segunda-feira, junho 04, 2012

Para te escrever eu antes me perfumo toda (Palavras de Clarice Lispector, fotografias de Mario Testino, vozes das Meninas Cantoras de Persépolis e coreografia, uma vez mais, de Jirí Kilián)


Música, por favor

Kyrie Eleison de D. Lorenzo Perosi pelas Meninas Cantoras de Petrópolis





É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio - já estudei matemática que é a loucura do raciocínio - mas agora quero o plasma - quero me alimentar directamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.

E aos instantes eu lhes tiro o sumo de fruta. Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O instante é semente viva.

A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas - escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.




Agora está amanhecendo e a aurora é de neblina branca nas areias da praia. Tudo é meu, então. Mal toco em alimentos, não quero me despertar para além do despertar do dia. Vou crescendo com o dia que ao crescer me mata certa vaga esperança e me obriga a olhar cara a cara o duro sol. A ventania sopra e desarruma os meus papéis. Ouço esse vento de gritos, estertor de pássaro aberto em oblíquo voo. E eu aqui me obrigo à severidade de uma linguagem tensa, obrigo-me à nudez de um esqueleto branco que está livre de humores. Mas o esqueleto é livre de vida e enquanto vivo me estremeço toda. Não conseguirei a nudez final. E ainda não a quero, ao que parece.

Esta é a vida vista pela vida. Posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa.




Estou me fazendo. Eu me faço até chegar ao caroço.

De mim no mundo quero te dizer da força que me guia e me traz o próprio mundo, da sensualidade vital de estruturas nítidas, e das curvas que são organicamente ligadas a outras formas curvas. O erotismo próprio do que é vivo está espalhado no ar, no mar, nas plantas, em nós, espalhado na veemência da minha voz, eu te escrevo com a minha voz. Respiro de noite a energia. 

Estou me exprimindo muito mal e as palavras certas me escapam. Minha forma interna é finamente depurada e no entanto o meu conjunto com o mundo tem a crueza nua dos sonhos livres e das grandes realidades. Não conheço a proibição. E minha própria força me libera, essa vida plena que se me transborda. E nada planejo no meu trabalho intuitivo de viver: trabalho com o indirecto, o informal e o imprevisto.

Não ter nascido bicho é minha secreta nostalgia. Eles às vezes clamam do longe muitas gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado.




Estou neste instante num vazio branco esperando o próximo instante. Contar o tempo é apenas hipótese de trabalho. Mas o que existe é perecível e isto obriga a contar o tempo imutável e permanente. Nunca começou e nunca vai acabar. Nunca.




Para te escrever eu antes me perfumo toda.

Eu te conheço todo por te viver toda. Em mim é profunda a vida. As madrugadas vêm me encontrar pálida de ter vivido a noite dos sonhos fundos. Embora às vezes eu sobrenade num raso aparente que tem debaixo de si um profundidade de azul-escuro quase negro. Por isso te escrevo. Por sopro das grossas algas e no tenro nascente do amor.

Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e me amas. É o que está certo.

O que te escrevo continua e estou enfeitiçada.


***

Nederlands Dans Theatre - coreografia de Jirí Kilián para a Sinfonietta da autoria de Leos Janacek

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Os textos são de Clarice Lispector (Ucrânia 1920 - Rio de Janeiro 1977) in Água Viva da Relógio D'Água

As fotografias são de Mario Testino (Lima, Peru 1946) a viver (parte do tempo)  em Londres

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Já agora: teria muito gosto em receber a vossa visita lá no meu Ginjal e Lisboa
Hoje as minhas palavras voam num espaço vazio, em volta de um poema de Patrícia Aguiar e a semana abre com Mozart, agora cantado.

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Tenham, meus Caros Leitores, uma óptima semana. 
E comecem já esta segunda feira. Divirtam-se, aproveitem. Be happy!

6 comentários:

Anónimo disse...

Inquietante este post.Parece que anda alguma coisa no ar, algo está para acontecer. Foi a sensação que tive.
Boa semana
Beijinho Ana

Maria disse...

Amiga:
Inquietante? Talvez um pouco. Mas cheira bem. Uma mulher que usa perfume, até para escrever, é cá das minhas. Adoro perfumes.
Gostei das músicas e das meninas. Adoro a Clarice Lispector.
Abraço
Mary

Isabel disse...

Gostei muito da música, a solista tem uma voz muito bonita.
Gostei do bailado. Este tem um registo bem diferente do outro.
E as fotos achei fantásticas.

O texto da Clarice Lispector a mim diz-me que há uma certa insatisfação permanente. Apesar de ser livre, não lhe chega, porque a liberdade nunca é total.
Não sei. A escrita dela não é nada fácil.

Gostei do post.
Um beijinho

Um Jeito Manso disse...

Olá, Ana,

Não pensei que fosse inquietante. Talvez algo estranho, algo diferente. Uma mulher que escreve de uma forma muito visceral, muito primitiva (no sentido de falar de coisas muito próximas da origem). Podem, de facto, acontecer, depois, coisas estranhas.

Ou não. Pode talvez ver-se rodeada de pássaros, deslizar no mar, sair a voar, não sei, talvez uma coisa assim. Mas não sei se isso é inquietante ou apenas diferente.

Gostei da sua leitura. Acho até que já me está a inspirar para escrever o de hoje. Vamos ver se, enquanto fizer o meu 'trabalho' ali ao lado, no Ginjal, se forja alguma coisa para depois aqui escrever.

Um beijinho, Ana.

Um Jeito Manso disse...

Olá Mary,

Também eu sou assim. No outro dia saí de casa e quando cheguei ao carro tive um sobressalto: tinha-me esquecido de me perfumar. Foi como se me tivesse esquecido de uma coisa pior. Voltei atrás e lá fui perfumar-me. Ir sem me perfumar é como ir nua.


Também gosto muito de Clarice Lispector. Tem uma escrita diferente e talvez a Ana tenha razão, talvez seja uma escrita inquietante. Há ali qualquer coisa de tão diferente que, se acontecer alguma coisa de estranho, já nem nos admiraremos.

As meninas têm um som... Eu que gosto imenso de Canto Gregoriano ando encantada com elas...

Um beijinho, Mary!

Um Jeito Manso disse...

Isabel, olá,

Sim, aqui Jirí Kilián concebeu uma coreografia contida, sentida, nada do que era a outra, toda ela extrovertida, satírica, pela de humor.

A solista das Meninas Cantoras tem uma voz que desce do céu, não é?

Quanto a Clarice Lispector talvez a escrita dela seja isso que diz: a liberdade insatisfeita, talvez aí resida a inquietação de que fala a Ana. Mas é uma escrita que me fascina. Gosto de abrir os livros 'ao calhas' e ler, independentemente do contexto do resto do livro. Sei que é uma forma absurda de ler mas gosto de ler Clarice Lispector assim (tal como faço com os livros de Gabriela Llansol).

Obrigada pelas suas palavras, Isabel e um beijinho.