíamos grandes penteados e maquilhávamo-nos umas às outras. Isto passava-se nas férias de Carnaval. Não íamos assim para as escolas nem havia uma indústria e um comércio dedicado à época. Éramos nós que, com a prata da casa, nos aperaltávamos. Uma das minhas amigas, vizinha de rua, tinha uma mãe que lhe dava também largueza de movimentos. Então íamos também muito para casa dela e escolhíamos colares, malas, lenços, écharpes, algumas roupas extravagantes, pinturas, roupa. Eu adorava pois havia ali uma desarrumação que me agradava muito e que destoava da ordem que a minha mãe gostava de ter no seu guarda-fatos, gavetas, guarda-jóias.
Uma vez ela andava toda arreliada porque não sabia da cédula da filha, e acho que era preciso a cédula para tratar do Bilhete de Identidade, coisa de que apenas se tratava aos nove anos, quando íamos para o liceu (pelo menos é a ideia que, a esta distância, tenho). Dizia que já tinha corrido tudo e que não fazia ideia onde teria ido parar o diabo de cédula da filha. A minha mãe ria e, em casa, comentava: 'se ela soubesse é que eu me admirava'. 
Agora que estou a falar nesta minha vizinha, de quem eu gostava bastante porque era uma mulher de armas, divertida, super-tolerante, estou a lembrar-me que foi ela que me ofereceu o meu primeiro soutien. A filha ganhou corpo de mulher muito mais cedo que eu, menstruou ao dez anos, ao passo que eu, por essa altura, era ainda uma menina. Então, quando começaram a despontar os meus seiozinhos, uns botõezinhos salientes, ela, um dia, apareceu em minha casa com um soutien de  bordado inglês, muito bonito. Fiquei tão surpreendida, tão feliz. E a minha mãe também, toda ela se ria. Acho que a minha mãe só nesse dia é que se deu conta que a sua filha estava a começar a ser crescida. Lembro-me que, logo ali, quiseram que eu experimentasse e todas elas se riam e gabavam 'olha as maminhas, já tão crescidinhas' e eu toda vaidosa, a acreditar.
Uma vez, estando nós, miúdas e miúdos do bairro a andar de bicicleta numa descida, coisa que eu adorava -- tirava as mãos do guiador, abria os braços como se fossem asas, tirava os pés dos pedais e abria também as pernas, e sentia a bicicleta desabalada por ali abaixo, sempre a ganhar velocidade --, ao apanhar areia e tendo a bicicleta derrapado sem que eu fosse a tempo de a controlar, fui espetar-me contra o muro da moradia dela, partindo a cabeça. Foram todos a correr chamar a minha mãe, eu própria devo ter ido, só me lembro do alarido, da minha mãe aflita vendo-me a escorrer sangue da cabeça, e de, de repente, ter aparecido essa minha vizinha, uma corajosa, e nos ter enfiado a todas no carro dela e lá fomos, ela a acelerar a caminho do hospital e depois ela por ali dentro que nem um vendaval (não havia cá isso de triagens) e a minha mãe atrás, comigo e com a minha amiga, a minha mãe assustadíssima, quase sem um pingo de sangue apesar de ser da minha cabeça que o sangue escorria. 
O marido dessa minha vizinha tinha sido jogador de futebol do clube da cidade, era muito conhecido, muito estimado. Nessa altura, já não jogava, tinha uma loja de venda e reparação de bicicletas. Volta e meia juntavam-se lá em casa ex-jogadores, do tempo dele, e jogadores actuais. Ela fazia grandes almoçaradas, petiscadas que duravam até à noite, comiam, bebiam, riam à gargalhada. Nesses dias, a casa estava aberta e nós, miúdos, entrávamos e saíamos, e petiscávamos também. Eu comia lá coisas que nunca comia em minha casa: salada de orelha de porco, por exemplo, que era servida numas taças enormes que quase pareciam alguidares. Eu contava isso aos meus pais, gabando aquelas iguarias. Mas a minha mãe nunca se deixou tentar, nunca fez esse tipo de petiscos.
Havia ainda uma particularidade com essa vizinha (que era uma mulher bonita, muito morena, bem fornida de carnes sem ser gorda, sempre a rir, sempre a dizer piadas): um dos jogadores ainda no activo, um bonitão que tinha um carro todo vistoso, visitava-a regularmente durante a semana. O marido dela ia sempre almoçar a casa, depois dormia uma pequena sesta e, a seguir, voltava ao trabalho. Passado pouco tempo, chegava o jogador e lá ficava até ao fim da tarde, saindo antes do marido chegar. 
Toda a gente via mas ela era tão descontraída que não me lembro de alguém a fazer sentir-se inibida. Tenho ideia de os meus pais, entre eles, trocarem sorrisos maliciosos quando falavam disso mas nada de mais. Pelo contrário, se a minha mãe via o carro dele lá na rua, dizia para ficarmos a brincar no jardim da minha casa e não irmos para casa dela chatear.
Mais tarde, resolveram abrir uma casa de moda mas, claro, era coisa dela porque ele continuou com as suas bicicletas. Íamos lá muito, tinha sempre tecidos muito bonitos e, mais tarde, peças de pronto-a-vestir com bom gosto. Apesar de ter empregados, estava lá todos os dias. Recebia os clientes de forma calorosa, aconselhava, sugeria, ria-se com toda a gente. Foi um sucesso. 
Mas, voltando ao Carnaval: entronchávamo-nos e, felizes da vida, íamos depois em grupo pela rua, os rapazes apareciam também, com bigodes desenhados, armações de óculos sem lentes, chapéus ou bonés, casacos de homem, uns todos entrouxados, outros aperaltados. Corriam atrás de nós, fingiam que nos queriam apalpar as mamonas ou o avantajado rabiosque, pregavam-nos partidas. E isso era uma verdadeira festa.

Do carnaval a única coisa de que eu não gostava era das bichas de rabear. Dos estalinhos não gostava por aí além mas não tinha medo. Mas odiava quando eles atiravam as bichas de rabear. Também tínhamos bisnagas em forma de bananas ou de outras figuras e os rapazes tinham pistolas. Enchíamo-las de água e molhávamo-nos todos. Também havia o costume de ir por trás e encher a cara do outro de farinha. Isso eram mais os rapazes que nos faziam. Eu fugia deles quando pressentia que era isso que estavam a tramar: davam-me cabo da maquilhagem.

Tenho ideia que, por altura do Carnaval, levávamos para a escola as ditas bisnagas e os ditos estalinhos. Pacífico. O que não íamos era mascarados.

Já adolescente, nas inúmeras festas dançantes de fim de semana ou de aniversários ou do que fosse, se calhavam no carnaval, mostrávamos alguma superioridade em relação a isso das máscaras e das brincadeiras, coisa que já parecia coisa de crianças. Mas tenho ideia de ter usado mascarilhas ou de aproveitar para fazer maquilhagens mais exuberantes. Contudo, o que recordo mais dessa altura foi de um namoradinho meu, um amor dos grandes apesar dos nossos verdíssimos anos, ter ido passar uma noite à esquadra por reiteradamente se pôr, escondido num terraço, a atirar estalinhos e bichas de rabear a um polícia que estava, em baixo, a fazer guarda a qualquer coisa. Perante tal feito, fiquei a gostar ainda mais dele, my hero. Teria ele uns catorze anos nessa altura e não percebo como fizeram isso a uma criança - mas fizeram.

Mais tarde, já namorando, e depois, já casada, voltei a festejar o carnaval a sério. Um primo nosso tinha o costume de organizar 'assaltos'. Então íamos, de noite, completamente disfarçados para que ninguém nos reconhecesse. O meu marido não achava grande graça, para ele era sobretudo um frete. Mas, enfim, sujeitava-se e acho que acabava por se divertir. Eram sempre festanças até de madrugada. Aí havia grupos de padres, grupos de freiras, damas antigas completamente irreconhecíveis com os seus chevaliers, sei lá, mas tudo polvilhado com o seu quê de malícia, malandrice, provocação. Mas a diversão que eu vivia nessas noites malucas não se comparava ao prazer enorme que tinha quando era miúda.

Não sei se por isso, nunca achei graça a mascarar os meus filhos com fatos alugados ou feitos de propósito (na altura acho que ainda não os havia à venda, como agora). Mas, então, já tinha passado de moda a verdadeira folia carnavalesca, já estava tudo a começar a ser industrializado. Começaram também a aparecer aqueles desfiles copiados do Brasil, uns patéticos arremedos, em marcha lenta, uma coisa de tipo lá vem um, toda a gente nos passeios à espera que passe uma meia dúzia de pseudo-foliões. A única vez em que quase assisti a uma coisa destas foi em Sesimbra. Tínhamos lá ido, já não me lembro a que propósito, e as ruas estavam cortadas. Sem querer, acabámos por ver parte daquilo. Deu-me pena ver aquelas raparigas, brancas, descoradas, com tempo frio e chuvoso, a desfilar como se tivessem a alegria do sangue africano ou como se estivesse um calor baiano.


Este ano, não sei porquê, não vi gente mascarada nas ruas. Se calhar fui eu que não andei na rua à hora certa. Mas vi na televisão. Lá há um ou outro que parece que goza o carnaval a sério mas, de resto, é aquilo de os homens aproveitarem para se vestirem de mulheres e umas mulheres meio histéricas a foliar para o seu minuto de glória na televisão.


Acho que se perdeu o verdadeiro prazer da transgressão, o prazer de descobrir que nos podemos transformar, soltar os anjos loucos que existem dentro de nós e, depois, voltar a ser o que éramos, o prazer de andar a correr e a rir em voz alta, em grupo, pela rua, o prazer genuíno de comprovarmos que nós próprios somos capazes de desenhar a nossa própria alegria.

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As fotografias são da autoria de Rares Pulbere, um fotógrafo de casamentos que resolveu ir para a rua fotografar o Notting Hill Carnival.

Os vídeos não têm a ver com Carnaval mas podiam ter. Foram feitos para a Love por Sølve Sundsbø, um fantástico fotógrafo, um transgressor, que já cá esteve noutras vezes. O primeiro é recente, foi divulgado ontem. O segundo já tem dois anos.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira.

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5 comentários:

Rosa Pinto disse...

Lembrou-me desse canaval...em miúda. Recordo outro agressivo, dos ovos, da farinha, da lixívia... E agora, a imitação do carnaval brasileiro. Tão mau. Desenquadrado ...

E sim. Lembra-se bem. Tirava-se o BI quando da entrada para o liceu e era necessário a cédula.

Pôr do Sol disse...

Sim o Carnaval da minha infancia tambem era assim. Mas nós,com pai muitas vezes ausente e porque éramos quatro e não brincávamos na rua, vivíamos a época à janela, atirando serpentinas e papelinhos, cujas cores vivas e alegres faziam a festa. Mais tarde, já adolescentes dávamos e íamos a festas onde caprichávamos umas fantasias com muito brilho, lamés e cetins. Era a época em que descobriamos o flirt e as bebidas. Havia uma bebida que se fazia em minha casa para estas ocasiões, que nunca mais bebi. Uma especie de sangria, mas melhor, pelo menos é essa a lembrança que tenho. Chamava-se Cup. Era feita de véspera, numa grande panela com muitas frutas aos bocadinhos, água, creio que tambem vinho branco, Porto, (ou aniz já não me lembro bem) e hortelã. No dia da festa juntava-se gelo e muitas garrafinhas de água Castello. Os amigos diziam que o nosso era o melhor.

Hoje, as serpentinas e papelinhos têm um ar deprimente de papel velho.Chinês!
Assim como os trajes das crianças e os adultos dos corsos têm um ar de obrigação a cumprir.

Não sou adepta de Carnavais importados.

ECD disse...

Sobretudo a 1ª parte deste post fez-me recordar o melhor do grande contista José Cardoso Pires: tornar as vivências aparentemente triviais em tramas de contos. UJM tem tino de contista. Pena ficar-se pelo blog!

Um Jeito Manso disse...

Olá ECD!

Até fui reler o que tinha escrito. Já nem me lembrava bem do que era. Tenho este lado desordenado: escrevo, está escrito, passou à história.

Ao ler o que escreveu, voltei a pensar que, de facto, em quase 4.000 coisas que já para aqui escrevi, algumas talvez possam ter um mínimo de préstimo. Mas e paciência para as mondar...? É que nem imagino que tarefa ciclópica seria peneirar tanta coisa que para aqui tenho escrito desta forma torrencial...

Mas agradeço o comentário que, naturalmente, me deixa babada embora tome o que diz à conta da sua simpatia.

Uma bela semana para si, ECD!

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr do Sol,

Exactamente como diz, estes carnavais importados que não são nossos e que parecem despropositados. Sabe onde se bebe um belo cup de frutas? No self do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian onde se almoça e lancha muito bem.

Um beijinho, Sol nascente.