quarta-feira, janeiro 27, 2016

Passarinhos fritos e outras confissões impossíveis


No post abaixo já despejei a minha irritação contra a Marilú Pinóquia e contra o Cavaco das Cagarras: há gente que tem mau perder e mau feitio e estes dois não percebem que já acabou o tempo deles, que nos deviam poupar aos seus maus fígados, aos seus maus íntimos.

Mas, enfim, isso é no post abaixo. Aqui, agora, mudo de registo e vou mergulhar as mãos nas minhas vísceras. Bem, nas minhas não será bem.



  
Modifiquei-me um bocado com o decorrer dos anos. Por vezes penso que ainda sou muito igual ao que era quando era pequena mas, se cair em mim, vejo como me modifiquei.

Na minha maneira de ser intrínseca acho que me mantenho igual: acho que espontânea, franca, destemida, curiosa, sonhadora. Acho.


Mas há aspectos em que mudei muito. Acho. Tendo tido uma infância muito em contacto com o campo e com o mar, há coisas que, nessa altura, para mim eram naturais e que hoje já me fazem impressão. No entanto, descendo bem ao interior de mim, tenho que confessar que, noutras, parece que, apesar de tudo, ainda subsiste em mim uma certa maneira de ser primitiva.

Exemplifico.

O meu avô sempre gostou muito de pescar. Era um homem extraordinariamente paciente. Contra as investidas da minha avó, mulher controladora e com uns certos laivos de autoritarismo, ele calava-se como se não fosse nada com ele ou ia para a sua horta ou abalava para a pesca. Até ser bem velho, ia todos os dias à pesca e, até certa altura e contra a opinião dos filhos, ia de bicicleta. O meu pai, durante um período, também lhe deu para isso mas não terá durado mais que meia dúzia de anos, se tanto, esse hobby.

Com qualquer deles, havia uma coisa que eu gostava de fazer: amanhar o peixe. Os peixes vinham reluzentes do mar e eu gostava de lhes jogar as mãos às guelras, puxar as tripas. Também gostava de os escamar, despi-los daquela capa de partículas espessas e reluzentes mas, bom, bom mesmo, era sentir as tripas frescas, limpar bem as barrigas. Às vezes, por fim, já o alguidar estava rubro de sangue e eu com as mãos ali metidas. Isto era uma luta: nem a minha avó nem a minha mãe queriam, tinham medo que algum anzol tivesse ficado na guelra e que eu me magoasse ou que me magoasse com a faca. Mas eu sabia ter cuidado. Ainda hoje gosto de o fazer, e faço-o com cuidado, gosto de aproveitar o fígado, gosto imenso de fígado de peixe.

Pior que isso, e já aqui o referi, era um outro costume que o meu pai e os amigos tinham. O meu pai tinha um grupo de amigos com quem jogava futebol e voleibol. Alguns jogavam também hóquei em patins. Uns primos do meu pai eram exímios. No hóquei o meu pai apenas fazia parte da organização. Um dos primos, mais novo, ágil, bonito, bon vivant, tinha o sangue quente. Volta e meia pegavam-se quase à pancada. Aí o meu pai punha uma mão na vedação do campo e elevava-se, num salto, pelos ares, entrava em campo, separava-os, impunha respeito. Quando algum deles se casava, iam todos ao casamento. Lembro-me bem desses tempos, adorava andar por ali, no meio daquelas confusões. Adorava aqueles ambientes. A minha mãe nem sempre ia, só ia se algumas amigas também fossem e, então, sentavam-se juntas e conversavam o tempo todo. Mas, para além dessas práticas desportivas, havia uma outra, muito mais esporádica --  e era a essa que me referia. Em determinada altura, talvez fosse por estas alturas, iam aos pássaros. Antes, iam apanhar formigas de asas, umas formigas grandes a que chamavam agüidas (lê-se o u, pelo que lhe apliquei um trema mas não encontro no dicionário). Guardavam-nas numa caixa de cartão na qual faziam furos na tampa para elas respirarem.

Então armavam as ratoeiras (umas armações metálicas) com as ditas agüidas. Eu própria o fazia, embora os meus pais não quisessem com medo que eu ficasse com um dedo preso. Depois, nos dias em que combinavam, ao fim de semana, iam de manhã muito cedo, talvez quase de madrugada e iam deixar as ratoeiras. Mais tarde, iam levantá-las e traziam os pássaros. Por vezes os pássaros vinham ainda quentes. Gostava de sentir a sua penugem e pele ainda morninhas. E, então, sem que aquilo me fizesse qualquer impressão, queria ser eu a depená-los. Começava pelas asas, pelo rabo, as penas maiores, depois o corpo, a penugem macia. Depois abria-lhes a barriga, gostava de sentir as tripas quentes, aproveitava as moelas, abria-as, limpava-as, depois o fígado e o pequeno coração. Cortava-lhes também a cabeça. Nenhuma impressão.

Se acontecia algum pássaro ainda vir vivo, a minha mãe ficava incomodada. De resto não gostava nada de arranjar pássaros. O meu pai então dava-lhes uma torção no pescoço e eles ficavam-se. Eu assistia impávida.

E adorava comê-los. Passarinhos fritos era um pitéu que eu, na minha meninice e até ao princípio da adolescência, adorava.

Uma das minhas avós também tinha uma capoeira. Eu gostava de ver as galinhas, dava-lhes milho. Outras vezes ficava à espera de as ver entrar na parte fechada, depois virem cá para fora, dando uma cantada. Então eu entrava, ia até essa parte fechada, quase às escuras, e ia buscar os ovos ainda quentes. Depois pedia à minha avó que me fizesse uma gemada. Outro pitéu.

Volta e meia determinava-se que a refeição era galinha. O meu pai não tinha qualquer problema em matá-las. Não me lembro do meu avô nessas fainas. Mas a minha avó também não se ensaiava. Apesar de franzina, era muito indiferente em relação a essas coisas. E eu era sempre a ajudante. Ficava a segurar uma tigela por baixo do pescoço das galinhas, para aparar o sangue pois toda a gente gostava de uma apurada e cheirosa cabidela. O sangue esguichava, a galinha estremecia por todo o lado e eu, na maior, desviando a tigela no sentido do esguicho para não se perder nada. A seguir, o sangue quente, misturava-se vinagre. E depois a galinha era posta em água quente e eu entrava outra vez em acção: depenava, puxava as tripas, aproveitava as miudezas. A minha mãe sempre em cuidado que eu me não magoasse na faca, a minha avó também, mas eu manobrava-a com cuidado e participava na operação com perícia e prazer.

Acho que apenas se alterou alguma coisa dentro de mim uma certa vez, quando o meu pai quis ter no quintal da nossa casa, na parte de trás, junto à horta, uma capoeira.

A minha mãe não gostava, dizia que era uma prisão, que as galinhas só davam trabalho e faziam porcaria mas acho que o meu pai tinha aquela nostalgia de ter uma certa auto-suficiência alimentar. Também plantava feijão-verde, tomate, cenouras, salsa. 

Lembro-me que, por essa altura, arranjou um fogareiro que tinha um espeto e assava frangos. Era ele que os matava.

Acho que já o contei. Um dia ficou a trabalhar até mais tarde, a minha mãe que matasse a galinha. Ela não queria, que esperava. Mas ele não sabia a que horas chegava, ela que o fizesse, já tinha visto muitas vezes, não tinha problema. Não sei como, ela lá acabou por se encher de coragem.

Mas foi o bom e o bonito.

A minha avó ou o meu pai faziam aquilo nas calmas. Escolhiam a vítima, seguravam-na pelas asas, deitavam-na no chão, punham-lhe um pé em cima das patas, seguravam na cabeça e lá vai disto, em três tempos tinham procedido à degola. 

Com a minha mãe foi um festival. A galinha cacarejava, fugia, a minha mãe não a segurava bem. Eu ali à volta com a tigela para aparar o sangue (para fazer um arroz de cabidela, como acompanhamento) e a minha mãe aflita, só se lhe soltavam ais, eu também já aflita com a aflição da galinha e da minha mãe, incapaz de ajudar, com pena delas. Por fim a minha mãe lá se encheu de coragem, aplicou-lhe um golpe no pescoço mas apenas a feriu, a galinha quase gania, a minha mãe só lhe apetecia salvar a galinha, a galinha fugia, uma calamidade. Por fim, depois de uma verdadeira chacina, a minha mãe mais morta que viva, lá se conseguiu dar o assunto por concluído.

Acho que depois disso nunca mais me consegui abstrair do sofrimento dos animais. Hoje seria incapaz, mas absolutamente incapaz, de assistir à matança de uma galinha quanto mais participar, aparando o seu sangue.


Também deixei de ser capaz de comer passarinhos. De resto, o meu pai também deve ter ganho uma outra consciência, era eu adolescente e já ele se tinha deixado disso. Provavelmente mais tarde começou a ser proibido, não faço ideia.


A capoeira lá no quintal também pouco durou. A própria horta foi sol de pouca dura. O quintal (que fica na parte de trás da casa) foi relvado e apenas ficaram as laranjeiras e o limoeiro, que ainda lá estão. Os passarinhos voam por lá em liberdade.

Mas o que sei, e disso ainda me lembro bem, é de como antes nada disso me fazia impressão e, mais, de como gostava de mergulhar as mãos nos corpos e sentir as vísceras ensanguentadas.  

Por vezes penso que, não obstante as preocupações ambientais e ecológicas que tenho, o amor que tenho pelos animais e tudo isso, no fundo, ainda tenho vivo, dentro de mim, um pouco desse meu lado bárbaro, primitivo. Mas nem quero pensar nisso.

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As fotografias de adoráveis crianças são de Katrina Parry. A penúltima é de  Martin Stranka. A da mulher com a galinha e a última são de Margarita Kareva .

Lá em cima Catrin Finch interpreta Clear Sky.

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E, esperando que não estejam horrorizados comigo, convido-vos a descerem até ao post seguinte caso queiram saber o que acho das últimas manifestações da Marilú e do Cavaco.

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4 comentários:

Anónimo disse...

Horrorizada nada. Também fiz isso tudo :)
Aqui faltam os coelhos e os porquinhos da índia
Raramente mas de vez em quando lá ia também um ouriço cacheiro ou umas perninhas de rã
Também costumava assistir à matança do porco e nunca aqueles gritos lancinantes me fizeram confusão.

Faziam parte do ciclo da vida: nascer, procriar e morrer e para procriarmos temos de comer!

Também eu hoje sou incapaz de voltar a fazer isso e faz-me impressão ver
Tal como as touradas. O que eu gostava! E dos elefantes ou dos leões no circo? Uma delícia de palmas em que as mão ficavam a arder.

Faz parte da evolução da espécie humana essa consciência de que os animais são sencientes.

Beijo

GG

Anónimo disse...

Creio bem que quando somos pequenos não temos a noção da crueldade. Faz parte da nossa insensibilidade, quer-me parecer. Também me lembro de me divertir, eu e meus irmãos, a ver matar o peru, que depois de decapitado pela empregada de uns meus avós ainda andava uns passos antes de cair, já sem a pobre cabeça. E nós a rir! E depois, em casa de outros avós, com meus irmãos, matámos os coelhos que havia numa coelheira, com uma pancada no pescoço (tinham-nos dito que assim morriam logo e sem dor), o que levou esse nosso avô a obrigar-nos a comer coelho, dias a fio, como castigo! Quanto aos pássaros, um amigo nosso, caçador nos tempos livres, um dia, quando nos foi visitar em casa de um desses avós, atirou aos tordos e lá comemos um belíssimo arroz de tordos!
Mais tarde, numa ocasião, ofereceu-me umas perdizes e eu depenei-as com todo o cuidado (não me daria a esse trabalho se fosse um frango!), queimei-lhes depois a restante penugem para garantir que não iria pena para a panela, limpei-as das tripas, lavei-as, marinei-as (com azeite, vinho da Madeira, louro, dentes de alho, sal, pimenta, salsa q.b.) e no dia seguinte, abertas as barrigas meti-lhes no bucho um pouco de carne de porco preto que tinha previamente moído, juntei cogumelos, castanhas e, cosidas as ditas barrigas com um pequeno cordel, tacho com elas, em lume brando, juntando um pouco de mais azeite, vinho branco, chalota picada e rodelas muito finas de cenoura. Acompanharam com batata pequena assada no forno e espargos verdes bem quentinhos. Com uns amigos e um bom tinto, foi um belo manjar. Onde se discutiu o Mundo, os seus encantos e desencantos, e outras tretas.
P.Rufino

Anónimo disse...


Eu também comi passarinhos fritos, embora nunca tenha sido eu a matar nenhum. Acho que nem antes nem hoje o conseguiria fazer. Também não conseguia ver o matador a espetar a faca no porco, mas conseguia ouvir os seus gritos, suportava-os. Mais tarde, em alturas de matança do porco, que acho hoje um ato verdadeiramente bárbaro, tapava os ouvidos ou tentava fugir para bem longe. Hoje, se vir uma matança 'artesanal', faço queixa. ´
Também vi muitas touradas. Hoje assino todas as petições que me cheguem sobre o tema.
Ainda bem que evoluímos, ainda bem.
Lurdes

Anónimo disse...

Isso dos passarinhos fritos é uma calamidade/vergonha quase nacional. no Algarve são aos milhares (não serão milhões porque têm desaparecido ) sacrificados para os petiscos e que já valem uns bons cobres que quem os caça
ninguém faz o estudo das espécies em vias de extinção ou já extintas ?!
lembro-me de ver levantar voos de inúmeros indivíduos que saíam por detrás das moitas
nos nossos dias, mesmo na primavera, o céu está deserto, mal se ouve um passarinho a não ser alguns pardais (segundo se diz por aí têm os ossos duros)
e sendo uma "tradição", ninguém põe cobro a essa vergonha, deixando as plantas e árvores sem proteção, pois um trabalho não valorizado desses passarinhos é o de comer lagartas e insetos das pragas. Os nossos filhos ou netos que se lixem!
e ainda falam de atividades de "birdwatching"?!