sexta-feira, abril 18, 2014

Morreu Gabriel García Márquez mas não morrerá nunca o Amor nos Tempos de Cólera nem a Vida imensa feita literatura (vida que ele viveu para poder contá-la)


No post abaixo falei das histórias infantis cheias de termos datados, incompreensíveis para as crianças de hoje, e repletas de perfídias de toda a espécie e feitio e aproveitei para mostrar como Jean Paul Gaultier vestiu a Branca de Neve a a Bruxa Má e demais personagens para um bailado contemporâneo.

E estava eu a escrever já sobre outra coisa, nomeadamente sobre um novo mural de Banksy que apareceu e desapareceu numa semana, quando vi na televisão que Gabriel García Márquez tinha morrido.




Hesitei.

Não gosto nada de obituários, de elogios fúnebres, de epitáfios. Não gosto da morte. Sei que faz parte da vida mas nunca convivi bem com esse último passo. Não sei se foi porque, quando era pequena - teria talvez uns dois ou três anos - morreu o meu avô, em casa de quem eu ficava enquanto a minha mãe estava a dar aulas. Foi um processo muito traumático para a família, soube-o vários anos depois. Essa minha avó tinha tido a minha mãe quando tinha dezassete anos, tinha caído perdida de amores pelo meu avô, um rapaz um pouco mais velho que ela, muito alto, muito louro, de olhos muito azuis. A minha mãe, por sua vez, teve-me aos vinte e três e, portanto, a minha avó era, então, muito nova e ainda completamente apaixonada pelo meu avô. Ele morreu de acidente e iam ao cinema nessa tarde. Nunca mais aparecia e a minha avó à espera. Até que alguém foi avisá-la. Com o choque, ela desmaiou e viveu uns dias entre a consciência e a inconsciência. A minha mãe também teve um choque brutal, acho que chorou dias a fio. Eu, que estava sempre com os meus pais ou com esses meus avós, fui enviada para a casa da minha outra avó e ninguém me disse nada. Mas eu, que era uma menina muito curiosa e que percebia tudo o que se passava, devo ter achado alguma coisa de estranho. E depois andavam de luto, vi-o depois nas fotografias. Mas não me lembro de nada desses tempos. Ocultaram tudo de mim e eu nem percebo como conseguiram porque eu haveria de ter feito perguntas. Mas não me lembro de as ter feito. Lembro-me de mil coisas de quando era dessa idade mas disso nada. Só sei que, por essa altura, fiquei gaga. A minha mãe levou-me ao médico e ele disse que me havia de passar. Quando entrei para a infantil, aos quatro anos, já não gaguejava. Já lia e escrevia e, no entanto, não tinha qualquer ideia sobre a morte do meu avô.

Não sei se é por isso, o que sei é que desde criança que tenho terror da morte. Nunca consegui ver ninguém morto. Mesmo quando são familiares próximos, fico na parte externa das capelas. Não consigo aproximar-me. Não consigo mesmo.

Também talvez por tudo isso, detesto falar de mortes. Faz-me impressão que, quando morre alguém, a internet é varrida por RIP e datas entre parêntesis. Dá ideia que as pessoas falam disto com ligeireza, que cumprem uma obrigação. Eu não consigo.

Mas, de vez em quando, abro uma excepção, já aqui as abri umas quantas vezes, poucas mas abri.


Hoje quero falar do Gabo. Houve uma altura, na verdade uns anos, em que eu trabalhava num sítio em que, todos os dias, estava para aí uma meia hora no trânsito. Havia uma estrada que ia dar a uma rotunda e era um castigo para lá chegar. Mas para mim não era. Lia livros atrás de livros. Um dos livros que melhor recordo desses tempos  foi o Amor nos Tempos de Cólera. Florentino Ariza e Fermina Daza vivem dentro de mim desde então.


Já tinha lido os Cem anos de Solidão mas na verdade foi o Amor nos Tempos de Cólera  que verdadeiramente me fascinou. 


Não garanto que estejam aqui todos,
 fui ali num instante fotografá-los
Depois li vários outros e li livros de entrevistas com ele, autobiografia e biografia. Pessoa com uma vida fascinante, cheia, uma pessoa apaixonada e apaixonante, uma escrita igual, transbordante, mágica, por vezes aquém da própria vida.

Entretanto, ultimamente a cabeça foi-lhe ficando cansada e, quando isso acontece, a pessoa já não está bem cá. O estado de saúde nos últimos dias estava frágil e, portanto, o relato dos seus últimos tempos era de facto a crónica de uma morte anunciada.

Não consigo dizer que o mundo fica mais pobre sem ele.

Já tantos se foram e o mundo fica sempre mais pobre mas a verdade é que fica e não fica.

O meu pai um dia queixava-se que o que tinha morto o pai, o meu avô que morreu aos noventa e tal anos, tinha sido uma pneumonia. Saíu-me: 'Senão o quê...? Teria vivido até aos duzentos...?'. O meu pai ficou a olhar para mim, sem dizer nada. E eu arrependi-me de ter sido tão bruta; afinal estava a falar do pai dele, do meu avô de quem eu tanto gostei. Mas a minha mãe deu-me razão, disse que ele ter vivido até aos noventa e tal já tinha sido até bem bom.

Ninguém fica cá para sempre e, portanto, não vale a pena dizermos palavras escusadas. Morrem uns, nascem outros. Vejo a fotografia de alguns casamentos da família, do meu, dos meus cunhados. Quase metade das pessoas já cá não está. Mas estão outros tantos ou mais, que, na altura, não faziam parte da família ou não existiam sequer. Assim é a vida: um ciclo implacável, uma viagem que deve ser bem vivida enquanto dura e que um dia chega ao fim. Eu sei disso. Pareço até racional ao falar assim. Mas não sou. Não se deixem iludir.

No entanto, foi-se ele mas a sua obra de Gabriel García Márquez ficará para sempre. É um lugar comum isto, eu sei, mil pessoas o dizem a propósito de cada artista que morre. Mas é a verdade - e para quê inventar palavras de efeito quando a verdade é tão simples?

Quando os meus filhos saíram de casa, fiz questão de que, para além dos livros deles, levassem um mínimo de livros que considero incontornáveis. Claro que não lhes dei os meus mas comprei-os de propósito para eles os levarem (como dote, como enxoval). O Amor nos Tempos de Cólera foi um deles.

Entretanto, outros escritores foram aparecendo na minha vida e outros virão, e outros e outros. E na vida dos meus filhos aparecerão outros que eles próprios vão descobrindo. Assim é a caminhada que vamos fazendo.

Um presidente de uma multinacional, um homem com uma pinta extraordinária, um francês cheio de charme, tratava-me pelo meu nome (que ele dizia em francês) seguido de la femme infidèle. E sou. Infiel. Sempre pronta para abraçar novos parceiros. E isto aplica-se a parceiros nos negócios, na literatura, na pintura, na fotografia, na música. Presa a um mesmo, por enquanto apenas ao meu namorado de longa data - mas esse já é parte de mim, não conta.


E talvez seja por isso que aquela história de amor inabalável, um amor único feito de mil pequenas infidelidades mas de uma lealdade invencível, me seduziu tanto.


Partiu o Gabo, saíu do seu corpo, mas uma parte dele está naquela minha pequena estante, perto de mim, e isso para mim chega.

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Gabo por ele próprio, falando do seu amado Caribe





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Amor nos tempos de Cólera - o filme




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A música lá em cima é Acuarela de Adolfo Mejia, músico colombiano, interpretada pelo Trío Instrumental Macaregua.

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Relembro: sobre a perversidade da história da Branca de Neve e sobre a sua transposição para os tempos modernos falo no post já aqui a seguir.

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E, assim sendo, sobre Banksy e sobre telemóveis a ver se consigo falar amanhã. Vou ter a casa com lotação esgotada, incluindo com pernoita, pelo que não sei se, à noite, terei condições físicas para conseguir escrever ou, sequer, articular palavra.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa sexta feira.

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2 comentários:

Bob Marley disse...

outro tipo de obituário - http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/garcia-marquez-outro-homem-de-genio-que-era-um-idiota/


já agora , obituário para as comemorações dos 40 anos do 25 de abril - http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3819158

jrd disse...

A morte anunciada de um dos maiores escritores contemporâneos, "sem" anos de solidão, mesmo em tempos de cólera.