sábado, novembro 21, 2015

De que serve ter o mapa se o fim está traçado, de que serve a terra à vista se o barco está parado, de que serve ter a chave se a porta está aberta, de que servem as palavras se a casa está deserta





Se puderes ensinar-me o caminho que me leve até a uma paisagem assim, serena, feita de luz e paz, eu vou. Se me ensinares a sair da torre de vidro onde me têm guardada, eu vou. Se me disseres como virar as costas a estes fantasmas que me cercam, eu vou.

Mas, enquanto eu não me libertar das mãos que se fecham em volta do meu peito, vai-me dizendo palavras suaves como a brisa que se desprende do rio, conta-me do algodão doce que se eleva da areia nas manhãs de vento, ensina-me poemas e toadas, fala-me de cítaras e de clavicórdios, mostra-me pinturas e vidros banhados por reflexos infinitos, leva-me pela mão até ao passado ou até ao futuro, conta-me histórias, olha-me como se o teu olhar viesse de um tempo em que eu era outra e tu também. 

Vou fechar os olhos. Vou esperar que a tua voz me conduza pela noite fora, que o teu sorriso desvende a minha timidez, que a tua presença me envolva. Coloca as tuas mãos sobre as minhas, coloca os teus lábios sobre os meus. Vou imaginar que me estás a levar pela mão, que me levas até onde a luz entra numa catedral imensa, vou sonhar que os cânticos descem como raios de luz das abóbadas infinitas. Amparar-me-ás, dir-me-ás que a estrada me espera, que eu me demore porque a estrada espera, porque tu esperas. E, juntos, deixaremos que o silêncio nos abençoe, nos purifique.


Fecho os olhos e demoro-me. Anjos, deuses, lembranças. Estão à nossa volta. Diz-me baixinho, como um segredo, como uma oração que eu imagine só para mim:

Vem como a gazela do deserto
obrigada a ziguezaguear em nervosa velocidade
atravessando os trilhos e voltando
com medo do ganido dos cães e do caçador e finalmente se decide
por uma veloz linha recta
com um relance ao lugar deixado

Sinto o ciciar das tuas palavras. Elas encerram um mistério. A tua pele encerra um mistério. A forma como me olhas encerra um mistério. A minha pele treme de inquietação. De onde te conheço? Da minha imaginação? És aquele que os meus dedos inventaram quando, nas noites silenciosas, escrevia palavras sem dono?

Não me respondas. Deixa-me viver com essa inquietação dentro de mim. Ela alimenta-me, ela faz-me companhia. Deixa-me desconhecer de onde te conheço.

Uma aragem branda recorda-me que quero partir. Mas não quero.

De olhos fechados, em segredo, digo-te: Quero que me leves. Mas não agora. Um dia. Dizes que me esperas mas logo te contradizes e pedes que te responda. Mas dizer-te o quê? Estas paredes brancas, este vidro frio, estes fantasmas que falam palavras vazias deixam-me sem vontade, cansada, tão cansada.

Mas tu pedes-me: Responde-me. Vens? Vens como a gazela do deserto?


Digo-te, então, como se uma outra voz falasse por mim -- e a voz que eu ouço é baixa, quase rouca, uma voz que vem da pedra, da terra. Falo e descubro os seios, quero que os vejas banhados de luz dourada, quero que sintas como debaixo deles bate o meu coração apaixonado:

Estás a salvo dentro da casa da amada
beijando-lhe as mãos, fazendo-lhe
a sincera proclamação do teu amor,
fazes tudo isto
tudo isto no interior da grande e preconcebida organização
da deusa de oiro.

Tu olhas-me. Não sabes o que digo e eu também não. Peço-te que não me perguntes porque as palavras que disse não são minhas, voaram de dentro de mim. Acredita em mim. Ou não. Desacredita como se eu fosse a outra que me habita. O meu coração está longe, lá onde os pássaros cantam em liberdade, lá onde as folhas têm mil cores e da terra se evolam mil perfumes. E tu dizes: vem, então.

Mas não posso. Não tenho o mapa da estrada e tu também não, não tenho a chave da casa e tu também não, não tenho o segredo dos teus olhos, não sei o que se esconde no fundo secreto do teu olhar nem sei para onde vai o barco que leva os teus sonhos.

Um dia vou, um dia dar-me-ás a mão e eu irei, irei levada pelo teu sorriso que entra sem vergonha no meu corpo, irei para longe dos fantasmas cinzentos que habitam a torre onde vivo aprisionada, irei contigo para onde me levares. Mas que nesse lugar haja um mar tranquilo como um espelho, árvores verdes e douradas como seda e lãs, montes macios e doces como mel e um silêncio longo e terno como a música que se desprende do meu e do teu coração.

___

Não ligues. Desculpa. Não sei o que digo. 
Pega nas minhas palavras e junta-as de outra forma: talvez, então, elas façam algum sentido.

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  • O poema é a parte III de Pressa in 'Poemas de amor do antigo Egipto'.
  • As fotografias da capela de King’s College mostram as iluminações digitais feitas por Miguel Chevalier e as fotografias das paisagens de Seul são de Jaewoon U. (descobri-as no Bored Panda).
  • Lá em cima Maria Bethânia canta Quem me leva os meus Fantasmas de Pedro Abrunhosa.
...

2 comentários:

Jorge Carvalheira disse...

Se eu tas soubesse dizer, achas que fazia segredos delas?!

Traçados sobre nós disse...

A Luz, fio de um equilíbrio


A Luz, fio de um equilíbrio
do que nasce e morre, mutante,
em constante desequilíbrio,

porque nascer é morrer
num tempo incerto, instante,
quando lá vem a nuvem...


José Rodrigues Dias, 2015-11-21


Saudações, hoje, UJM.