Às vezes os dias teimam em não passar, arrastam-se na maior indolência, sem história nem tremura de pele que os distinga. Não sei se posso afirmar, suportada pela estatística, que geralmente isso me acontece em dias de céu cinzento e pressão atmosférica incerta. Mas, com base no que agora estou a sentir, afirmo.
Não gosto de dias assim, acho que estou a desbaratar um bem precioso. Num deserto, ver uma fonte a deitar um vagaroso fio de água e passar-lhe adiante, com desdém (sem perceber que, mais à frente, quando a carne mirrar de tão seca, poderei já não ter como reverter a situação), parece-me até desfaçatez.
Então invento aventuras para poder ter com que entreter a cabeça e o coração. Pulo cercas artísticas, deslizo invisível por salas de museus, espreito quadros nas paredes a ver se algum me acelera a batida, percorro jardins, enfio-me nas grutas mais escuras, chamo o papão, desenlaço tranças imaginárias para ter com que enlear algum incauto príncipe que se aproxime, bebo licores raros a ver se algum me faz sentir especiosa -- qualquer coisa.
Outras vezes, em dias de mansidão, apenas abro clareiras para que a sombra do tédio se afaste e chegue até mim a luz das páginas de algum livro que me encontre. Não me esforço, apenas espero que seja livro com falas de pintores desaluados, diários de escritores tresloucados, reflexões de pernas para o ar de algum filósofo arredio, frases soltas de algum bem-aventurado, cartas de poetas a editores, recados de mulheres friorentas a homens tratadores de árvores -- coisas assim.
Ou, se a preguiça do dia já se me colou à pele, deito o olhar pela janela e ele, sozinho, que escale a serra ao fundo, que encontre os espigões de rocha onde se fixar, que deite mão às lianas por onde possa balouçar-se até encontrar o cume, o leito, a razão de ser.
Pode acontecer também que esteja completamente serena, uma vontade de doçura e subtileza, e que uma palavra, um olhar, um sorriso faça por valer o dia. Em dias assim, de brandura e calidez, posso até procurar o nome de flores generosas para, em imaginação, as passar nos pulsos, no recôndito do detrás da orelha, no prenúncio dos seios. Mas têm que ser raras e desconhecidas: boronia, tuberosa. Adentro-me então em procuras: que outros nomes têm, com que se parecem. Fico contente quando as reconheço: magnólia, nardo, loendro. Hesito, então: será que não as deveria temperar com rosas e jasmins ou com a folha fresca da laranjeira? Ou escavar uma abertura no tronco grosso de um pinheiro da longínqua Flandres e mergulhar lá as mãos, encostar a nuca, deixar que o cheiro activo da seiva roce a minha pele? Imagino como um véu invisível, feito de um bouquet irreal, traria maravilhas únicas aos meus dias parados. E, com isto, os dias agitam-se, preenchem-se de vontades - onde encontrar as flores, como misturá-las, como imergir nesse manto leve de perfumes inventados?
Outras vezes, em dias de mansidão, apenas abro clareiras para que a sombra do tédio se afaste e chegue até mim a luz das páginas de algum livro que me encontre. Não me esforço, apenas espero que seja livro com falas de pintores desaluados, diários de escritores tresloucados, reflexões de pernas para o ar de algum filósofo arredio, frases soltas de algum bem-aventurado, cartas de poetas a editores, recados de mulheres friorentas a homens tratadores de árvores -- coisas assim.
Ou, se a preguiça do dia já se me colou à pele, deito o olhar pela janela e ele, sozinho, que escale a serra ao fundo, que encontre os espigões de rocha onde se fixar, que deite mão às lianas por onde possa balouçar-se até encontrar o cume, o leito, a razão de ser.
Pode acontecer também que esteja completamente serena, uma vontade de doçura e subtileza, e que uma palavra, um olhar, um sorriso faça por valer o dia. Em dias assim, de brandura e calidez, posso até procurar o nome de flores generosas para, em imaginação, as passar nos pulsos, no recôndito do detrás da orelha, no prenúncio dos seios. Mas têm que ser raras e desconhecidas: boronia, tuberosa. Adentro-me então em procuras: que outros nomes têm, com que se parecem. Fico contente quando as reconheço: magnólia, nardo, loendro. Hesito, então: será que não as deveria temperar com rosas e jasmins ou com a folha fresca da laranjeira? Ou escavar uma abertura no tronco grosso de um pinheiro da longínqua Flandres e mergulhar lá as mãos, encostar a nuca, deixar que o cheiro activo da seiva roce a minha pele? Imagino como um véu invisível, feito de um bouquet irreal, traria maravilhas únicas aos meus dias parados. E, com isto, os dias agitam-se, preenchem-se de vontades - onde encontrar as flores, como misturá-las, como imergir nesse manto leve de perfumes inventados?
Dias feitos de silêncios. E, neste esvair de tempo, por vezes consigo sentir que os momentos que invento enriquecem o meu viver. Mas se isso não me satisfaz ou se algum sucedimento não pousa no meu dia, pois então desato as mãos e deixo que a rede dos meus pensamentos se espalhe no espaço. E fico à espera.
Agora que escrevi isto, olhei pela janela, espreitei o céu. Se nada vejo é porque os meus olhos ainda andam desaprendidos do indizível. Mas sei que há uma flor navegando pelos ares, que há água e estranhas formas de vida noutros planetas, que há milhões de sóis, milhões de céus, milhões de sonhos perdidos em órbitas desencontradas, palavras flutuando sobre as ondas que as marés siderais levam e trazem, medusas aladas, anjos, luas, pedrinhas, memórias, braços que procuram abraços, sons estelares, infinitos nadas; e lugares escuros, sem tempo, onde passado, presente e futuro se misturam. E então ocorre-me que só tenho que me deixar estar porque a chave que desvenda a minha existência está algures, presa entre os dentes de algum misterioso ser que de longe me olha, me desafia, me seduz, me envolve em segredos, em ternuras, em subtis destempos.
E assim vou vivendo, esperançosa, paciente, deixando palavras destas pelos ares, palavras que às vezes entram no coração de alguém, palavras que, tantas vezes, se perdem de mim e que ninguém vê, ninguém ouve, ninguém toma para si, palavras que não compreendo, palavras ditadas por uma alma que não me habita.
Agora que escrevi isto, olhei pela janela, espreitei o céu. Se nada vejo é porque os meus olhos ainda andam desaprendidos do indizível. Mas sei que há uma flor navegando pelos ares, que há água e estranhas formas de vida noutros planetas, que há milhões de sóis, milhões de céus, milhões de sonhos perdidos em órbitas desencontradas, palavras flutuando sobre as ondas que as marés siderais levam e trazem, medusas aladas, anjos, luas, pedrinhas, memórias, braços que procuram abraços, sons estelares, infinitos nadas; e lugares escuros, sem tempo, onde passado, presente e futuro se misturam. E então ocorre-me que só tenho que me deixar estar porque a chave que desvenda a minha existência está algures, presa entre os dentes de algum misterioso ser que de longe me olha, me desafia, me seduz, me envolve em segredos, em ternuras, em subtis destempos.
E assim vou vivendo, esperançosa, paciente, deixando palavras destas pelos ares, palavras que às vezes entram no coração de alguém, palavras que, tantas vezes, se perdem de mim e que ninguém vê, ninguém ouve, ninguém toma para si, palavras que não compreendo, palavras ditadas por uma alma que não me habita.
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Ao pé dos cardos sobre a areia fina
que o vento a pouco e pouco amontoara
contra o seu corpo (mal se distinguia
tal como as plantas entre a areia arfando)
um deus dormia. Há quanto tempo? Há quanto?
E um deus ou deusa? Quantos sóis e chuvas,
quantos luares nas águas ou nas nuvens,
tisnado haviam essa pele tão lisa
em que a penugem tinha areia esparsa?
Negros cabelos se espalhavam onde
nos braços recruzados se escondia o rosto.
E os olhos? Abertos ou fechados? Verdes ou castanhos
no breve espaço em que o seu bafo ardia?
Mas respirava? Ou só uma luz difusa
se demorava no seu dorso ondeante
que de tão nu e antigo se vestia
da confiada ausência em que dormia?
Mas dormiria? As pernas estendidas,
com um pé sobre outro pé e os calcanhares
um pouco soerguidos na lembrança de asas;
as nádegas suaves, as espáduas curvas
e na tão leve sombra das axilas
adivinhados pêlos... Deus ou deusa?
Há quanto tempo ali dormia? Há quanto?
Ou não dormia? Ou não estaria ali?
Ao pé dos cardos, junto à solidão
que quase lhe tocava do areal imenso,
do imenso mundo, e as águas sussurrando -
-ou não estaria ali?... E um deus ou deusa?
Imagem, só lembrança, aspiração?
De perto ou longe não se distinguia.
[Metamorfose de Jorge de Sena
-- poema deixado por Rosa Pinto em comentário abaixo e que me deixou emocionada]
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Hubbard Street Dance Chicago dançam “Waxing Moon” numa coreografia de Robyn Mineko Williams, com os bailarinos Jacqueline Burnett, Jonathan Fredrickson
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Já respirei fundo, já fiz uma pausa.
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E agora deixem que vos convide a descer até ao post seguinte onde fiz uma entrada de pé em riste na direcção do Miguel Sousa Tavares, o gémeo separado à nascença do João Miguel Tavares (facto a que, bem entendido, Sophia, a mãe do primeiro, é alheia)
...
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Já respirei fundo, já fiz uma pausa.
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E agora deixem que vos convide a descer até ao post seguinte onde fiz uma entrada de pé em riste na direcção do Miguel Sousa Tavares, o gémeo separado à nascença do João Miguel Tavares (facto a que, bem entendido, Sophia, a mãe do primeiro, é alheia)
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2 comentários:
Metamorfose
Ao pé dos cardos sobre a areia fina
que o vento a pouco e pouco amontoara
contra o seu corpo (mal se distinguia
tal como as plantas entre a areia arfando)
um deus dormia. Há quanto tempo? Há quanto?
E um deus ou deusa? Quantos sóis e chuvas,
quantos luares nas águas ou nas nuvens,
tisnado haviam essa pele tão lisa
em que a penugem tinha areia esparsa?
Negros cabelos se espalhavam onde
nos braços recruzados se escondia o rosto.
E os olhos? Abertos ou fechados? Verdes ou castanhos
no breve espaço em que o seu bafo ardia?
Mas respirava? Ou só uma luz difusa
se demorava no seu dorso ondeante
que de tão nu e antigo se vestia
da confiada ausência em que dormia?
Mas dormiria? As pernas estendidas,
com um pé sobre outro pé e os calcanhares
um pouco soerguidos na lembrança de asas;
as nádegas suaves, as espáduas curvas
e na tão leve sombra das axilas
adivinhados pêlos... Deus ou deusa?
Há quanto tempo ali dormia? Há quanto?
Ou não dormia? Ou não estaria ali?
Ao pé dos cardos, junto à solidão
que quase lhe tocava do areal imenso,
do imenso mundo, e as águas sussurrando -
-ou não estaria ali?... E um deus ou deusa?
Imagem, só lembrança, aspiração?
De perto ou longe não se distinguia.
Jorge de Sena
Rosa Pinto,
Este poema deixou-me emocionada. Não conhecia. Para mim, é tocante. Gostei muito. Coloquei-o no corpo do post pois acho que parece uma resposta que me chega do espaço.
Muito obrigada.
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