sexta-feira, agosto 14, 2015

Eis-me sem explicações crucificada em amor: a boca o fruto e o sabor


Pensa que poderia ouvi-lo ao longo de muitas horas, muitos dias. E, pensando isto, interroga-se: muitos anos? Mas deixa a pergunta a pairar, a pairar dentro de si.






Pensa que gostaria de passear com ele, pensa na tal aldeaziña galega, um lugar de mar e frios, pensa que gostaria de se agasalhar. Pensa nele e pensa que há qualquer coisa no seu olhar desabrigado que pede aconchego. 

Pensa nele e pensa que quer que ele lhe fale de reinos perdidos, de florestas, de templos, de outras civilizações, de castelos, de palácios, e quer que ele descreva tudo como se para lhe fazer lembrar outros tempos em que ambos estiveram juntos.

Talvez pudessem passar umas semanas na vila que se debruça sobre a enseada onde o mar se acolhe em sossego.



Uma casa no meio da aldeia. Ou um pouco afastada, talvez. E a casa terá um quintal grande, árvores, pássaros nas árvores. E terá uma varanda virada para o quintal e ambos sentar-se-ão lá, agasalhados, talvez uma manta sobre as pernas ou a envolver-lhes os ombros, talvez se sentem num cadeirão de dois lugares e irão lendo livros enquanto se chegam um ao outro para se aquecerem, e irão olhando as árvores, o sol que se põe, a noite que começa a cair, o gato que salta do outro lado para se pôr ali, sossegado a olhar para eles.



Outras vezes estarão abraçados junto à varanda que dá para o mar, olharão os veleiros que passam, as gaivotas, olharão os reflexos de luz nas águas. Pouco dirão porque estarão emocionados, tantas vidas noutros mundos para agora estarem ali, unidos, o corpo, a alma, o coração. Ele dirá de vez em quando ‘olha a cor do mar’ e ela dirá ‘e a do céu’. E ele estreitá-la-á mais, como se querendo impedi-la de se perder dele. 

Às vezes, enquanto escolhe o que há-de vestir ou enquanto se põe de lado para se ver melhor ao espelho, a mulher verá como ele a olha, umas vezes sorrindo, outras muito sério. Perguntar-lhe-á ‘o que é?’ e ele encolherá os ombros, ‘nada’ e ela irá sentar-se junto a ele, o braço enfiado no dele, encostará a cabeça ao seu ombro, far-lhe-á uma festa no rosto. Nada dirão. 

Depois, ao jantar, uma pequena vela sobre a mesa, um vinho bom, a mão de um tocando a mão do outro, ela pedir-lhe-á, ‘um poema’ e ele dirá um e outro, tantos quantos ela pedir. Mas ela não pedirá muitos, receará que ele diga que não sabe mais. 

Um dia, quando ele menos esperar, dirá ela um poema, talvez aquele de que tanto gosta:

Eis-me sem explicações 
crucificada em amor: 
a boca o fruto e o sabor.

Imagina que ele sorrirá, admirado. Talvez veja nisso uma declaração de amor ou, mais do que de amor, de desejo. Ela dirá ‘é um poema pequeno, é o único que consigo fixar, a minha cabeça não dá para mais’. Ele sorrirá, ‘então, se por incapacidade de memorização, teve que ser selectiva, permita que lhe diga que seleccionou muito bem’. E logo de seguida, ele, com a sua boa memória, repetirá:

‘      Eis-me sem explicações 
       crucificada em amor: 
       a boca o fruto e o sabor.

Ah, este eu não posso dizer, este só pode ser dito por uma mulher’.

E aproximar-se-á e dirá em voz muito baixa, quase como se segredasse, ‘deixe-me ver a que fruto sabe a sua boca’ e beijá-la-á e ela deixará que, devagar, ele seinta o sabor do sumo do fruto da sua boca.
E, enquanto pensa nisso, diz em voz muito baixa, 'o sumo do fruto da minha boca'. Depois diz 'prova-o'.
À noite, na cama, lendo cada um o seu livro, de vez em quando um pousará o seu e pedirá que o outro leia em voz alta. Adormecerão muitas vezes assim, a voz de um embalando o outro.

....

Adormeceu.

Mais tarde, a mulher abre os olhos, respira fundo. Volta a fechá-los, volta a imaginá-lo. Volta a vê-lo silencioso e sério.

Levanta-se, vai até à janela, espreguiça-se. Deixa-se estar ainda sob o efeito do pensamento.

Sacode o cabelo, agita os ombros, afasta o homem da sua cabeça, do seu corpo.

Afinal foi apenas uma curta entrevista.


.....     .....     .....

  • Lá em cima era Richter a interpretar Scriabin (Sonata no. 2, Op 19 (movement 1))
  • O pequeno poema é de Natália Correia.
  • As imagens mostram Muros e uma das suas casas. 
  • A mulher que escolhi para dar corpo à jornalista é, uma vez mais, Kristin Scott Thomas.
....

Hoje os meus filhos, depois do trabalho, foram para os concertos do Sol da Caparica. Daqui a nada chegará ela, que virá pernoitar por cá. Os seus dois rapazinhos já aqui estão a dormir depois de terem jantado como uns leões esfomeados, a seguir feito ginástica, depois jogado à bola, a seguir ao Jogo da Glória (com várias tentativas de batota pelo meio), terem andado a desafiar o avô com 'truques', tendo ele que se recordar dos seus tempos de jovem quando praticava karaté, depois ceado forte e feio como se não comessem há muitos dias e, para rematar, me terem posto a inventar histórias de ursos em grutas guardadas por bombeiros e etc. -- até que adormeceram de súbito.
Os outros dois pimentinhas ficaram com a outra avó e virão para cá no sábado já que o Sol da Caparica continua e os pais não o querem perder.
Por isso, como é bom de ver, depois de um dia de trabalho, com uma empreitada destas, estou mais do que perdida de sono e já nem sei muito bem o que é que estive para aqui a inventar.

Portanto, com vossa licença fico-me já por aqui que daqui a nada tenho que estar a pé e estou mesmo a ver que vai ser o bom e o bonito para os arrancar de cá a horas decentes.

.....

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira. 
Divirtam-se e sonhem. Sonhar é bom.

..

4 comentários:

Rosa Pinto disse...

continuando...

Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo


Rosa Pinto disse...

Adorei ... aqui fica.

"Via-a de longe, evitava vê-la de perto, como é que lhe havia de falar? E era como se uma vergonha muito grande, um pecado ou coisa assim, ou uma inferioridade muito baixa e que vinha de uma superioridade muito alta em que eu via Sandra. Eu sentia-me esmagado de humilhação, como é que lhe havia de falar? Quem é que disse que o amor aproxima não sei quê? não é verdade. Sou um homem experimentado - não é verdade. Se eu amasse pouco Sandra, ou não a amasse, era-me muito mais fácil falar com ela, lidar com ela e com a irmã e com quem quer que fosse dela, eu livre e independente. Amar é pôr ao alto e ao longe, treme-se como diante de um deus tresloucado. Amar muito é ter pouco de nós com que se possa ser gente. Amar é ser desgraçado e eu era."
Vergílio Ferreira in "Para Sempre"

Fernando Ribeiro disse...

Se é verdade que na Galiza se fala muito castelhano, é igualmente verdade que também se fala galego, embora muito contaminado pelo castelhano, sobretudo nos centros urbanos e ao nível da pronúncia. Por isso, talvez fosse preferível, à palavra pueblito, usar a palavra aldeaziña. Julgo que a ortografia oficial do idioma galego é igual à castelhana, embora haja muitos galegos que prefiram usar a ortografia portuguesa. Neste caso, então será aldeazinha.

Gosto muito da música do Alexander Scriabine. Não sei porquê, mas é muito pouco tocada. A interpretação do Sviatoslav Richter, que nos dá a ouvir, é magnífica. Muito obrigado por estes belos momentos de música.

Um Jeito Manso disse...

Obrigada, Fernando.

Já lá está a aldeaziña, para dar um toquezito a galego. A ver se vou continuando a história que se começou a formar na minha cabeça. Às vezes isso acontece mas depois vão-se metendo outras coisas e acaba por perder-se um bocado o sentido de a continuar.

Também gosto de Scriabine e de tão esquecido, eu própria acabo esquecendo-me dele.

Espero que esteja tudo bem consigo. A julgar pela oportunidade e tantas vezes raridade do que divulga n'A Matéria do Tempo' admito que esteja em grande forma.

Obrigada uma vez mais. Um bom domingo!