quinta-feira, agosto 13, 2015

Alô, alô! Há por aí algum Leitor que encaixe nesta entrevista inventada?


Escrevo às vezes sem motivo. Escrevo porque as minhas mãos gostam de soltar as palavras que durante o dia prendo dentro de mim. Escrevo porque gosto de imaginar histórias, enredos, tudo à toa. Escrevo porque o que me atrai são as zonas de não conforto. Escrevo porque gosto de ir atrás das palavras, de olhos fechados, curiosa de ver onde elas me vão levar.

Hoje, por exemplo, não me apetece escrever sobre o cinzentismo actual, apetece-me ir por aí como se fosse por um caminho desconhecido, sem cautelas, sem bússola, sem rumo. Hoje está a apetecer-me entrevistar um Leitor inventado.  






Conte-me algumas memórias de infância.

Eu e os meus irmãos brincávamos nas traseiras do prédio. Ou nas escadas. Havia outros miúdos no prédio e imaginávamos que éramos exércitos rivais ou uns polícias e outros ladrões. Outras vezes íamos para um jardim perto, as minhas irmãs iam também, e havia namoricos, coisas próprias da idade. Ou íamos ao cinema, irmãos, amigos. Ao domingo havia almoço a rigor. À tarde íamos, passeio fora, os pais para tomar café, os miúdos para comerem um bolo ou um gelado. Eu era danado, apanhei muitos piparotes. Não me afectavam, sentia que ficava bem visto perante os mais pequenos.


E memórias da adolescência.

Fazia desporto, lia, tinha amigos, mas era inquieto. Namorei mas não a sério, era irreflectido, talvez um bocado irresponsável. Ia muito ao cinema. Andava na borga. Andava na rua. Cada vez mais rebelde. Os tempos eram próprios para isso. Muitas perplexidades actuais nasceram aí. Não me lembro bem, foram tempos confusos. Muitas brigas familiares. À distância vejo que, na altura, me sentia um bocado solitário, diferente dos outros.




Fale agora de uma memória marcante de quando jovem adulto.

Uma caminhada nocturna em grupo, os sons da noite, o receio de nos perdermos, o prazer da aventura, os cheiros do mato, passar as mãos pelos arbustos e senti-los molhados, cobertos por uma neblina que não se conseguia ver, as estrelas. A alegria. Quase como se a vida inteira pudesse ser uma descoberta num campo escuro. Uma descoberta ou uma conquista. Lembro-me muito dessa noite.


Lembra-se de uma viagem em família de que queira falar?

Sim. Fomos uma vez a Espanha de carro e foi uma aventura tremenda, jogávamos às cartas no banco de trás, andávamos à pancada, fazíamos picnics. O meu pai conversava com a minha mãe ou ouviam música. Alheavam-se da batalha campal que grassava no banco de trás. De vez em quando a minha mãe dizia schiu e o meu pai atirava o braço à sorte e acertava com a mão em quem calhava. Desviávamo-nos e continuávamos na nossa. Não havia cintos de segurança, amontoávamo-nos como calhava para cabermos, brincávamos, a minha irmã inventava histórias, gostávamos de a ouvir. Depois de ter filhos, contava histórias aos filhos. Tenho saudades desses tempos. De Espanha não me lembro bem mas falávamos espanhol com um sotaque exagerado, no gozo. Mas lembro-me de passarmos por campos cheios de flores e ser quase de noite e de ter achado muito bonito - mas não ter dito nada. Geralmente não falava de coisas desse género embora gostasse de ler sobre elas.




Se pudesse escolher umas férias de sonho, hoje, como seriam?

Não sou muito de sonhos. Não sei bem. Talvez à Galiza, talvez visitar algumas vilas, talvez Muros, arranjar um sítio com uma varanda sobre a enseada e ficar lá a ler e a ver o mar e o céu. Depois ir a pé passear à beira mar, e procurar uma igreja ou uma livraria ou uma biblioteca. Não pensar em nada, apenas ver a paisagem, ler, comer, andar a pé pelos lugares, degustar a comida galega. Sentar-me no banco de trás de uma capela durante a missa, só pela toada, pela luz, pela paz.


Sozinho?

Preferia acompanhado. As paisagens são mais bonitas se puderem ser vistas a dois. Ou as igrejas, a talha dourada, as imagens, ou os livros nos alfarrabistas, ou a música. A dois é melhor. E na varanda, enquanto entardecesse, também se estaria melhor acompanhado.


De mãos dadas?

Talvez. Sim. Às vezes, sim. 



Um autor que levaria consigo.

Borges.


Lembra-se de alguma coisa de Borges?

Sim, de algumas. Pode ser esta, a Despedida:





Entre mi amor y yo han de levantarse 
trescientas noches como trescientas paredes 
y el mar será una magia entre nosotros.

No habrá sino recuerdos. 
Oh tardes merecidas por la pena, 
noches esperanzadas de mirarte, 
campos de mi camino, firmamento 
que estoy viendo y perdiendo... 
Definitiva como un mármol 
entristecerá tu ausencia otras tardes.



É um bocado triste, esse poema.

Não. É o que é. E a vida é feita de despedidas. Mas o tempo esbate tudo, ficam as recordações que muitas vezes são ficcionadas. Há muitas despedidas na vida de uma pessoa.


E encontros. 

Sim. Mas são raros. Que valham a pena são raros.



Gostei de falar consigo.

Eu também. 
.....


As fotografias são criações através do iPhone de Melissa Vincent e descobri-as, claro, no Bored Panda. Luciano Pavarotti interpreta Una furtiva lacrima (L'elisir d'amore de Gaetano Donizetti).

....

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quinta-feira. 
Com boas surpresas. Com bons encontros. Com instantes de verdadeira felicidade.

...

1 comentário:

Rosa Pinto disse...

A LUA FOI AO CINEMA

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava para ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!

Paulo Leminski