terça-feira, junho 09, 2015

José Sócrates recusa usar pulseira electrónica e, em carta, explica porquê : "A decisão é simples - ela tem que estar de acordo com o respeito que devo a mim próprio e com o respeito que devo aos cargos públicos que exerci. Nas situações mais difíceis há sempre uma escolha. A minha é esta: digo não". A dignidade de um homem.






Mas é que nem valia a pena eu pôr-me para aqui armada em isenta: quem por aqui passa sabe bem que não embarquei nunca na condenação primária de Sócrates, nem quando foi primeiro-ministro, nem quando deixou de o ser, nem agora que está na situação em que está. 

De forma geral e, em especial, no seu primeiro governo, achei José Sócrates um bom Primeiro-Ministro. E, mesmo no seu segundo governo, acho que grande parte do que se passou não teve origem na sua governação mas, sim, num ataque desenfreado por parte dos ditos mercados que, perante o cheiro a carniça e perante a docilidade imbecil dos órgãos europeus, arranjaram maneira de explorar até ao tutano as economias mais débeis e em situação política mais frágil. Entalado, entre, no exterior, um BCE e uma UE liderados por panhonhas que bem poderiam os abutres comer os olhos em vida aos seus membros que eles não eram capazes de mexer um dedo para os defender e, internamente, por uma direita bacoca liderada por um Relvas e por um Marco António Costa ávidos de poder, que manobraram um Passos pouco inteligente mas formatado para alcançar o poder a todo o custo, com um Portas sempre pronto para se encostar a quem lhe ofereça um lugar e com o aberrante apoio do PCP e do BE, Sócrates lutou como um desesperado querendo travar a força do mar com as suas próprias mãos. Soçobrou, claro. Como não? E, ao soçobrar, logo toda a espécie de palhaços, papagaios e gente que gosta de pisar e pontapear quem já está no chão, desataram a inventar motivos ridículos para explicar a situação.

É claro que fosse outra a situação do País e os sacrossantos mercados não arreganhariam o dente com tamanha desfaçatez. Mas, se Portugal tem uma economia débil e uma indústria esfrangalhada, muito se deve aos governos de Cavaco Silva que, a troco de mil réis de mel coado, aceitou que se abandonassem os campos, se destruísse a frota pesqueira e se fechassem fábricas, umas atrás de outras.

E, a seguir a Cavaco, muitos outros seguiram o mesmo estúpido caminho de abandonar a produção de bens transaccionáveis a troco de serviços para consumo local, coisa que enfraquece e fragiliza a economia e depaupera as finanças, levando à vulnerabilização do País.

A luta de Sócrates foi enorme para conseguir retomar a industrialização, para conseguir colocar Portugal na rota dos países exportadores. Mas inverter a rota de um País não se faz em 4 ou 5 anos e ele, para tentar travar o desemprego, a quebra de receitas e o afundamento que se avizinhava face a tamanhas ameaças, em especial no seu segundo governo, deitou mão a investimentos públicos, alguns pouco razoáveis - mas grande parte deles muito justificáveis, por serem investimentos de proximidade como foi o caso do Parque Escolar ou dos programas Polis que estimulavam a economia local. 




Da mesma forma que avalio um livro pela qualidade do que leio e não pela maneira de ser do autor (aliás, sei lá eu qual a maneira de ser da maioria dos autores), também neste aspecto avalio a governação sem querer saber da maneira de ser do governante. Se Sócrates é irascível, se gosta de vestir bons fatos, se gostava de aparecer na televisão no seu melhor ângulo, se é impaciente, se perdeu a cabeça com a Moura Guedes, etc, sempre foi para o lado em que dormi melhor.

Vieram depois a lume alguns assuntos mais incómodos: que a atribuição da aprovação de algumas cadeiras da licenciatura teria sido feita a um domingo, coisas assim, e que o professor era conhecido dele. E isso maçou-me um bocado porque achei que esse diploma adicional não valia o aligeiramento no rigor. Também umas assinaturas de projectos manhosos me chatearam um bocado. Mas nada disso invalida a opinião que tenho dele enquanto governante. Não exijo que um governante seja um monge budista, paciente, que não levante a voz, que não ligue à roupa que veste, que nunca tenha cometido nenhum pecadilho no presente ou passado, que seja um santo em vida, que tenha sido exemplar em cada passo que deu desde pequenino. Não exijo. Ponto. Exijo, sim, que seja um bom governante, que, enquanto governe, ponha os interesses do País acima dos seus próprios interesses ou dos interesses do seu partido, que lute como um leão para defender o desenvolvimento e a independência do seu País e a qualidade de vida e a dignidade dos seus concidadãos. E sobre isso não tive dúvidas a respeito de Sócrates.

Apareceu agora esta suspeita de corrupção ou lavagem de dinheiro e o que desejo é que sejam suspeitas infundadas. Ficaria chateada à brava, furiosa da vida com ele se viesse a provar-se que as suspeitas são fundadas.

Mas o que sei é que não sei. Não faço ideia de nada do que se diz. Do que tenho lido, tudo se baseia na suspeição de que o que está em nome do amigo, Carlos Santos Silva, é de facto dele, Sócrates. Ora, está por provar que o seja, e a ser, está por provar que o tenha obtido através de corrupção.

Há também a história das quantidades brutais de dinheiro que o amigo lhe emprestava e que, supostamente, seria dinheiro dele. Também não faço ideia. Mas uma coisa me faz espécie e disso nunca ouvi falar: a ser isso verdade, o que é que ele fazia a tanto dinheiro? Se recebeu da mãe não sei quanto, se pediu um empréstimo à CGD e se recebia milhares e milhares das mãos do amigo, para onde foi tanto dinheiro? É que a vida dele era conhecida. Vivia entre a casa e a universidade, e vinha a Portugal uma vez por semana para o comentário na RTP. Não tenho ideia de o ver em festas regadas a champanhe em iates povoados por modelos  de leste, não tenho ideia de saber de herdades cheias de cavalos lusitanos, não tenho ideia de o saber a comprar obras de arte milionárias em leilões, semana sim, semana sim. Enterrava o dinheiro num cantinho de um jardim público? Tinha um colchão cheio de notas? Só se for. Portanto, em relação a tanta treta que o Correio da Manhã tem para aí posto na ventoinha acho que é preciso ir com calma. Não vou atrás de balelas. Só me pronuncio perante factos concretos, provados. 




E, portanto, estou como o António Costa: se há suspeitas, que se investigue; se há provas, que se leve a julgamento; se há culpa que se condene. É o tempo da Justiça funcionar. Que funcione e que funcione bem.

Mas, enquanto nada se provar, José Sócrates -- tal como eu, tal como você, Caro Leitor, tal como todos os cidadãos -- é inocente até prova em contrário. 


E, portanto, é nessa condição que deve ser tratado. Com respeito.

Foi preciso que pessoas como Sócrates ou como todos os outros com voz pública fossem presos para que saibamos a forma indigna como os presos são tratados, mesmo quando se trata de prisão preventiva, mesmo quando se duvida da validade dos argumentos para essa mesma prisão preventiva. Tem-me custado imenso saber a forma como as pessoas são despojadas de tudo, tratadas como uns miseráveis, dependentes de regras tantas vezes aplicadas de forma prepotente e absurda, menorizados, humilhados. Custa-me isso em relação a Sócrates ou a qualquer preso, conhecido ou não.

Uma sociedade só é uma sociedade livre, adulta, digna, quando sabe respeitar todos os cidadãos, sejam eles uns santos ou uns pecadores, estejam eles a expiar uma culpa ou num compasso de espera enquanto a investigação decorre. Todas as pessoas devem merecer o respeito essencial à valorização e à dignidade do ser humano, seja qual for a sua condição.

Dito isto, tenho a dizer que compreendo perfeitamente a mais recente tomada de posição de José Sócrates: a de que não aceita usar pulseira electrónica. A sua declaração (que aqui pode ser vista) atesta aquilo que ele sempre foi: um lutador.


Claro que, se fosse eu que me visse numa situação como aquela que Sócrates atravessa (sentindo-se inocente e injustamente posto em cativeiro), caranguejo como sou, sempre a precisar de estar perto dos meus meninos, sempre a querer senti-los debaixo das minhas asas, sempre a precisar de receber carinho por parte daqueles que me são queridos, se me fosse dada a possibilidade de ir para casa -- apesar de me apetecer mandar bugiar os responsáveis pela ordem de prisão, já para não dizer que teria muita vontade de os mandar meter a pulseirinha num certo sítio (and pardon my french) -- iria logo, logo. Iria para o conforto da minha casa, para a companhia dos meus livros, para perto dos meus pais (e imagino o que Sócrates deve sofrer pelo sofrimento que a sua mãe tem passado na vida), para perto dos meus meninos (e o que Sócrates deve sofrer pelo sofrimento que aqueles filhos dele têm passado), para perto de quem me abraça e acalenta.

Mas Sócrates, lutador e com uma determinação quase ilimitada, é mais forte do que eu seria e, por isso, disse que "O critério de decisão é simples - ela tem que estar de acordo com o respeito que devo a mim próprio e com o respeito que devo aos cargos públicos que exerci. Nas situações mais difíceis há sempre uma escolha. A minha é esta: digo não."


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Fotografia de Alexander Yakovlev

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As três primeiras fotografias são de Tang Yuhong e mostram um lugar abandonado na China em que a natureza está a devorar o que, em tempos, foi uma aldeia habitada. Por algum motivo me lembrei de as usar a propósito do assunto de que falei.

A música é de Tchaikovsky: As Estações - Junho 

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Se me permitem: caso queiram desanuviar e ver o Jesus da Porta dos Fundos a fazer milagres que o da Segunda Circular invejaria, é descerem, por favor, até ao post seguinte.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira. 
Boa sorte e saúde. 

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5 comentários:

ECD disse...

Excelente este post de UMJ. Como está na moda dizer-se "gostaria de ter escrito este post",

Tiro o chapéu a José Sócrates por esta atitude. Para além de tudo o que se prende com a honra e a dignidade pessoal - o que já é muito, mesmo muito -, abriu um espaço para o futuro. O século XX conta com vários casos de políticos que, depois de terem sido atirados às feras, deram a volta por cima!

Anónimo disse...

Imaginar que, depois destas fortes tomadas de posição, afinal, o Sócrates é mesmo culpado é dos diabos... ele diz que não e, até prova em contrário, acredito.

O sistema judicial é miserável. Veja-se este outro exemplo. Sabe o caso dos tratamentos para a hepatite C? Pois bem: cerca de 3500 dos 7000 doentes à espera já receberam o tratamento, mas em Lisboa (Hospitais de Lisboa - Capuchos, S. José, etc. - e Santa Maria) ainda ninguém recebeu. Suponho que os 3500 que faltam sejam praticamente todos da capital, onde vive a maioria dos doentes. E porque é que não receberam ainda? Porque se está à espera de uma decisão do Tribunal de Contas que desbloqueie a sua entrega aos doentes. Por que é que a imprensa não fala disto, não sei, o tema já deve ter passado de moda. Ora bem, a camara municipal contrata uma empresa de construção para construir uma infraestrutura qualquer, sem concurso público apesar de a lei o exigir, numa localização em que a construção é de duvidosa legalidade e, manda a lei, o Tribunal de Contas tem de conceder o visto prévio para a obra poder ser realizada. O objetivo do visto prévio é evitar que se consumem atos administrativos ilegais, evitando-se problemas nas contas e litígios que surgiriam, sem dúvida, no futuro. Mas a lei não pode ser tão rígida, tão inflexível que impeça os empreiteiros de começar logo a fazer a obra enquanto se espera pela decisão do tribunal, pois não? É claro que não, haja flexibilidade. Então permite-se a execução da obra enquanto se espera pela decisão, se o visto vier a ser recusado, não há problema, a Câmara indemniza a empresa de construção no valor dos milhões já gastos na obra. Tudo muito bem. Desde que o privado não tenha prejuízo está tudo bem, o povo paga. Agora permitir a execução dos atos administrativos que aprovam a entrega de um tratamento para doentes que precisam dele para viver, entregando-se efetivamente os tratamentos, independentemente de correr processo no TC, isso é que não! Ainda estou para perceber, o que é que as pessoas têm a ver com as contas dos hospitais? Isso é assunto interno, o medicamento foi aprovado e deve ser logo entregue. Se as contas dos hospitais nos interessam é numa perspetiva global, de ponderação de racionalidade de todo o SNS, mas nunca justificando o adiamento de certos tratamentos para certas pessoas. Onde está a hierarquia de valores, a justiça do sistema? Como se permite a execução antecipada de uma obra enquanto corre processo no Tribunal de Contas - porque os interesses económicos do empreiteiro, e talvez também da câmara (ou de algumas pessoas que trabalham na câmara...), impõem que não haja suspensão da obra (era o que faltava ficar á espera!) - mas já não se permite a execução do ato que aprova o tratamento ao doente? Este já pode ficar à espera? No primeiro caso, estavam em causa MEROS interesses económicos, por muitos milhões que fossem, aqui estamos perante os direitos à vida e à saúde. Serei eu que estou a ver mal? É que enquanto não se trata esta doença, vão aparecendo os cancros e as cirroses. E a cirrose, por exemplo, não tem cura, quem a tem fica sempre com ela. São muitos anos de vida que se perdem por causa de uma espera que já leva mais de dois anos. Mas o empreiteiro é que não pode esperar.

Uma ótima 3ª feira,
JV

Anónimo disse...

Minha Cara Senhora,
Para uma pessoa inteligente e racional, com superior capacidade de análise, os seu faciosismo e argumentação neste caso são completamente ridículos.
Independentemente do trabalho do Eng. José Sócrates como Primeiro-Ministro, que na minha muito modesta opinião foi péssimo, o que se está aqui a tratar são de crimes de corrupção (etc), não se tratando de uma avaliação dos mandatos. Essa avaliação pelo povo já foi feita nas eleições que perdeu. Tentar misturar os dois assuntos é pura demagogia e facciosismo bacoco.
Independentemente da presunção de inocência, que todos temos direito e sobre o qual não vou obviamente comentar, não só podemos como devemos ajuizar e avaliar friamente e racionalmente os argumentos que constam das declarações já proferidas pelo Eng. José Sócrates.
Nestas declarações a estratégia de defesa pública, (porque a outra defesa cabe aos advogados nos respectivos tribunais) do Eng. José Sócrates assenta apenas na descredibilização da justiça e das instituições de um estado de Direito, o que, mais uma vez na minha modesta opinião, não é de todo compatível com um homem que foi Primeiro-Ministro de Portugal e se diz um democrata.
Muito mal vai o País quem achar que estas declarações fazem algum sentido….
Cumprimentos,
JB

Anónimo disse...

Muito rapidamente, deixo aqui um comentário ao Post. Relativamente ao papel de Sócrates como PM não me vou alongar. Embora Sócrates politicamente não fosse propriamente flor que se cheirasse, esteve vários furos acima desta canalha actual, que em 4 anos destruiu o País, endividou-o ainda mais, empobreceu-o, desempregou-o, “exportou” licenciados, arrasou com o Ensino, a Saúde, roubou aos pensionistas e reformados o seu pecúlio de anos a aforrar para cometer o delito de com esse dinheiro comprar dívida pública, desacreditou o Estado, foi magnânimo com a corrupção, com a Banca que (juntamente com o sector privado imobiliário – 220% do PIB era o total dessa dívida privada, convém não esquecer!) esteve na origem da vinda da Troika, cedeu milhões a privados (escolas, universidades, hospitais, PPPs, consultadorias, escritórios de advogados, negócios sem concursos públicos, etc), elevou o tráfico de influências à estratosfera, etc. Estamos pois conversados quanto ás comparações entre o PS de Sócrates e estas avantesmas. Não esquecendo o papel cobarde e titubeante de Teixeira dos Santos, um homem do sector privado e da actuação do PR, com o conluio do Governador do BdP. Nunca fui fã de Sócrates, mas, repito, estas imundas criaturas são bem piores. Quanto à sua situação e decisão que tomou ao recusar a pulseira eletrónica estou inteiramente de acordo com ele. No lugar dele teria agido de igual forma. Nem hesitaria um segundo! Mas, o que é grave é a Justiça continuar a mantê-lo como suspeito e até agora não ter conseguido tomar uma decisão de o constituir arguido, enfim, formalizar uma culpa. Não creio que seja Sócrates a tentar descredibilizar a Justiça. Ela própria se descredibiliza pela forma como actua e se rege. O que o advogado Godinho de Matos diz sobre este caso (e aqui tanto pode ser com Sócrates ou qualquer um de nós), deve fazer-nos reflectir, Cito: “…a manutenção da prisão preventiva, que JS arrisca, é de alto risco, pois, caso o processo chegue a julgamento, com o ex-PM preso, os juízes do colectivo poderão cair na tentação de o condenar pelo menos no tempo de prisão que já cumpriu preventivamente, para evitar que venha a pedir uma indemnização ao Estado, por danos morais, caso seja absolvido”. Ou seja, isto é um reconhecimento taxativo e explícito de que a Justiça (magistrados e tribunais) não são isentos e não julgam ou apreciam com os tais olhos vendados, mas com preconceitos corporativos, ou até políticos e outros. É grave. Muito grave. Exigia-se que alguém, dessa Justiça, viesse desde já a terreiro desmentir isto. O problema é que tal libelo é verdade e assim ninguém o desmistifica. Nem estão tão pouco interessados (o que é ainda mais tenebroso). Sócrates pode agora, por decisão judicial, ser mandado para prisão domiciliária. Mas, suspeito que tal não sucederá. E depois há o momento político desta decisão. Porque não foi tomada antes? Resta saber se uma acusação e consequente constituição de arguido venha a acontecer…”por mera coincidência, claro”, no período eleitoral. Nada que me surpreendesse! Uma nota final: a Legislação Penal que temos hoje é produto dos governos PSD, PS, CDS. É bom lembrar. Sócrates é hoje vítima em boa parte daquilo que o seu governo também fez aprovar. Com a colaboração de alguns escritórios de advogados ligados ao PS.
P.Rufino

Anónimo disse...


As instituições e o espaço público andam cheios de novos inquisidores que descarregam sobre os 'acusados' o ónus da prova a sua inocência.

Exactamente como no tempo da Santa Inquisição e da infame Probatio diabolica.

Tempos perigosos...

Cumprimentos
jar