quinta-feira, maio 26, 2011

Um dia chegámos lá, era uma casa no meio do mato

Um dia chegámos lá, era uma casa no meio de mato. Cheirava a casa fechada, estava escura, as mobílias eram escuras, enchiam a casa de forma a torná-la mais escura ainda.

Mas tinha uma vista para a serra, tinha uma aldeia ao longe, ouviam-se os sinos.


E as crianças subiram aos quartos e um disse aqui é o meu e o outro subiu mais um lance e disse aqui é o meu.

E por alguma razão sentimos que ali era a nossa casa.

Depois foi um longo calvário administrativo, anos. Mas nunca nos ocorreu desistir.

E pacientemente fomos desbastando o mato que, todos os anos, crescia ingovernável. Ao longo de anos desbastámos arbustos, alguns foram transformados em árvores. E plantámos árvores.

Todos nos diziam, nós próprios ainda dizemos, que é impossível plantar ali o que quer que seja. Cavamos e só aparecem pedras.


Pedras, pedras. E carregámos pedras de um lado para o outro, algumas pusemo-las ao alto, parecem animais.

Uma parte do terreno está rebaixada. Explicam-nos. Isto era uma pedreira. Daqui saía a pedra para as calçadas de Lisboa. E existe uma gruta. Nunca lá entrámos, de fora vemos que é uma gruta muito funda, não sabemos onde vai dar. Receamos que desabe sobre nós, se lá entrarmos. Temos assim um mistério. Talvez sejam corredores infindáveis, talvez vá até ao centro da Terra.

Como o terreno é assim, não é possível abrir covas muito fundas, e, então, compramos árvores ainda pequeninas, um palmo não mais. Nos livros vemos que levarão vários anos a fazerem-se grandes. As crianças, que ainda não conhecem que a vida é longa, perguntam. Mas para que vão plantar árvores que só vão ser grandes quando vocês forem velhos. E eu respondo com uma frase que uma vez li, de D. Elton Truebold, ‘o homem começa a descobrir o sentido da vida quando planta árvores á sombra das quais sabe que nunca se sentará’. As crianças aceitam o argumento.


Mas as árvores cresceram, e nós (que ainda não somos velhos...) agora sentamo-nos à sombra dessas árvores e as crianças que, entretanto cresceram, também se sentam à sua sombra. E novas crianças nasceram e todos nos sentamos à sua sombra.

Às vezes vejo fotografias de como era no início. Não havia árvores, não tínhamos uma sombra, não havia caminhos. As crianças andavam de bicicleta na estrada pública que quase não tinha carros. Ainda tínhamos connosco a nossa amiguinha querida, tão alegre, tão meiga, que nos abandonou há um ano e de que eu ainda não consigo falar, nem sequer escrever, sem que o coração me estremeça e as lágrimas teimem em sair. Um dia falarei dela, agora ainda não.

E tínhamos também connosco familiares que tanto gostavam de lá estar.

Mas é assim mesmo a vida. Não estão esses, estão muitos outros que entraram entretanto na nossa vida.

E todos os anos por esta altura a natureza rebenta com todo o seu vigor e eu ando fascinada de flor em flor, fotografando-as mil vezes. E depois vem o verão e as cigarras ficam loucas, e sabe bem estar à sombra da grande figueira - com aquele doce aroma a ‘under a fig tree’ - que faz sombra atrás da casa, e os figos ficam grandes e levam os ramos até ao chão. E depois vem o Outono e fica aquela temperatura doce de que tanto gosto e a vinha virgem fica ao rubro e as folhas caem e eu ando a varrer porque gosto muito de varrer e a seguir vem o Inverno e as árvores ficam despidas e eu gosto delas também assim, e chove muito e os muros e a terra ficam cobertos de verde, de musgos, e acendemos a lareira.


E agora temos caminhos, recantos e muros onde eu escrevo poemas e faço desenhos, onde se colocam azulejos com desenhos, com poemas, e há pinhas e há bolotas, há nêsperas e laranjas, há uvas, há flores e há crianças grandes e crianças pequenas. E à hora de almoço ouvimos os sinos da aldeia e da vila mais próximas, e ouvimos os pássaros que ali fizeram também a sua casa. E sabemos que há coelhos nas tocas. Ali é também a casa deles.

E nós, sempre que podemos, é para lá que rumamos porque não há sítio no mundo onde nos sintamos mais felizes do que ali, in heaven.


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