Já uma vez aqui escrevi sobre a grande afinidade a nível racional que existe entre a matemática e a poesia. Também já escrevi sobre o muito que aprecio ambas. São faces da mesma moeda.
A matemática ensina a pensar de forma clara. A matemática ensina a identificar o que é crucial, a eliminar o que é supérfluo, ensina a ‘pôr em evidência’ o que é repetitivo, ensina a distinguir a causa da consequência, a validar se as premissas permitem extrair uma conclusão, ensina a validar se a amostra é significativa para se partir para uma extrapolação, ensina a validar e a descartar possíveis soluções até que se encontre uma que pareça (até prova em contrário) a definitiva solução, ensina a antever onde se vai projectar uma sombra, ensina a ver pontos de similitude, de intersecção, ensina a raciocinar a uma dimensão (um ponto numa escala linear), a duas (num plano), a três (no espaço) e por aí fora até percebermos que a forma como apreendemos a realidade depende das dimensões com que enriquecemos a nossa percepção, ensina a simular a realidade modelando-a com componentes tais como a aleatoriedade, a estatística, a probabilidade, e ensina a encontrar um padrão nos comportamentos, ensina a levar o raciocínio até onde a realidade não alcança, com números complexos, com os conceitos de mais e menos infinito.
Ama a matemática quem, com exigência e rigor, ama a vida nas suas múltiplas e infinitas vertentes.
E quem assim ama a matemática não pode deixar de amar a limpidez da poesia.
Mostro de seguida um polinómio (muito simples…). No entanto, olhando para ele com olhos de ver, percebe-se que contem ruído desnecessário (assim acontece com a maior parte das conversas que ouvimos ou dos textos que lemos: muita parra e pouca uva).
(2x-y)2-4x(x-y)
Atentemos então no polinómio e façamos uma limpeza:
(2x-y)2-4x(x-y) = (2x)2-2.2x.y+y2-4x2+4xy = 4x2-4xy+y2-4x2+4xy = y2
Ou seja, (2x-y)2-4x(x-y) é, afinal, a mesma coisa que y2
Ora, isto é o que acontece com a poesia: limpam-se as gorduras desnecessárias, os advérbios inúteis, o palavreado à toa; as palavras são apenas as necessárias e suficientes para exprimir com clareza a ideia ou o sentimento do autor.
A poesia, contudo, difere da matemática numa coisa importante: é que a matemática é rigor e transparência mas, nas expressões que a exprimem, não respira o sentimento, respira apenas a razão. (Uma pessoa pode sentir um swing fantástico quando se lança na resolução de uma questão matemática, quando vê a limpidez a definir-se; mas o swing está na pessoa que toca a matemática, não na matemática que é tocada).
A poesia, para mim [leiga, mil vezes leiga me afirmo], não pode ser nisso igual à matemática, não pode ser apenas razão, tem que ter emoção. As palavras não podem apenas definir com rigor um pensamento ou um sentimento. Têm que conter, elas próprias, sentimento e têm que o ter de forma reprodutível (à luz da moda reinante, dir-se-ia ‘de forma sustentável’). A gente, ao ler, tem que sentir aquilo que o poeta descreve. Se o poeta escreve que no verão a luz é branca como um muro de cal, a gente, ao ler, tem que sentir o calor, a gente tem que sentir que não consegue encarar o muro, de tão branco que ele é ao reflectir o sol de verão. Eugénio de Andrade ou Sophia de Mello Breyner, por exemplo, são mestres nessa arte. O mar azul, a luz mediterrânica, o calor, a sombra nos muros, as pedras, a erva, os animais, o desejo, o medo – eles escreveram e a gente, ao ler, sente.
Depois temos, por exemplo, Nuno Júdice, que descreve situações, sentimentos e, num poema, sintetiza uma história inteira. Poderia referir ainda Pedro Támen (de quem hoje, no Ginjal e Lisboa coloquei um poema), menos descritivo, mas que nos sabe fazer chegar ao fim do poema com a inquietação (ou quietude) com que estava quando o escreveu.
Por uma questão de justiça, volto a Pedro Mexia a quem me referi há dias de uma forma talvez um pouco primária.
Umas vezes PM apanha o balanço de outros poetas e recria a toada original à luz das suas ideias mas, outras vezes, quando é ele com ele apenas, o que nos dá é um corpo dissecado, sem redundâncias, sem gorduras, mas, aparentemente também sem seiva, sem emoção. Eu lia e não sentia que o poema respirasse.
E, no entanto, quando nos começamos a habituar, deixando que a sua escrita poética nos habite, que incomodidade nos fica. É uma poesia alusiva, sim, umas vezes de forma directa, outras indirectamente alusiva. Talvez influenciada pelo seu amor pelo cinema, o texto mostra-se como uma cena e nós assistimos impotentes ao que ele descreve – tantas vezes a solidão desamparada, como é o caso do poema Vamos morrer, de Senhor Fantasma.
Vamos morrer, mas somos sensatos,
e à noite, debaixo da cama,
deixamos simétricos e exactos,
o medo e os sapatos.
Acho que dificilmente se descreveria melhor uma forma de existir resignada, abúlica, incógnita e infeliz, uma forma administrativa de existir, e em apenas 20 palavras.
Eu antes lia isto, ficava incomodada e ficava aborrecida e pensava, ‘isto não é poesia’, ‘isto não tem música’ (tal como, por exemplo, quando leio Brecht)
Hoje leio isto e fico incomodada na mesma mas estas palavras alojam-se na minha cabeça, são uma toada breve e triste, uma poesia densa, sintética, um concentrado de mal-viver.
Poesia, de qualquer forma.
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