domingo, agosto 10, 2014

In heaven com figos doces como mel


No post abaixo já vos falei da moralidade da desonestidade e do risco de se meter muito dinheiro na mão de algumas pessoas, especialmente das que não têm a mesma ideia do que é a moral e a honestidade que o comum dos mortais.

Mais abaixo ainda, falei do Totó-Zero, essa criação da democracia infantilizada que parece ter ganho terreno entre nós.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.



Petite fleur





Tal como Pedro Mexia no Expresso deste sábado, escrevo-vos do paraíso. Mas, enquanto ele, quando escreveu, estava numa varanda de frente para um desmedido mar, eu estou agora numa casa perdida no meio de pedras e mato, de frente para uma serra azul. Tenho vontade de ir espreitar a noite e a lua mas passa das 3 da manhã e não quero ir sozinha lá para fora. 

Há paraísos e paraísos. Uns melancólicos, literários, talvez intangíveis. Outros mais terrestres, talvez mais simples e, logo, mais felizes. Não sei. No fundo, paraísos são paraísos.

Cheguei de tarde e fui direita ao sofá, para ler o jornal. Adormeci, claro. Depois, quando acordei, fui dar uma volta. O tempo incerto, nuvens, um certo ar de regresso às aulas. Mas ainda estamos no início de Agosto e o Outono está longe. Gosto do tempo assim. Fico com vontade que caiam umas pingas de chuva para que o perfume da terra suba no ar. Mas não choveu.

Há tempos pensei que uma jarra de ferro que tinha na bancada debaixo do telheiro podia cair e magoar alguma das crianças e, então, coloquei-a sobre um pequeno muro. Foi perdendo a cor, foi-se oxidando. Hoje achei-a mais bonita do que nunca. Os muros também há muito que perderam o branco original, acolheram líquenes, a flor do tempo que passa. E as folhas nas árvores vão e vêm e eu gosto de ir vendo o tempo que passa. Sei que eu também passo com o tempo. Estou de passagem. Estes muros que imaginei e fiz construir ou as rochas que pedi para aqui serem postas viverão muito para além de mim. Talvez conservem o meu olhar sobre eles.

Quando chove, a jarra enche-se de água e ainda mais gosto dela. Penso que, às escondidas, os pássaros lá irão beber, gulosos, achando que água servida em jarra com patine é melhor que a dos pequenos charcos que se formam quando chove. 

Mas, mesmo sem água dentro, acho-a elegante. Fotografei-a para vos mostrar.

Os marmelos estão pesados e eu encanto-me com a força daqueles ramos finos em que eles se equilibram. Achamos que somos fortes, que somos os donos do mundo, mas somos frágeis quando comparados com a natureza, com uma pequena haste que suporta o peso de vários frutos, com um pássaro que se eleva de uma árvore e que atravessa frios, sóis ardentes, ventos inclementes. 

Ainda estão cobertos de penugem os marmelos, ainda não estão bons. Mas ficam bonitos, reflectindo a luz da tarde.

Têm um cheiro bom, estes marmelos dourados. Gosto de ver e sentir estes frutos e gosto de os fotografar como se fossem objectos especiais. E são.

Os frutos nascem aqui livremente, não sei como tudo parece desenvolver-se tão bem. Lembro-me sempre de uma tia - que agora já tem mais de noventa anos e que por vezes já confunde filhos com netos - que um dia me disse que as árvores aqui crescem e dão frutos desta maneira porque se sabem muito estimadas. As árvores percebem, disse-me ela. Gosto de acreditar que sim.

Mas a minha grande surpresa de hoje foram os figos. 

Meu Deus. Que alegria tive. Amadureceram.

E o que eu adoro figos. Engordam que só visto mas, para me confortar, penso que são muito saudáveis. 

Aliás, aqui nada é tratado, é tudo puro. Não há químicos, nada. Nem regadas as árvores são. Sê-lo-ão dentro em pouco quando os meninos cá estiverem e brincarem às regas.

As figueiras estão carregadas, os figos estalam e deitam pingos de mel. Parece que têm uma boca húmida e o açúcar escorre, dourado, perfumado.

Juntam-se figos grandes e maduros com cachos de outros mais pequenos e ainda verdes.

Peguei neles, abri-os, gosto de ver a carnação molhada e doce, há qualquer coisa de sensual num fruto maduro, macio, doce. 

Claro que me saciei. Comi vários e, de doces e macios que são, comi a casca e tudo. Tenho este lado levemente selvagem. 

Amanhã vou apanhar mais para levar aos meus pais e para levar para casa.

Gosto de os incluir também nos cozinhados. Este domingo vou fazer bacalhau no forno, com alecrim, azeite e alho. Se calhar vou juntar uns figos, ficam bons no forno. E batatinhas aos cubos, temperadas com orégãos, louro, um fio de azeite. 

A vida aqui parece-me tão possível.

A repugnância que sinto pela corrupção, pela ignorância, pela mediocridade, pela ganância aqui quase me parece filtrada, como se se referisse a uma realidade medonha mas distante.

Daqui por uns anos talvez tenha tempo para poder estar aqui mais tempo, entre as pedras e os pássaros, alimentando-me dos frutos que colherei das árvores, à sombra das quais me deitarei a ler, tendo mais tempo para escrever, ou para pintar ou fotografar, longe do ar infecto que a política e a economia actual exalam.


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A música é Angelique Kidjo interpretando Petite Fleur


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Relembro: a propósito do mundo real, por aí abaixo há mais dois posts.


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Desejo-vos, meus Caros leitores, um belo domingo. 

Nota: haverá maneira de eu vos enviar uma cestinha de figos pela internet? 
Ainda ninguém inventou uma maneira de tele-transportar figos?

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1 comentário:

Concha disse...

Cara UJM
A descrição que faz do seu "Heaven",é perfeita.Percebo pelo que vai transmitindo, que tem uma vida bem ocupada e talvez mesmo por isso é que tenha tempo com tempo para se deslumbrar com o que a rodeia quando se evade do dia a dia.Precisamos de mudança nas nossas rotinas, digo eu,para usufruírmos de modo diferente do que nos rodeia.Deleitar-se-ia com tudo isso, se não tivesse outra hipótese a não ser a de viver aí?Se calhar não.Bom domingo!