Pois é, já o li, embora, confesso, numa leitura algo superfial. É o documento típico de uma equipa de gestores experientes e multi-competentes. Muito objectivo, indicando o planeamento de execução e a economia expectável para cada medida, sector a sector.
Se eu tivesse recebido a incumbência de propor um plano deste tipo, fá-lo-ia da mesma maneira: tipo carro-vassoura, percorrendo todas as 'casas' em que há descontrolo, em que há ineficiência, em que há constrangimentos.
Li-o e, do que conheço do país, revi-me nas medidas enunciadas.
Claro, meus caros, que há aspectos em que a leitura é acompanhada por um frio no estômago. Custa ler o capítulo da flexibilização dos despedimentos, a redução dos prazos e dos montantes dos subsídios. No entanto, conheço pessoalmente vários casos que, só por si, justificam a justeza das medidas e, além disso, estende-se agora, a protecção no desemprego às pessoas em regime de recibo verde o que é positivo. Mas a questão nem é essa: a questão é que tenho esperança que, com estas medidas, haja um desvio da população activa e dos recursos financeiros do sector administrativo estatal para a economia real e que, dentro de uns dois anos, a economia cresça, criando novos empregos, criando oportunidades reais de trabalho.
Mas, tirando a questão do desemprego (que é, de facto, o lado negro da crise), e tirando um novo sangramento fiscal sobre a classe média, o que vejo ali é um guião para uma forte reorganização em sectores que estão a funcionar de forma ineficiente, ineficaz. Fundir sistemas informáticos, gerir compras em conjunto capturando benefícios, montar serviços partilhados (para além dos incipentes que hoje timidamente existem), centralizar orgãos de gestão, reforçar a componente técnica de auditoria na máquina fiscal, acabar com repartições antiquadas, fundindo organismos afins, etc, tudo isso me parecem medidas muito, muito ajustadas.
Estou a ouvir o Dr. Silva Lopes na televisão, que, com o Professor Jacinto Nunes está a falar com o José Gomes Ferreira, a lamentar que o documento não tenha ido até às tributações extraordinárias nos grandes rendimentos mas, tal como ele diz, há que analisar isto a nível mundial pois os grandes geradores de lucros facilmente levantam arraiais e vão para outro lado.
Refere também ele que o documento deveria atender ao grave problema que é o despedimento de longa duração. Mas não sei se o documento deveria ir a tudo. Isto, de facto, é um problema fatídico mas a solução aí passará provavelmente pela sociedade civil, por nós todos que temos que ser diferentes, mais solidários, mais activos.
Claro que ao ler o documento há um outro aspecto que me embaraça: têm que vir técnicos estrangeiros para nos arrumar a casa? Que cambada somos nós que não temos cabeça para tão comezinhas arrumações?
Mas a questão é que somos mesmo uma cambada. Apenas vi um pequeno excerto da entrevista do Pedro Passos Coelho e não é o que lá o ouvi outra vez que, se for governo, vai logo jardinar as medidas do documento que vai assinar? O fulano não é bom da cabeça. Então vai assinar um Memorando de Entendimento e, ainda nem o tendo assinado, já ameaça que, se for para o governo, se marimba para o documento e vai fazer outra coisa.
Isto é o tuga rasca no seu pior, aquele que mal chega ao governo, destrói o que o antecessor fez.
O sistema de saúde, o sistema de justiça, o sistema educativo, o sistema de gestão autárquica e por aí vai, também foram varridos e também aparecem aqui boas medidas mas nisto há sempre dois lados: se os apodrecidos poderes corporativos e os anquilosados sindicados resolvem minar tudo isto, então não valerá de nada o facto de estarmos perante um bom plano, esta será mais uma oportunidade perdida e sermos pedintes pela europa fora será o futuro que nos espera.
Mas, se um conjunto fortíssimo de competências, com grandes capacidades de liderança, com uma sólida estrutura moral, democrata, humanista, agarrar as rédeas do país e governar a sério, então esta pode ser a oportunidade de ouro para tentarmos sair da cauda da Europa.
Apetecia-me aqui fazer uma análise técnica do documento, área a área, mas o post vai longo, aqui não é sítio para textos minuciosos. Por isso, vou apenas referir um outro aspecto: o País tem que largar as brincadeirinhas com que se tem andado a entreter e dedicar-se à produção de bens transaccionáveis. Temos que importar menos e exportar mais. Não podemos continuar a importar tudo. Extinguimos a indústria, a agricultura, as pescas e isso saíu-nos tragicamente caro.
E foram as Mckinseys, as Boston Consulting Groups e outras majors que andaram a vender, a peso de ouro, estratégias que, a pretexto da criação de valor para o accionista, aconselharam o desinvestimento de tudo o que tivesse a ver com sujar as mãos: bom eram os serviços, as participações financeiras e coisas do género.
Depois há um outro aspecto: tirando dois ou três, não temos capitalistas em Portugal. Todos os grupos portugueses foram feitos a partir de dinheiro nenhum. Salvo uma ou outra irrelevante excepção, todos os grupos económicos nacionais alavancaram-se em cima de fianciamentos bancários, operações pomposamente designados por project finance. Muitas vezes (ou todas as vezes?) esses empréstimos são pagos 'a la longue' com o 'pêlo do cão' ou seja, com dinheiro que sai da empresa que se compra ou se cria. Ou seja, as empresas são 'sangradas' para pagar os empréstimos com que se comprou ou montou a empresa. Subindo as taxas de juro, o custo dos empréstimos sobe e as empresas ficam ainda mais afogadas.
Como já referi aqui várias vezes, é o próprio regime fiscal que estimula a alavancagem financeira. Ora, como se viu, isso é perverso e, se a banca está como está, é também porque se descapitalizou a enfiar dinheiro nas empresas, dinheiro que mal consegue recuperar.
É todo um modelo que tem que ser repensado porque, como se provou ( q e d), não funcionou. As finanças ficaram exangues, a a economia paralisada.
Quando no outro dia, creio que no 1º de Maio, ouvi uma jovem numa manisfestação a dizer que ainda 'não está à rasca' porque ainda está a estudar mas que se estava a manifestar porque, se calhar, quando se licenciar, vai para o desemprego, fico mal disposta quando, tendo-lhe sido perguntado o que estava a estudar, a ouço responder: "Culturas e artes comparadas".
Não pode ser, como se chegou a isto? Tanta gente com cursos destes... Numa altura em que são precisas competências em áreas que sirvam para fazer coisas concretas, temos, ao invés, multidões de estudantes com licenciaturas, mestrados e doutoramentos em áreas que são totalmente desadequadas para a economia real.
Tudo isto derrapou de uma forma estúpida: falhou na análise demográfica, na análise finnaceira, na análise económica ou mesmo na cultural. O modelo de desenvolvimento está estupidamente errado e o resultado é o que está à vista.
Aos olhos dos outros países parecemos tontos, totós, relapsos, malucos, saloios.
Por isso, intervenções patarecas como as do Catroga ontem depois da conferência de Sócrates ou a do palerma de Passos Coelho a dizer que não vai assinar de cruz e que, mal possa, jardina aquilo tudo, é tudo o que Portugal não precisa.
Finalmente uma palavra para a reacção inteligente de Paulo Portas. Uma vez mais teve palavras responsáveis e inteligentes. Isto, em terra de cegos, quem tem um olho é rei e por isso ele nem diz nada de muito especial mas, enfim: diz que obviamnete que vai assinar e que, com um bom governo, o acordo ainda pode ter melhores resultados.
E é de uma atitude construtiva assim que Portugal precisa.
Reparem no peixe: o pescador estava todo orgulhoso, o peixe rabiava que se fartava e ele, ali, todo feliz, a posar para que eu o fotografasse |
Por isso também se compreende a atitude optimista (optimista, por vezes ao ponto de raiar a alienação ou a manipulação) de Sócrates: temos que, solidariamente, sem tricas estúpidas, ir em frente e, já que quando somos bem orientados, demonstramos ser uns trabalhadores competentes e produtivos (quando emigramos, por exemplo), deixemo-nos agora governar.
Nota: Claro que as fotografias não têm nada a ver com o texto. Mas hoje, depois do trabalho, ao entardecer, fui passear para o pé do rio e tirei estas fotografias. Como o texto está maçudo, lembrei-me de as colocar aqui.
Outra nota: É verdade, claro que tudo o que estava no PEC IV está aqui neste documento, com alguns ajustamentos. Mas este documento é muito mais ambicioso, mais abrangente, limpa o pó, varre, arruma a casa (quase) toda. O PEC IV era um apertar de cinto: isto é todo um restyling. Ou seja, são irrelevantes e absurdas as discussões sobre se isto tem ou não a ver com o PEC.
2 comentários:
aqui o povo agradece, com análises assim não preciso ler os jornais. sem formação específica q me permita botar faladura sobre os entrefolhos da coisa - a economia tem qq coisa de adivinhação - há um assunto em q não concordo inteiramente consigo: as licenciaturas em humanidades e correlativos. num país com um terrível défice de malta com frequência de ensino superior, sobretudo quando comparado com o norte europeu, creio sinceramente q qualquer formaçãozinha servirá. afinal, qnd aponta o dedo - e bem! - à ausência de capitalistas, isso tb não se deverá à carência de gente formada? sem esquecer q um licenciado varre sempre melhor as ruas do q um gajo com a 4ª classe. certo? Mas isto é conversa e pano para mangas.
Obrigada pela gentileza das suas palavras.
Quanto ao que refere, sobre a educação e sobre a formação académica e profissional, de facto, não concordo muito consigo mas é matéria em que a minha convicção não é forte.
À partida parece-me absurdo que tanta gente desperdice dinheiro e tempo a aprender matérias sem aplicabilidade prática a nível profissional.
Tanta licenciatura e mestrado em 'paz em áfrica' ou 'artes comparadas' e coisas do género pode ter utilidade como cultura geral ou em meia dúzia de empregos em jornais ou programas televisivos sobre cultura mas, de resto, não vejo que sirva para ganhar dinheiro.
E depois temos gente desmotivada, com licenciaturas (mirabolantes) a trabalhar nas caixas de supermercado ou a atender reclamações na zon.
Poderá dizer: 'mas fá-lo-ão melhor do que tivessem apenas o 9º ano' mas olhe que nem sei, tenho ideia que dizem 'há-des' e 'quaisqueres' na mesma...
Apetecia-me até ir escrever qualquer coisa sobre educação mas hoje estou cansada, acho que me vou ficar por temas mais ligeiros _(é que eu, quando me ponho a escrever, não consigo ter a sua capacidade de síntese, escrevo e escrevo e escrevo...)
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