domingo, fevereiro 15, 2015

Eu, perdida no meio de florestas misteriosas


Chinese Hemlock Trail, Taipingshan, Taiwan - Justin Jones




Tenho pele clara, usava na altura cabelos bem compridos, roupa colorida e descontraída. Na cantina onde costumava estar de tarde na conversa ou a fazer que estudava ou a almoçar e, por vezes, a jantar, havia um grupo de rapazes absolutamente negros, muito altos, esculturais, escandalosamente esculturais. Não me lembro de onde eram. Ou melhor, agora que penso nisso, acho que eram de Angola, tenho ideia de uma vez ler o nome de um ministro e ficar na dúvida se seria um deles. Dois deles andavam loucos por mim. Pensava que isso talvez se devesse a eu ser tão diferente deles, tão clara, e por não ser como grande parte das outras estudantes, sempre tão enfronhadas nos livros, sem darem mostras de serem capazes de rir. E eu gostava de saber da terra deles, sempre gostei de conversar, de fazer perguntas, de conhecer os outros. Sou muito curiosa, talvez até intensa na minha curiosidade.

Acho que já aqui contei que um deles, certamente achando que me estava a fazer um agrado especial, me oferecia iogurtes. De facto, eu gosto muito de iogurte, poderia alimentar-me a iogurtes.
Por essa altura descobri a alimentação crudívora e frequentemente as minhas refeições eram iogurte, frutos secos, mel. E frequentemente ainda são. Hoje o meu jantar foi mozzarella fresca com mel e um dióspiro. O meu pequeno almoço é sempre uma peça de fruta e um iogurte com flocos de aveia e frutos secos. 
Mas, portanto, dizia eu que talvez por me ver comer tantas vezes iogurte, ele devia achar que para mim iogurtes eram uma coisa muito especial. E, então, eu via aquele belo apolo negro a atravessar o enorme edifício para, derretido em sorrisos, me vir oferecer um iogurte. Como se me oferecesse flores. Aprimorava-se na escolha, trazia-me iogurtes sempre de sabores diferentes. Eu ficava com vontade de rir mas sentia-o tão feliz e sempre tão expectante de ver se eu gostava, que me continha e, apesar de interiormente desconcertada, agradecia. E ele ficava feliz por eu ter apreciada o delicado presente.


Misty Forest - SEO


Nessa altura eu tinha um namorado que estudava longe de mim e que já estava a dar aulas e, por isso, não conseguia muito tempo livre para estarmos juntos. Durante a semana só estávamos juntos à quarta-feira que era quando ele não tinha aulas quer como aluno quer como professor. Depois estávamos juntos ao sábado e ao domingo. Esse meu namorado gostava demais de mim e em mim tudo era, para ele, motivo de adoração. Fez vários poemas sobre o meu cabelo. E dizia que gostava que eu nunca cortasse o meu cabelo. Eu contrariava-o, que um dia haveria de cortar o cabelo e que esperava que isso não afectasse o que ele sentia por mim, que ele havia de gostar de mim pelo que eu era e não pelas minhas mãos, pelo meu cabelo, pela minha boca. E ele dizia que isso era parte de mim e que, por isso, era natural que gostasse de tudo em mim. Mas eu não ia nessa conversa, irritava-me que ele se enlevasse tanto com essas partes do meu corpo que eu achava acessórias.


Itália - Leonid Litvac


Mas depois mudei de namorado e mudei muita coisa em mim, tornei-me ainda mais descontraída, dei mais corpo a todas as minhas vontades, aprendi a viver na mais absoluta liberdade. 

Esse meu novo namorado um dia disse que gostaria de me ver de cabelo curto. Comprovei que ele era mesmo o oposto do outro. Nunca na vida eu tinha usado cabelo curto. Nunca na vida me tinha sequer passado pela cabeça cortar o cabelo (quando dizia ao outro que um dia o haveria de cortar era apenas para pôr o assunto em equação). Foi pois com uma emoção estranha que resolvi fazer-lhe a vontade: era, para mim, mais um dos vários gestos iniciáticos que inaugurava com ele, era mostrar-lhe que por ele eu abdicava da minha farta cabeleira, era, perante mim, sentir que era dona e senhora de mim e que era capaz de gestos antes inesperados - mas, ao mesmo tempo, tinha medo de não gostar de me ver, de deixar de me sentir eu, de sentir a falta daquele peso macio que me cobria as costas. 

A minha mãe estranhou a decisão, disse que era pena, um cabelo tão bonito. Mas viu que a decisão estava tomada e então recomendou que fosse ao salão onde ela ia, a uma cabeleireira que lá havia e a quem ela já tinha visto fazer cortes arrojados. Fui. No final, o meu cabelo cobria o chão em volta da cadeira e eu vi-me outra no espelho. Completamente outra. Mas gostei do que vi. Senti que tinha aberto uma porta e que essa porta abria para um mundo imenso.

A minha mãe gostou, achou que me ficava bem, que se via melhor a cara. O meu pai encolheu os ombros, achava que era uma pena que tivesse cortado o cabelo mas gostava de me ver assim. Mas não percebia porque tinha eu operado em mim uma mudança tão radical. Na altura ele ainda não sabia que eu tinha trocado de namorado, só a minha mãe é que sabia mas tinha-me pedido que não contasse ao meu pai porque achava que ele ficaria chocado se soubesse que eu tinha trocado directamente um pelo outro. Não me pareceu tal necessário mas acedi ao pedido. 

O meu namorado gostou muito, achou que eu estava bem mais bonita. Eu sentia a nuca nua mas sabia-me isso bem, era como se estivesse ainda mais disponível para os beijos dele. 


Floresta Otzarreta, País Basco -  Javier de la Torre


No entanto, quando entrei na cantina, os meus dois admiradores negros ficaram tristes, tristes, não compreendiam como tinha eu cometido um tal crime. Um deles olhava para mim e afastava a cabeça, abanando-a, como se não aceitasse e depois voltava a olhar e a fazer o mesmo, como que querendo certificar-se. O outro verbalizou, porquê!? mas porquê!?

Ficaram zangados. Durante algum tempo não recebi iogurtes de presente.

Um dos meus colegas de turma gostava de fotografar e pedia-me que o deixasse fotografar-me. Eram fotografias a preto e branco que ele revelava em casa. Eu não me importava e abstraía-me dele, aliás tenho ideia que me esquecia que ele andava à minha volta fotografando-me. Vejo as fotografias dessa altura, na cantina, na mesa onde eu gostava de me sentar, e ele apanhava-me com o sol rodando à minha volta, ora por trás, eu banhada de luz, ou um ângulo luminoso desenhado na cara, ou eu quase na penumbra e a luz incidindo no papel que eu lia. Há umas fotografias em que tenho um vestido de alças, decotado. Como as fotografias são a preto e branco, apenas se percebe que é num tecido claro aos quadradinhos mas eu lembro-me que eram quadradinhos azuis claros e brancos e que ficavam bem na pele que, então, estava bronzeada.


North Greenwich, Inglaterra - Andy Linden


Numa outra vez em que ele queria fotografar-me, eu pedi que me fotografasse com o meu namorado no Jardim Botânico. Ele achou isso meio estranho, não era o seu género, era mais para o artístico, coisa quase experimental, não ir para um jardim fotografar namorados. Mas lá aceitou. O meu namorado não queria, não era dessas coisas, foi uma luta para o convencer. Mas acabou por me fazer a vontade. Estão lindas essas fotografias. Sempre gostei muito de ir para o Jardim Botânico, gosto de árvores como nem dá para explicar, gosto de me deitar na erva junto ao tronco das árvores, olhando a copa, olhando o céu através da sua ramagem.

Há lá um lago e há um banco onde nos sentávamos, abraçados, conversando, beijando-nos, e a sombra daquelas enormes árvores fazia-me sentir eterna, feliz, capaz de viver a vida inteira assim, cheia de amor, rodeada de verde, de luz e de sombras, acolhendo-me no seio do arvoredo sempre que fizesse mais frio ou que chovesse. A luz coada, o verde, a penumbra ao cair do dia, o canto dos pássaros, a terra e o seu cheiro feminino, tudo como se fosse parte de mim e eu parte da natureza.


Hallerbos, Bélgica - Kilian Schönberger


Não sei que ideia tinha em mente quando comecei a escrever isto. Talvez toda esta conversa tenha sido para chegar às árvores ou à música que se desprende delas ou simplesmente para aqui espalhar palavras como folhas pelo chão, ou simplesmente para estar mais perto de vós.

Se pudesse escrever aqui à mão, mostrar-vos a minha caligrafia, talvez vos mostrasse ainda um pouco mais de mim para que me pudessem conhecer ainda melhor, para que pudessem dizer quem sou.

Guardo ainda a mesma dúvida: as minhas mãos, o meu cabelo, a minha boca, o meu olhar, a minha voz, o meu nome são importantes para me identificarem? Ou a minha essência, o que eu de verdade sou, é outra coisa? E essa outra coisa, que talvez seja aquilo a que se chama alma, transparece nas minhas palavras? Mesmo quando falo à toa, ao correr da pena, estou a deixar que se perceba quem eu de verdade sou? Não sei.


White Carpattians -  Janek Sedlar

Não sei mesmo.

Mas vou caminhando, procurando, procurando, e esperando ser surpreendida, desejando que a intensidade com que me entrego às descobertas que a vida me vai oferecendo nunca se esbata, degustando a paixão de viver, agradecendo a beleza que se desprende dos inesperados recantos que se desvendam nos caminhos que vou percorrendo.


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A música lá em cima é um trecho do Concerto No. 5 para Piano de Beethoven

As fotografias de florestas misteriosas provêm daqui.

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Bem. Para mudar de assunto, deslizem por favor até ao post seguinte no qual se fala de sexo sem tabus, de pornografia caseira, de gostos inconfessáveis. Não é só o Expresso ou a Sic que relatam aquilo de que os casais gostam: sou também eu, levando-vos através da Porta dos Fundos.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo.


4 comentários:

Anónimo disse...

Olá, UJM!

Sempre gostei muitíssimo mais de cabelos curtos. É muito difícil encontrar cabelos longos bonitos. Quando o são, admito que é uma coisa de admirar, mas há muito poucos. A maioria das mulheres tem cabelos feios, e longos ficam simplesmente detestáveis. Cabelo curto fica bem a todas e há tantos cortes, tantas brincadeiras que se podem fazer.

Nos últimos tempos, tenho estado de volta aos russos. Há um especialmente encantador: Lermontov.

The Sail

A far sail shimmers, white and lonely,
Through the blue haze above the foam.
What does it seek in foreign harbours?
What has it left behind at home?

The billows romp, and the wind whistles.
The rigging swings, and the tall mast creaks.
Alas, it is not joy, he flees from,
Nor is it happiness he seeks.

Below, the seas like blue light flowing,
Above, the sun’s gold streams increase,
But it is storm the rebel asks for,
As though in storms were peace.

Esta é a minha tradução em inglês favorita. Tenho em português os poemas do Lermontov traduzidos pelo Jorge de Sena, mas é péssimo. Não suporto esse tipo: tenho outro livro dele sobre a poesia lírica do Camões e acho que ele não sabia escrever.

Bom domingo!
JV

Um Jeito Manso disse...

Brava JV!

Que bem ler o que escreve. Belo poema. Não conheço esse poeta mas o poema é uma beleza.

E isso é forma de falar de Jorge de Sena...? Que heresia! Mas vindas de si essas palavras até têm graça. Brava JV!

Espero que os estudos estejam a ir bem e que sempre assim se mantenha, intrépida e fogosa!

Venha mais vezes que a sua escrita anima!

Anónimo disse...

A primeira foto até podia ser algures no Parque Natural Sintra-Cascais, pela semelhança. Esse seu jantar de ontem, minha cara UJM, “arrepiou-me”! Mozzarella com mel e 1 dióspiro! Por mim, contrario (e até me divirto com isso) as supostas regras dos nutricionistas e médicos, pois não dou qualquer relevância ao pequeno-almoço, limito-me, durante a semana de trabalho, a um simples copo de “leite” de aveia, ou de arroz, ou de avelã (coisa que fui buscar a meus filhos) e nada mais, só abrindo uma excepção, para juntar 2 pequenas torradas, Sábado e Domingo de manhã. O almoço, ignoro-o. Sou incapaz de trabalhar, quer a começar pela manhã, quer depois pela tarde, com o a barriga cheia. Ao almoço, fico-me por uma maçã, ou tangerina, ou outro fruto, água e já está. Depois, ou dou uma volta pela Baixa, a ver alguns livros, ou fico a trabalhar. Excepcionalmente, sou capaz de almoçar com uns amigos, mas já sei que logo após o rendimento não será o mesmo. O meu “carburador” dispensa alimento – a não ser, então sim, ao jantar, a Refeição Eleita. Aí sim, sigo todo um ritual. Chego a casa, tiro a gravata, passeio os cães (antes, beijo a doce criatura que já lá chegou antes de mim) e depois segue-se um pequeno aperitivo, queijo, ou algum enchido, ou patê, umas tostas e uma taça de vinho branco. Vou mudar de roupa e depois de ajudar no que for necessário (pôr a mesa, etc), visto à semana, normalmente, cozinha a minha mulher, eu ocupo-me dessa tarefa todos os fins de semana, e depois jantamos. Entetanto, já desliguei a porra do Tlm, ficando ligado ao mundo pelo fixo, o único telf porque tenho respeito. O jantar, jamais em frente a um televisor. E não atendemos chamadas durante a refeição. Nunca. O jantar é a Refeição de eleição. Sopa ou entrada (adoro uma boa sopa), carne, ou peixe e fruta, dispenso sobremesas, raramente como e sofro de cada vez que vou a casa de alguém e me oferecem isso (minha mulher aprecia). Refeição essa sempre acompanhada de vinho, que nunca deixo de ter em casa e jamais dispenso numa refeição, sobretudo na da Nobre Hora do Jantar. Ao fim de semana, concedemos nuns “almoços”, de saladas variadas, com queijos, por vezes um bom presunto e vinho branco. Leve, sempre. Só à noite, conforto ”o malvado” (estômago). Com todo cuidado, consideração e respeito. Aí, já sou eu o “Chef”. E assim mantenho esta “dieta” há cerca de 30 anos. Nunca engordei, não tive problemas de saúde por causa dela. Um “susto” que tive, deveu-se a outras causas. Mantenho pois esta “dieta” e durmo que nem um justo! Janto, depois dou um bom passeio noturno com os cães (antes levantei a mesa e dou, sempre que me calha a responsabilidade, um jeito na cozinha, arrumando-a), volto e vou ler, ou ver uma porra qualquer na TV, se calhar, ler nunca dispenso e “boto-me a dormir”, de seguida, que nem um justo. Agora com esse seu jantar, yogurte (!), Dióspiro (!!) e mel (!!!), dava-me um ataque de choro convulsivo! E confessava coisas inconfessáveis! Tenha uma bela noite e bom Carnaval!
P.Rufino


Um Jeito Manso disse...

P. Rufino,

Já me fartei de rir com a sua reacção ao meu jantarinho!

Estava cheia do almoço... Senão tê-lo-ia complementado com uma sopa.

O seu regime também é bom e eu volta e meia sou um belo garfo.Ainda hoje tive um repasto ao almoço que não lhe digo nada. Mas depois, lá está, aligeirei o jantar.

Uma boa semana para si, P. Rufino!