segunda-feira, janeiro 17, 2011

Agora já não sou gay - uma história esboçada em azulejos

No outro dia disse que pensava que não escreveria mais sobre Renato Seabra e sobre Carlos Castro. As capas de revistas, os comentários na net, os directos na tv, o anedotário que começa a desenvolver-se, banaliza o que, de tão horrendo, nos deveria fazer pensar a todos. Por isso, não quero contribuir para alimentar o ruído.

Gostaria de falar um pouco das redes sociais, das amizades prêt-a-porter, do imediatismo em tudo (dos sentimentos e do sucesso), da inversão de valores que progressivamente se vai também banalizando, fazendo com que aceitemos tudo como fazendo parte do package que é a contemporaneidade.

Numa outra altura voltarei ao tema.

Se, ao contrário do que tencionava, volto ao tema é porque, hoje, ao dar os meus passeios, dei de caras com dois painéis de azulejos (e assim retorno também à azulejaria), um com uma pintura feita a partir de uma ilustração de Jorge Colombo há muitos anos no Expresso e outro com um poema da Sophia de Mello Breyner que, vistos em conjunto, me pareceram quase esboçar esta triste história.

É este um dos condões da arte: parece adaptar-se a várias situações ao longo dos tempos. Os artistas descrevem o mundo avant la lettre.

Olho-me ao espelho e pergunto-me: quem sou eu? Poderei ser gay? Os meus amigos pensarão que sou gay? estou a viver um pecado sem perdão?

Renato Seabra, universitário e desportista, jovem de uma cidade de província, acólito na igreja local, de repente 'amigo' via facebook de Carlos Castro - organizador de eventos de moda e beleza, raposa velha do milieu, que o introduz no agitado e mundano meio da moda - de repente a conhecer todas as celebridades do jet set, de repente a viajar para as capitais da moda, e, depois, aos poucos, a perceber que não há almoços grátis, aos poucos a ver-se envolvido numa ficcionada, exacerbada, possessiva paixão homossexual, provavelmente algum dia(s) a vacilar e a ceder nalguma proximidade, provavelmente no decurso de cenas de ciúmes (Carlos Castro não o queria a falar com raparigas, fez uma cena por ele dar o número de telemóvel a uma) a ser ameaçado de denúncia de que era homossexual, provavelmente aterrorizado, envergonhado, assustado, stressado, sem conseguir lidar com a situação, a pedir ajuda à mãe para o ajudar a regressar mais cedo, dizendo que estava farto que o envolvessem em luxúrias (um dos pecados capitais!), que não dormia há vários dias - até que, num momento em que não suporta o peso, carregado de sombras, arranca o seu corpo da raíz e tem um surto psicótico reactivo (segundo a explicação psicológica de Carlos Amaral Dias), perde a consciência e faz o impensável.            
(Carregado de sombras e de peso, arrancando o seu corpo da raiz)
O que se passou durante as horas seguintes, em que ali esteve esteve, no quarto, ao pé do corpo castigado do seu pretenso 'amante', não o sabemos. Desenraizado, num país estrangeiro, sem conhecer ninguém, de repente transformado em assassino, não sabemos em que pensou. Assustado? Perdido? Aliviado? Sem noção? Não o sabemos.

Ao que se sabe, disse depois à polícia que tinha querido tirar o vírus da homossexualidade do corpo de Carlos Castro, ao que se sabe, exclamou 'Agora já não sou gay!'.

Nessa altura ainda estava, certamente, sob o efeito alucinatório que o conduziu ao crime, nessa altura talvez ainda não tivesse percebido bem o castigo pesado que o acompanhará para o resto da vida.

As cinzas de Carlos Castro foram atiradas no respirador do metro de Times Square, um desfecho patético, digno de uma cena na Broadway. Renato Seabra ainda agora está a começar a sua longa expiação. Volto a dizer que tenho muita pena.


Apetecia-me colocar como legenda a este painel 'Que se sinta apoiado na travessia do castigo' mas não gostei. Escrevi depois, 'Que as mães possam sempre proteger os seus filhos' mas também apaguei porque não podemos.

Por isso fica assim, sem legenda. Também não precisa. A beleza da imagem fala por si.

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