terça-feira, novembro 16, 2010

Irlanda, de bestial a besta; a alavancagem financeira; as cash cows; etc - e a facilidade com que se fazem e desfazem os mitos

Hoje as notícias confirmam a queda de mais um mito. Durante anos andámos a ouvir falar do exemplo Irlandês: crescimento invejável, capacidade para atrair investimento estrangeiro, um sistema fiscal simplificado e ‘competitivo’ na sua base.

(Veja-se, por exemplo, a newslettwer do IAPMEI de 2004, em que se relata a experiência irlandesa e se recomenda que se aprenda com ela : http://www.iapmei.pt/iapmei-nwl-02.php?tipo=1&id=733)

Durante anos, debateu-se e ensinou-se o case study irlandês nas escolas e em conferências, nos media, por todo o lado. Eu própria assisti mais do que uma vez a ilustres conferencistas das mais prestigiadas instituições nacionais e internacionais relatando entusiasmados, como se eles próprios fossem co-responsáveis por tão estridente sucesso, a forma como os irlandeses mantinham taxas de crescimento de fazer crescer água na boca.



Pois bem, hoje os mesmos media relatam a humilhação do orgulhoso povo irlandês, falido, com um défice escandaloso e com o sistema financeiro de pantanas, descapitalizado. Esteve exposto a activos tóxicos, pois então. Precisavam de mais-valias rápidas para fazer face às benesses fiscais. Esvaziou-se o balão tóxico e o edifício revelou os alicerces de barro.

Claro que Portugal – antes apontado como aluno relapso pelos brilhantes economistas que hoje convictamente dissertam a explicar a ruína do regime irlandês – não está na mesma trágica situação.

Mas, como se sabe, está longe de estar bem. Com gastos não suportáveis com uma administração pública cheia de mordomias (autárquica, incluida), com um regime social que requer muito mais recursos do que os que existem, com as famílias a consumirem mais do que têm, com as empresas descapitalizadas, o País vê-se confrontado com uma operação aritmética simples de perceber: o saldo da subtracção é negativo. Foi suprindo esse diferencial com empréstimos. Sobre os empréstimos (que têm que ser amortizados…!) há que pagar juros. Os juros somam-se à despesa…e, assim sucessivamente...os gastos vão subindo até que alguém faz de novo as contas e conclui: estes tipos não vão conseguir pagar o que devem porque cada vez se endividam mais. E, como as taxas de juro estão cada vez mais altas, aqui estamos nós no centro deste ciclo vicioso.

Como é que se sai disto e se transforma o ciclo vicioso em virtuoso, não se sabe bem. A receita mais simples é óbvia: reduzir drasticamente a despesa. É o que se está a tentar fazer mas o que foi anunciado dificilmente será suficiente. Só que uma coisa é a lógica e a aritmética, outra coisa são as pessoas que se vêem sem dinheiro para fazer face aos seus encargos e necessidades básicas.

Mas o que ainda mais me assusta é a volatilidade do pensamento dos decisores e aconselhadores. Dizem-se e desdizem-se com igual convicção.

Assisti a conferências e seminários, frequentei acções de formação, em que, q.e.d. (ie, quod erat demonstrandum) nos demonstravam que o correcto na gestão de uma empresa é a alavancagem financeira. Nada de usar capitais próprios. O raciocínio, relatado de forma muito básica, é fácil e aritmeticamente inquestionável. Recorrendo a crédito, pagar-se-ão encargos financeiros. Estes encargos são, contabilisticamente (e de facto, claro), custos. Os custos abatem a resultados, logo o imposto será inferior, logo o resultado líquido será superior.

Nada de mal. Gestão é isto. Criar valor para o accionista é isto. Ensina-se nas escolas.
Só que agora, com as empresas completamente alavancadas em créditos bancários, com as comissões bancárias, com os spreads, com tudo o que é encargo bancário a disparar, com os bancos a quererem amortizar rapidamente as linhas de crédito, as empresas estão num sufoco. E, estando num sufoco, têm que deitar carga ao mar (reduzir custos em geral, reduzir custos com mão-de-obra em particular). Deitando carga ao mar, as pessoas têm menos dinheiro para consumir, o consumo baixa, as vendas das empresas baixam, e de novo, mais carga ao mar.

Ciclo vicioso por todo o lado.

Ou seja, claro que é também necessário expandir pelo lado das receitas. Não da receita fiscal percentual junto dos pobres e esmifrados contribuintes, mas da receita em geral (para as empresas: mais vendas, sobretudo mais exportações), receita fiscal por via de melhores resultados das empresas e menos encargos com subsídios de desemprego e claro menos importações.

Mas tem que haver uma visão de médio, longo prazo, tem que se raciocinar com um pensamento subjacente de sustentabilidade - mas não e a sustentabilidade de brincadeirinha (a de fechar as torneiras, de apagar a luz).

E temos que voltar a ter empresas que produzam bens transaccionáveis e não apenas empresas de serviços (o que leva a que importemos tudo o resto). Contudo, uma vez mais, é assustador pensar que vamos estar ao sabor dos mesmos conselheiros de estratégia, dos grandes consultores internacionais, dos majors, dos que antes fizeram pareceres aconselhando a abandonar os negócios maduros em detrimento das cash cows maioritariamente na área dos serviços e das participações financeiras (hoje tudo extinto ou de corda na garganta).
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