segunda-feira, maio 04, 2015

Clarice Lispector e Pablo Neruda (e, também, Gabriel García Márquez) - ou quando os espíritos brilhantes se encontram. Um todo manifestado com uma espécie de sensualidade casta e pagã: o amor co­mo uma vocação do homem e a poesia co­mo sua tarefa


No post abaixo falei da cada vez mais incrível actuação de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI - tanto faz para agradar a gregos e troianos que só falta mesmo é aparecer a fazer bolos em directo (e sobre outras coisas que ainda espero vê-lo a fazer, falo a seguir) - e, mais abaixo ainda, avanço com uma sugestão para tornar mais animadas as reuniões de trabalho e os comentários políticos e económicos na televisão.


de Urbexography (in Bored Panda)


Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é completamente outra. Cansam-me tanto, mas tanto, os Marcelos desta vida, e os pseudo-jornalistas, e os comentadores avençados que introduzem uma enervante entropia na sociedade, e as cacafonias que se repetem por alguma blogosfera fora, e os programas de televisão completamente desprovidos de qualidade - que, de vez em quando, me apetece voltar-me para outro mundo. Outro mundo mesmo, gente que pensa e fala de outras coisas, de outra maneira, que valoriza  outro tipo de ideias, que parece que faz renascer o mundo quando fala. E que eu esteja agora, aqui, a referir-me a pessoas que fisicamente já não estão entre nós como se o estivessem não é desatenção, é  deliberado.

Vou transcrever quase na íntegra um artigo da revista Bula.




CLARICE LISPECTOR ENTREVISTA PABLO NERUDA



Numa manhã de abril de 1969, a escritora brasileira entrevistou o poeta chileno, que, à época, era considerado um dos mais importantes nomes da poesia em língua espanhola.


Cheguei à porta do edifício de apartamentos onde mora Rubem Braga e onde Pablo Neruda e sua esposa Matilde se hospedavam — cheguei à porta exatamente quando o carro parava e retiravam a grande bagagem dos visitantes. O que fez Rubem dizer: “É grande a bagagem literária do poeta”. Ao que o poeta retrucou: “Minha bagagem literária deve pesar uns dois ou três quilos”.

Neruda é extremamente simpático, sobretudo quando usa o seu boné (“tenho poucos cabelos, mas muitos bonés”, disse). Não brinca porém em serviço: disse-me que se me desse a entrevista naquela noite mesma só responderia a três perguntas, mas se no dia seguinte de manhã eu quisesse falar com ele, responderia a maior número. E pediu para ver as perguntas que eu iria fazer. Inteiramente sem confiança em mim mesma, dei-lhe a página onde anotara as perguntas, esperando Deus sabe o quê. Mas o quê foi um conforto. Disse-me que eram muito boas e que me esperaria no dia seguinte. Saí com alívio no coração porque estava adiada a minha timidez em fazer perguntas. Mas sou uma tímida ousada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me trazido também alguma recompensa. Quem sofre de timidez ousada entenderá o que quero dizer.

(...)

No dia seguinte de manhã, fui vê-lo. Já havia respondido às minhas perguntas, infelizmente: pois, a partir de uma resposta, é sempre ou quase sempre provocada outra pergunta, às vezes aquela a que se queria chegar. As respostas eram sucintas. Tão frustrador receber resposta curta a uma pergunta longa. Contei-lhe sobre a minha timidez em pedir entrevistas, ao que ele respondeu: “Que tolice”. Perguntei-lhe de qual de seus livros ele mais gostava e por quê. Respondeu-me: “Tu sabes bem que tudo o que fazemos nos agrada porque somos nós — tu e eu — que o fizemos”. A entrevista foi concedida em 19 de abril de 1969 e publicada no livro “De Corpo Inteiro”, Editora Rocco, em 1999.


Você se considera mais um poeta chileno ou da América Latina?

Poeta local do Chile, provinciano da América Latina.

Escrever melhora a angústia de viver?

Sim, naturalmente. Tra­ba­lhar em teu ofício, se amas teu o­fí­cio, é celestial. Senão é infernal.

Quem é Deus?

Todos algumas vezes. Nada, sempre.

Como é que você descreve um ser humano o mais completo possível?

Político, poético. Físico.

Como é uma mulher bonita para você?

Feita de muitas mulheres.

Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste exato momento?

Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez anos?

Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile?

Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há algum tempo es­crevi em um poema: Se tivesse que nascer mil vezes. Ali quero nascer. Se tivesse que morrer mil vezes. Ali quero morrer…

Qual foi a maior alegria que teve pelo fato de escrever?

Ler minha poesia e ser ouvido em lugares desolados: no deserto aos mineiros do norte do Chile, no Estreito de Ma­ga­lhães aos tosquiadores de ovelha, num galpão com cheiro de lã suja, suor e solidão.

Em você o que precede a criação, é a angústia ou um estado de graça?

Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me creia in­sensível.

Diga alguma coisa que me surpreenda.

748. (E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma harmonia de números)

Que acha da literatura engajada?

Toda literatura é engajada.

Qual de seus livros você mais gosta?

O próximo.

A que você atribui o fato de que os seus leitores acham você o “vulcão da América Latina”?

Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.

Como se processa em você a criação?

Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha receita.

A critica constrói?

Para os outros, não para o criador.

Você já fez algum poema de encomenda? Se não o fez faça agora, mesmo que seja bem curto.

Muitos. São os melhores. Este é um poema.

Qual é a coisa mais importante no mundo?

Tratar para que o mundo seja digno para todas as vidas humanas, não só para algumas.

O que é que você mais deseja para você mesmo como indivíduo?

Depende da hora do dia.

O que é amor? Qualquer tipo de amor.

A melhor definição seria: o amor é o amor.

Você já sofreu muito por amor?

Estou disposto a sofrer mais.

(...)

E assim terminou a entrevista com Pablo Neruda. An­tes falasse ele mais. Eu poderia prolongá-la quase que indefinidamente. Mas era a primeira entrevista que ele dava no dia seguinte à sua chegada, e sei quanto uma entrevista pode ser cansativa. Esponta­nea­mente, deu-me um livro, “Cem Sonetos de Amor”. E depois de meu no­me, na dedicatória, escreveu: “De seu amigo Pa­blo”. Eu também sinto que ele poderia se tornar meu amigo, se as circunstâncias facilitassem. Na contracapa do livro diz: “Um todo manifestado com uma espécie de sensualidade casta e pagã: o amor co­mo uma vocação do homem e a poesia co­mo sua tarefa”. Eis um retrato de corpo inteiro de Pablo Neruda nestas últimas frases.



de williampatino.com


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Não resisto ainda a aqui partilhar convosco, e não é a primeira vez que o faço, dois vídeos com uma fantástica entrevista a Clarice Lispector e com algumas informações e opiniões sobre ela.









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Deixem ainda que junte uma outra entrevista: Gabriel García Márquez y Pablo Neruda






Outro comprimento de onda. Outro mundo. Outra gente.

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Permitam que alerte: o que se segue não tem nada a ver: a qualidade da escrita e dos temas não tem nem comparação com o que aqui se mostrou.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já esta segunda-feira.

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2 comentários:

Rosa Pinto disse...

Bom dia. Lindo post. Aqui uma timida ousada. Adorei . Adorei. E como sou timida não digo mais. Obrigada.

Mar Arável disse...

Boa partilha

Bj